sábado, abril 28, 2007

A promessa


Diz que não precisa atravessar oceanos até ao outro canto do mundo para fotografar. E não precisa. Também não precisou da caução de uma qualquer licenciatura em fotografia. A fotografia aconteceu por acaso. E resgatou-o do resto. Nelson d'Aires, que acaba de ganhar o grande prémio BES, na categoria de reportagem, com um trabalho sobre a transladação da urna da Irmã Lúcia, em Fátima, é a melhor revelação dos últimos anos. A prova de que é possível ver pela primeira vez tudo o que já se havia visto antes. E com a impressionante certeza de que não se irá esquecer o que ele cristalizou.

"Se tão pouco não fotografei os rostos dos peregrinos que choravam ao verem a urna a passar por eles, que fotografei eu então? a resposta acho que está nos peregrinos que durante o dia resistiram no santuário de Fátima ao frio, à chuva, à espera de chorarem por eles enquanto rezavam a missa, para no regresso, poderem então celebrar, libertos das amarras do clero, fazendo aquilo que melhor sabem: comer, beber e dançar, ainda que, seja numa estação de serviço da auto-estrada". Nelson D'Aires

A vida por outra vida

Soube sempre que queria salvar vidas. Órfã de pai, mãe em parte incerta, foi adoptada por um casal do Porto que a ajudou a encobrir o problema da asma para que pudesse integrar o corpo da Guarda Nacional Republicana. “Podia ter sido outra coisa qualquer; o que quisesse ser. Mas só queria ser agente da GNR”. Carla Alexandra, “menina cheia de coragem e boa disposição”, tinha 21 anos quando saiu de Gaia para começar a patrulhar as ruas de Lisboa. O sonho parecia cumprido.

Há três anos, numa tarde de Agosto, sentada numa esplanada da Ribeira, anunciava ao pai que a criou a intenção de casar quando sofreu novo ataque de asma. Esquecera-se da imprescindível bomba de oxigénio em casa. Ligaram para o INEM; ninguém atendeu. A ambulância haveria de aparecer nove minutos depois. Mas o cérebro só aguenta quatro minutos sem receber ar. Entrou em paragem cardio-respiratória, tombando para um estado de coma vegetativo do qual nunca mais saiu. Tem 26 anos.

Sem irmãos, sem pais biológicos, sem mãe adoptiva – que, entretanto, faleceu –, com o tutor de sempre à beira dos 80 anos, Carla ficou entregue ao Hospital Militar até a tia Manuela, mulher de coragem e abnegação superior, ter decidido trocar a sua vida pela vida da sobrinha.

“Era encarregada geral dos CTT, ganhava 850 euros”. Despediu-se. Os cuidados de que Carla necessita não se compadecem com horários de trabalho. “Pedi à Câmara uma casa maior – tinha um T2 –; deram-me um apartamento, no Bairro da Boa Nova, em Gaia, que havia sido habitado por uma família de etnia cigana. Estava todo destruído. Mas a autarquia não aceitou pagar as obras de remodelação”.

Manuela, 44 anos, gastou os 15 mil euros que juntou ao longo de uma vida inteira – ela e o marido, varredor de ruas –, a adaptar a habitação. Ficou sem verba para casar a filha, única, que agora vai adiando o matrimónio. Mas ficou, sobretudo, sem dinheiro para comprar o aparelho respiratório de que Carla necessita para viver. O que tem não cobre sequer o que gasta com a medicação da sobrinha, que absorve mais de 400 euros por mês. O marido “tenta fazer cada vez mais horas extraordinárias, mas o dinheiro não estica”.

O aparelho custa 1500 euros; o que têm alugado custa-lhes 200 euros todos os meses. Fraldas, resguardos e pomadas têm sido oferecidos pela Associação de Solidariedade “Ponto de Ajuda”. Os médicos dizem que Carla pode viver mais 50 anos, inerte, na cama. A Manuela vaticinam, desde 1995, apenas, 15 dias de vida. Doente crónica renal, foi-lhe diagnosticado um tumor no fígado; outro no intestino. Recusa tratamentos. Diz que não pode ausentar-se de casa. Vai assinando termos de responsabilidade, uns a seguir aos outros, para sair do hospital de cada vez que tem uma crise. Não quer largar a sobrinha.

