sábado, abril 30, 2011

IV

"Eu percebia que não sabia pensar; eu achava que tinha a capacidade - tão-só a capacidade - de pensar: aquela capacidade era um enorme mistério para mim, talvez da mesma forma que um útero é para uma mulher. Quando tentava pensar vagueava pela minha cabeça, mas não só pela minha cabeça; era-me impossível sentar e permanecer ali quieto, a pensar: tinha de estar em movimento e a fazer alguma coisa; e a minha atenção esvoaçava, pousava, guinava, retornava. Quase toda a gente que eu conhecia pensava melhor." Harold Brodkey

Shelter


Pirateámos músicas lindas e depressivas. Trocámos músicas com asas e upgrade carnal. Expulsámos regras, contraditámos a vida, ficámos leves. Queríamos agradecer a surpresa, o verão, o requinte e a malvadez. Queríamos apelar à motivação, tirar os pés do travão, trautear o amor em câmara lenta, ficar na primeira fila da plateia, passar sempre na mesma rua, naquela rua, seguir os passos um do outro e tropeçar num abraço, num beijo, num vestido despido. Experimentámos os eclipses todos, todos os cometas raros e mais que houvesse no planeta solar. Demos as mãos e queimou. Encomendámos sonhos e lollipops, recebemos paz e liberdade. Criámos um planeta só nosso, doce, mágico e solidário. Um redemoinho em contenção constante, um carrossel em entrega acelerada. A nossa cápsula. Onde rimos, rimos e rimos. Meu amor. Dizem que somos loucos. Somos só libelinhas. Às vezes, à chuva. Às vezes, presas na aranha. Sem medo de voar à noite. 

Oh, sadness I'm your girl

sexta-feira, abril 29, 2011

III

“Nem um gesto de paciência:
o sonho ao nível de todos
os perigos.”
 António José Forte

quinta-feira, abril 28, 2011

A morte do palhaço


De uma galeria de personagens gastas pela “existência, pela ambição e pela febre” emerge a figura de um Palhaço, que exprime melhor do que ninguém o “lado grotesco da desgraça e a amargura do riso”. À parte o desespero, poderíamos dizer deste Palhaço criado por Raul Brandão (1867-1930) que tem dentro de si todos os sonhos do mundo, “como se um bicho de esgoto criasse asas e se pusesse a voar”. Quando passaram 20 anos, "O Bando" relê um texto onde já foi feliz e revisita a música composta por José Mário Branco, mas a este gesto dificilmente poderíamos chamar reposição, porque no teatro aquilo que foi não voltará a ser. E porque no caso concreto destes incansáveis alquimistas, a inscrição de um espectáculo numa nova paisagem cénica e dramatúrgica implica necessariamente outras formas de organização e percepção. A Morte do Palhaço que co-produzimos e apresentamos no claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória é uma visão em tudo diferente daquela estreada em Lisboa no ano de 1991, na sala do Teatro Maria Matos. Quando passaram 20 anos, João Brites regressa inquieto aos mesmos pontos de interrogação: “Quais são os nossos sonhos e quimeras? E que força precisamos para os atingir? E quem são os nossos pares nesta luta?”

uma criação Teatro o bando; texto Raul Brandão: dramaturgia e encenação João Brites libreto Nuno Júdice composição musical José Mário Branco espaço cénico Nuno Carinhas direcção musical Jorge Salgueiro corporalidade Jo Stone figurinos e adereços Clara Bento interpretação Ana Brandão, Guilherme Noronha, Paulo Castro (actores), Diogo Oliveira, Inês Madeira, João Sebastião, Sara Belo, entre outros (cantores), Sandra Rosado (bailarina) co-produção Teatro o bando, TNSJ
Mosteiro São Bento da Vitória, PortoAté 15 de Maio

quarta-feira, abril 27, 2011

Last Goodbye


This is our last goodbye
I hate to feel the love between us die.
But it's over
Just hear this and then I'll go:
You gave me more to live for,
More than you'll ever know.

Well, this is our last embrace,
Must I dream and always see your face?
Why can't we overcome this wall?
Baby, maybe it's just because I didn't know you at all.

Kiss me, please kiss me,
But kiss me out of desire, babe, and not consolation.
Oh, you know it makes me so angry 'cause I know that in time
I'll only make you cry, this is our last goodbye.

Did you say, "No, this can't happen to me"?
And did you rush to the phone to call?
Was there a voice unkind in the back of your mind saying, 
"Maybe, you didn't know him at all,
you didn't know him at all,
oh, you didn't know"?

Well, the bells out in the church tower chime,
Burning clues into this heart of mine.
Thinking so hard on her soft eyes, and the memories
Offer signs that it's over, it's over.

Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
Oswaldo Montenegro

domingo, abril 24, 2011

Socialismo ou morte. Morte da revolução?

[Foto: Jordi Burch]

"A revolução cubana morreu de morte natural e Fidel Castro foi convidado do seu próprio enterro enquanto o seu irmão Raúl se prepara para extrair as vísceras do cadáver e proceder ao seu embalsamento.” Foi assim que Vicente Botín, jornalista e escritor espanhol, descreveu antecipadamente, ao diário El País, o VI Congresso Comunista Cubano, o primeiro em 14 anos, que decorreu na semana passada, em data coincidente com o 50º aniversário da vitória do socialismo cubano sobre uma pretensa tentativa de invasão norte-americana, na praia Girón, na famigerada Baía dos Porcos. Abril de 1962.

A imprensa mundial ocupou os últimos dias a colocar flores na campa da ilha castrista, o mesmo lugar onde Raúl Castro garante que se limitou a semear uma reforma económica. Uma reforma cheia de contradições, típico em Cuba: apelou-se à necessidade de rejuvenescimento, mas não se substituíram dirigentes (só o próprio Fidel saiu da cúpula do PPC); o poder passará a ter uma limitação de dez anos, mas Raúl, já octogenário, não o deixará sem antes beneficiar da sua própria regra. Sobrevivendo, sairá com 90 anos. Em 2021.

Seja como for, com os “combatentes” no fim da vida, desenha-se um processo revolucionário em curso, mesmo se lento e desprovido da conotação simbólica do PREC português. Resta saber se os sucessores farão justiça à herança: resistirá o socialismo ou assinar-se-á a certidão de óbito da revolução? Voltamos a Botín. O autor do livro “Raúl Castro: La pulga que cabalgó al tigre” cataloga o momento como “o mito do eterno retorno”. “Raúl quer recauchutar os pneus usados sem reconhecer que Cuba precisa de um carro completamente novo para transitar para a democracia. Fidel assistirá ao seu próprio funeral, talvez convencido de que, depois da tempestade, o seu irmão Raúl irá recuperar a essência do que foi, ou quis acreditar que foi, a revolução cubana”.

É como se se tivesse decretado um intervalo no socialismo cubano para provar ou experimentar uma espécie de capitalismo. Só não se sabe se, desta vez, esse intervalo terá fim. É difícil escrever uma única frase sobre Cuba que não termine em interrogação. Mesmo que o recente anúncio reformista, eufemisticamente denominado “modelo de actualização”, não passe de um interlúdio, o que será de Cuba depois da morte da geração que fez a revolução? A pergunta é antiga, mas ganha particular pertinência numa altura em que essa geração pisou já quase toda a barreira dos 80 anos. Mesmo Ramiro Valdés, que muitos apontam como sucessor de Raúl Castro, tem 79 anos. A incógnita de Cuba estará, portanto, menos relacionada com a reforma económica e mais com a inevitabilidade da morte dos revolucionários. Apesar disso, foi o anúncio reformista que deixou o mundo alerta para os próximos capítulos.

Raúl Castro, a quem o irmão, Fidel, 84 anos e grave problema de saúde, cedeu o poder em 2006, apresentou num documento que baptizou como “Projecto de Directrizes da Política Económica e Social” cerca de 300 medidas para reduzir o papel do Estado na economia e estimular a iniciativa privada. Na ilha onde “pleno emprego” rimava com salários simbólicos (média de 25 euros) e socialismo com falta de liberdade; na ilha onde a taxa de alfabetização (99,8%) é a melhor do mundo (antes da revolução, 23,6% da população cubana era analfabeta), o serviço de saúde completamente gratuito (embora escasseiem medicamentos nas farmácias) e onde mais de 85% tem casa própria; nessa ilha cheia de ideais e paradoxos, o manual de instruções vai passar a ser outro.

Cuba prepara-se para despedir mais de um milhão de funcionários públicos (o governo emprega 86% da população); incrementar a produtividade e o nível de motivação dos salários eliminando o igualitarismo; abolir a caderneta de racionamento (entrega a preços simbólicos de açúcar, frango, peixe, ovos, arroz, café, azeite e pão aos 11,2 milhões de habitantes do país); descongelar o mercado imobiliário (será possível comprar e vender ou arrendar casas, mesmo a turistas); eliminar toda a espécie de subsídios; reduzir a despesa em transporte e alimentação escolares; limitar as matrículas no ensino superior às necessidades da sociedade; liquidar empresas públicas que não apresentem lucros; não comparticipar no capital das empresas privadas; rever o sistema fiscal. A lista é extensa.

