É um "solitário na selva" porque diz não ter com quem conversar. Herdeiro da "loucura dos anos 70" e de um ideal de liberdade, que continua a perseguir, e que passa por não ter horários a cumprir, Júlio é, aos 43 anos, pai de dois filhos exemplares: um tem 22 anos e é finalista de engenharia mecânica; o outro tem 16 e é campeão nacional de natação. Vivem com a avó materna. Quase nunca os vê "para não os traumatizar". Mas lembra-se do tempo em que o dinheiro que ganhava como chefe superior da alfândega dava para consumir - ele e a mulher que entretanto perdeu - e para lhes pagar os melhores colégios, sempre particulares. "Tenho muito orgulho por eles não serem como eu e umas saudades que às vezes me tiram o ar. Mas não quero que me vejam assim", insiste. Se o vissem, veriam um homem extraordinariamente bonito, aparentemente apaziguado, de voz doce e culto. "Tenho o 11º ano completo e o gosto pela leitura. Leio o Público todos os dias. Não sou burro. Por isso, sou solitário".
Não quer ver os filhos. E também não quer ver a mulher com quem esteve casado 12 anos e por quem continua "terrivelmente apaixonado". Diz que sabe que ela sente o mesmo, que não o esqueceu. "Sei porque sei, sei porque sinto". Se se juntarem arruínam-se. "Não é possível manter uma relação saudável entre duas pessoas que consomem. Fica muito caro. Caro ao ponto de não ser possível sustentar". É possível quando uma das duas não consome? "É pior. Implica muito sofrimento e privação. Tudo gira em torno de quem precisa. Por isso continuo sozinho. Não quero magoar ninguém".
Não pede dinheiro para a droga, não rouba, não arruma carros. Faz os "canecos" - espécie de cachimbo em miniatura - necessários para o consumo da heroína com restos de alumínio e com varetas de guarda-chuvas que encontra na rua e vende-os a cinco euros. "Faço uma coisa e pagam-me por isso. É honesto, não é?". Há dez anos consumia cem contos por dia; hoje, dez euros bastam-lhe. "Acalmei, é verdade, mas continuo a querer ver as luzes todas que vi quando experimentei drogas duras pela primeira vez. O Porto todo com milhares de luzes e o lado de lá da marginal. Não nego: continuo a querer sentir isso. Mas também ainda não morri, não é?"
Não morreu e sente-se "abençoado por não ter sida". Quando ouviu falar do vírus, algures em Espanha dos anos 80, já tinha trocado demasiadas seringas, já tinha penetrado demasiados corpos que nunca mais voltou a ter. "Fiz as análises de olhos fechados. Quando soube o resultado senti que a vida tinha recomeçado, que nunca mais nada voltaria a ser como antes".
Quando avisou o patrão que ia despedir-se, o homem abraçou-se a ele a chorar. "Contei-lhe que estava de tal maneira desorientado que podia começar a fazer asneiras. E não queria. Ele chorou por nunca ter percebido". Por nunca ter percebido que não havia uma única hora do dia em que "o funcionário em quem mais confiava" vivia preso. Que se fechava na casa de banho para se injectar. E que o salário já não acompanhava o ritmo das ressacas. Deixou de se injectar depois de ter passado cinco anos na prisão. "Mas não posso dizer que não gostei. Era diferente". Aliás, acrescenta, "tão diferente como a droga do estabelecimento: melhor, mais fácil de comprar e mais barata".
Tem dúvidas em relação à instalação de uma sala de consumo assistido no bairro que agora frequenta. "Não gostava que os meus filhos me vissem a entrar para lá. Não gostava que as pessoas começassem a encarar o consumo com naturalidade. Não é natural. E não gostava que um dia os meus próprios filhos entrassem numa dessas salas". Por bem menos repreendeu o mais novo. "Tive uma conversa séria com ele quando soube que fumava tabaco. Não há sensação pior do que falar com alguém quando não se tem moral para falar". Mas tem certezas em relação ao futuro. "Sei que vou sair daqui. E que vou deixar de ter que viver sozinho para não magoar as pessoas". Recorda a última conversa que teve com o pai no último dos nove dias em que esteve internado no sanatório com tuberculose. "Sei que não cumpri a 100% o que esperavas de mim. Desculpa-me", pediu-lhe, com a mão na mão de quem não lhe respondeu.
Um dos dois telemóveis que traz presos na cintura começa a vibrar. "Os telemóveis são tão importantes para mim como um braço. Sem eles não vivo". Do lado de lá do telefone alguém o chama. Júlio perde a serenidade, diz que tem que ir embora. Um dia diz que vai montar um projecto nas escolas "para explicar aos jovens que a droga não é o caminho". Mas hoje ainda é demasiado cedo para isso.
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