Chama-lhe princesa, enceta batalhas de narizes, brinca com ela, liga a aparelhagem durante o dia, enche-lhe o quarto de cor. Dorme ali, no chão, todos os dias, em vigília permanente. Depois de amanhã, Carla será submetida a uma cirurgia ao estômago. Manuela aproveitará a ocasião para retirar a vesícula. “Não vou morrer. Quem tomaria conta da Carla?”

sexta-feira, abril 27, 2007

Alemanha

[AFP]

Alunos do liceu Gutemberg, em Erfurt, na Alemanha, choram as vítimas do tiroteio ocorrido na escola há cinco anos. Na cerimónia foram lembradas as 16 pessoas assassinadas por um antigo aluno que a dia 26 de Abril de 2002 executou a matança, suicidando-se de seguida.

Posição: 2007


O IX volume da Colecção Público/Serralves, intitulado "Propostas da arte portuguesa. Posição 2007" é apresentado, hoje, às 18.30 horas, no Museu de Serralves, no Porto. Estará disponível nas bancas, depois de amanhã, juntamente com o jornal Público. O livro " traça um percurso através da obra de um conjunto de artistas que utilizam meios como a pintura, a escultura, o vídeo, o desenho, a instalação, a fotografia ou a performance para demarcarem territórios de uma singularidade absoluta". Propõe "uma reflexão sobre os modos de produção e partilha da arte contemporânea, a afirmação dos artistas enquanto criadores de plataformas de visibilidade própria e o impacto da utilização da imagem em movimento na produção e recepção da arte actual".

O lançamento da obra, editada por Miguel von Hafe Pérez, crítico de arte e comissário de exposições, actualmente responsável pelo projecto http://www.anamnese.pt/ da Fundação Ilídio Pinho, será acompanhado de um debate, que deverá questionar o que significa, hoje, ser artista em Portugal. Carla Cruz, Daniel Barroca, Eduardo Matos, Isabel Carvalho, Manuel Santos Maia, Mafalda Santos e Pedro Barateiro darão respostas sobre modos de produção, canais de difusão e plataformas de recepção.

quinta-feira, abril 26, 2007

IA vazio. Outra vez.


Foi o segundo homem do Porto a tentar dirigir o Instituto das Artes (IA); o segundo a não conseguir. Paulo Cunha e Silva fartou-se, há quatro anos, de dissertar sobre as potencialidades da sigla IA, mas acabou por sair antes do fim do mandato, numa história, até hoje, muito mal explicada. Jorge Vaz de Carvalho afirma, agora, em entrevista ao Primeiro de Janeiro, que sai porque não era feliz no que fazia; porque o Instituto "é muito burocrático e pouco criativo", e porque nunca imaginou que as suas funções pudessem resumir-se a "a fazer concursos e a dar apoios".

Mesmo que seja nomeado, já amanhã, novo sucessor, Isabel Pires de Lima tem mais um problema, e grave, para resolver. Se já não são só os artistas que se queixam; se dois directores seguidos não conseguem responder às necessidades do panorama cultural, não será altura de repensar o sistema?

quarta-feira, abril 25, 2007

Freedom

"Sendo fenómenos atómicos discretos, as permutas de electrões, no interior do cérebro, entre os neurórios e as sinapses, estão em princípio dependentes da imprevisibilidade quântica. Mas o número elevado de neurónios faz com que, por anulação estatística das diferenças elementares, o comportamento humano seja - tanto nas suas linhas de força como nos pormenores - tão perfeitamente previsível como o de qualquer sistema natural. No entanto, em algumas circunstâncias extremamente raras, que os cristãos caracterizam como intervenção da graça - uma onda de coerência nova surge e propaga-se no interior do cérebro. Aparece então um novo comportamento, temporário ou definitivo, regido por um sistema inteiramente diferente de osciladores harmónicos, e pode então observar-se aquilo a que se chama um acto livre".
Michel Houellebecq in Partículas Elementares

segunda-feira, abril 23, 2007

Rainbow

A capela é fria e sombria como são sempre as capelas todas. O ar pesa sobre a cabeça. Há humidade acumulada do cansaço, da chuva interior e de um vai-e-vém de estranhos e menos estranhos que nunca se inibem de, invisivelmente, esticar o dedo indicador para gritar "presente". Antecâmara de uma tempestade. É sempre assim.

Entro decidida a não cumprir mais do que o mínimo estritamente imposto pelo protocolo da amizade incumprida. Não porque o coração me fale de regras sociais, de condutas e parcimónia; mas porque não quero que penses que só estou aqui por causa da tragédia. Que se a tragédia não tivesse acontecido, nunca iria aparecer. A verdade é que só estou aqui por causa disso. Se isso não tivesse acontecido, talvez nunca caminhasse em direcção a ti. Nunca caminhei. E podia tê-lo feito. Isso, neste preciso instante, envergonha-me. Mais, dói-me.

Entro na capela pela primeira vez desde a vez do avô. Percebo imediatamente que nunca chega a haver tempo para recuperar o prazer de cheirar as flores. As flores trazem sempre perdas agarradas ao cheiro. Não tenciono sequer dar-te os dois beijos com a etiqueta das condolências. Talvez, apenas, piscar-te um olho, soprar-te um sorriso; quando muito, pousar apressadamente a mão no teu ombro. Sim, achava que para quem se perdeu há tanto tempo, isso seria suficiente. Ou, pelo menos, menos embaraçoso. O pudor, às vezes, tem em nós efeitos contraditórios. É difícil saber o que é mais acertado.

Procuro com o olhar alguém em quem possa depositar a dor, funda e genuína, mas infinitamente inferior à tua. Quando o olhar estaciona, já estou a tropeçar nos teus pés como tropeçava, aflita, quando éramos pequenos e, ao domingo à noite, atiravas pedras para a janela do meu quarto para nos despedirmos antes de ires para o seminário. Não sei quem caiu no colo de quem. Mas, às tantas, estamos ali, outra vez, nos braços um do outro. Um abraço apertado, demorado, do coração. A vida inteira dentro desse abraço. Volto a tratar-te pelo diminutivo. Tu, também. Os nomes com diminutivo só são permitidos aos amigos de infância. São os únicos que conhecem a chave de um tesouro a que nunca mais ninguém terá acesso.

domingo, abril 22, 2007

Creep

Ele vai casar num dia qualquer do Verão. Ela vai continuar a espalhar a poeira da desordem em corações masculinos que, ainda não sabem, mas não hão-de recuperar. Ele vai casar com alguém que tem o nome dela, mas que não é ela. Diz a rir que assim que nunca se engana. Ela não se perdoa, mas também não se arrepende de ter traído com ele o namorado que, por causa disso, perdeu. Disse que tinha que ser, que sabia que haveria de ser, nem que fosse com o único homem que não merecia. Ele acredita que ela ainda treme quando ele chega. Ela responde que ele nunca andará com ninguém à chuva como anda com ela. Ele confessa que ainda tem ciúmes. Ela recorda-lhe que ele vai casar.

Ele é do Norte. Ela é do Sul. Conheceram-se no mês do Verão que ele escolheu para casar. Há dez anos que falam todas as semanas ao telefone. Nem que seja para dizerem que não têm nada para dizer. Contam os dias para se encontrarem, três, quatro vezes por ano, não mais. E nunca de propósito. É imperativo que haja acontecimentos sociais de ordem colectiva: funerais, casamentos ou celebrações de espécie aproximada. E quando se encontram não se largam. Não é sequer um acordo tácito - é assim, são parte um do outro. Ele vai casar com a namorada que já traiu com ela. Ela limpa os óculos, ri, diz que está tudo bem. Lembra que têm uma canção só deles, como os namorados. Ele diz que não tem uma canção com mais ninguém. "I wish i was special; you're so fuckin' special..."

quinta-feira, abril 19, 2007

Michel Houellebecq: As partículas elementares


"Conhecemos as pessoas durante anos, até mesmo dezenas de anos, habituamo-nos a evitar os problemas pessoais e os assuntos verdadeiramente importantes, mas guardamos a esperança de que, mais tarde, em circunstâncias mais favoráveis, se possam justamente abordar esses assuntos e esses problemas. A esperança, sempre adiada, de um relacionamento mais humano e mais completo nunca desaparece completamente, porque nenhuma relação humana se contenta com limites definitivos, restritos e rígidos, Permanece, portanto, a esperança, de que haja um dia uma relação «autêntica e profunda». E permanece durante anos, até mesmo décadas, até que um acontecimento definitivo, brutal (em geral, uma coisa como a morte) vem dizer-nos que é demasiado tarde, que essa relação «autêntica e profunda», cuja imagem tínhamos amado, também não existirá; não existirá, tal como as outras".

domingo, abril 01, 2007

The End


Sem ilusões não há desilusões. Sem metas traçadas não há caminhos fracassados. Sem ilusões e sem metas o Coriscos chegou ao fim. Ao fim de quase 500 posts e mais de 15 mil visitantes - a maior parte por engano, obviamente. Houve dias que superaram as cem visitas - preciosas para massajar a fragilidade do ego - e nunca dias de visita nenhuma. Mesmo quando a vida estava em pause. E o que existia era tão inócuo que não merecia sequer a abertura da janela. Os números, apesar de tudo, revelam pouco, quase nada deste ano e meio.
Os blogues são como as histórias de amor - quase sempre acabam, quase sempre quando há juras de eternidade. E como no amor, é bom enquanto dura. No início, a dependência intelectual encontra prazer no corpo inteiro. Depois, vai esmorecendo, obedecendo a intermitências. Por fim, a liberdade que antes se sentira transforma-se numa prisão. A liberdade de tudo poder dizer, sem condições e sem condicionantes, a vida que se sabe ou que julga saber-se, as opiniões que dispensam sustentabilidade, que podem só atirar-se para uma plataforma sem juíz como quem atira o coração do topo de um precipício. A liberdade de ceder à tentação, que só se percebe irresistível quando se experimenta, de escrever sobre o que antes se criticara: as declarações de amor, de amizade, os episódios que não interessam a ninguém senão a quem os protagoniza, os momentos de fraqueza, os nossos, os dos outros, a vampirização da vida alheia que se reconstrói com bacoco pretensiosismo literário, as saudades do passado e de quase tudo, os medos, os fracassos, as paixões efémeras, as obsessões, as dúvidas, as inquiteções, as férias, as boas, as menos boas. As viagens, o país. O mundo. A política da paróquia; a política da nação. As embirrações. A efervescência. E a partilha do que se , do que se ouve, em casa, em concertos memoráveis, em festivais, do que se no cinema, no teatro - os dramaturgos que nos enchem, os encenadores que nos desarmam -, nas galerias de arte, na rua, do que nos rende, dói, comove, exalta, exaspera, desespera, prende, o que achamos que podemos antecipar ou salvar, sempre com a secreta de esperança de inspirar alguém ou alguma coisa que não se sabe muito bem quem ou o que é. Nem sequer se sabe se o motor da motivação é o outro ou simplesmente o umbigo.
O Coriscos foi essa plataforma alternativa, livre, apaixonada para uma dessas muitas criaturas que não imagina a vida sem escrever. Foi laboratório de escrita, espécie de work in progress numa tentativa desesperada de escrever mais, de escrever melhor, de testar registos, de acelerar a escrita. De perpetuar o momento que não volta. Mas sempre ao sabor do vento. Um espaço de anarquia. Onde era possível nascer e morrer todos os dias. Até ser tão alternativo e livre e apaixonado que o prazer do corpo deixou de acompanhar o desejo intelectual. Transformou-se num espaço irreal, autista, num repositório de verdades dúbias, de vida que não existia senão para ser debitada. E da liberdade ficou só essa dependência vagamente insana. Como se fosse possível cumprir aqui o que não se cumpre, e devia, noutras paragens.
"Somos todos pretensiosos porque todos fingimos ser aquilo que tentamos cumprir". Não é axioma, mas vale a pensar nisto. O Coriscos nasceu em segredo e cresceu à vista de toda a gente. Ganhou amigos, insuspeitos e improváveis. E foi bom enquanto durou. Mas agora o vento sopra para parte incerta. E exige silêncio. Obrigada pela viagem.