De repente, parece que Raúl é Judas, o traidor da revolução. A verdade é que a revolução cubana sempre sobreviveu sob o patrocínio de potências externas. E desde que a União Soviética colapsou, em 1991, deixando de injectar anualmente milhões de dólares numa Cuba que passou fome, o próprio Fidel foi, por várias vezes, obrigado a ceder aqui e ali. Em 2003, tentou atrair investidores estrangeiros acenando com ausência de impostos, salários baixos (muito baixos) e mão-de-obra altamente qualificada. E conseguiu. Mais de metade dos investidores provém da União Europeia, aposta nas áreas do turismo, energia e telecomunicações.

Daí que Vicente Botín tenha referido “o mito do eterno retorno”. Cuba sempre acreditou que podia estender a mão quando precisava, mas sem nunca abdicar dos princípios. “Nós, nem de longe, vamos renunciar aos nossos princípios marxistas-leninistas, aos nossos princípios socialistas”, declarava Fidel Castro, em Julho de 1977, numa entrevista à revista brasileira Veja, a poucos dias de completar 50 anos. Afirmou-o a propósito de uma putativa reconciliação com os Estados Unidos que, 33 anos depois, ainda não aconteceu. O embargo comercial dura desde 1962.

Acontece que Fidel (e Raúl e Ramiro e os outros todos) já não tem 50 anos nem a vida pela frente. Por isso, José Fernandes Fafe, ex-embaixador de Portugal em Cuba no pós 25 de Abril (entre 1974 e 1977), autor da primeira biografia de Che Guevara (”De Cuba al Terzo Mondo”), diz que só há dois caminhos e ambos passam pelo capitalismo. “É muito difícil prever o que vai acontecer ao mundo e sobretudo se vai ser melhor ou pior. Não podemos dizer, por antecipação, que Cuba será um lugar melhor se e quando não restar nada da revolução. Da mesma forma, não podemos olhar para trás e dizer que este período, de 1959 até hoje, com restrições duríssimas, foi inútil”. Apesar da incerteza, o autor de uma das mais completas biografias de Fidel Castro (”Fidel por José Fernandes Fafe”) afirma: “O progresso do capitalismo em Cuba vai criar desigualdades. Quanto maior for a liberdade, maior será a desigualdade. E Raúl está a fazer tudo ao contrário do caracteriza o socialismo cubano.” Significará, então, meio século em vão? Depende do caminho.

“Para despedir pessoas do sector público e transferi-las para o privado é preciso criar emprego. E o emprego só se cria com investimento estrangeiro. Se esse capital for americano, arrisco dizer que, de facto, talvez a revolução não tenha valido a pena. Mas não podemos esquecer que, na América hispânica, estão a surgir grandes potências, como o Brasil ou o México. E se os investidores forem esses, voltamos à incógnita.” Em todo o caso, sublinha, “estamos perante uma mudança de modelo económico”.

Mário Carvalho, da Comissão Porto Com Cuba, tem uma visão diferente. “Não é propriamente uma mudança de paradigma, porque a iniciativa privada já existia. A única diferença é que passa a ser declarada”. De resto, acrescenta, “Cuba nunca teve pleno emprego. Não havia desemprego, mas havia subemprego, gente que não trabalhava a tempo inteiro. Agora, vai ser estimulada a procurar novas formas de subsistência”. Ele chama-lhe “actualização inteligente”. E recusa a “morte da revolução”. “Só pode compreender Cuba quem conhecer o seu povo, que é extremamente culto. Claro que há gente descontente, subaproveitada. Tal e qual como cá”, diz. “Só que lá”, atesta a voz da experiência que quem lá esteve, “junta-se um milhão de pessoas em Havana no primeiro dia de Maio. Essa gente, nova e competente, não vai deixar morrer a revolução, vai assumir a continuidade da herança.” No aspecto da sucessão, José Fernandes Fafe tende a concordar. “Há um extracto social decisivo que vai herdar o fidelismo. É gente das forças armadas, formada por Raúl. São oficiais que estudaram nas melhores universidades do mundo só para saber gerir empresas. É a esses que está entregue a resistência da revolução.” Fafe e Carvalho discordam no desejo de evasão dos cubanos. Para o primeiro, “não haverá, a curto prazo, qualquer alteração no que diz respeito às liberdades individuais”; para o segundo, “essas sempre existiram” e “as dissidências não têm expressão”.

Aconteça o que acontecer, será “um processo muito lento”, garante o diplomata português. Por isso, Fidel que dizia, à Veja, que “se tivesse o privilégio de viver outra vez, lutaria com a mesma paixão pelas mesmas coisas”, não deverá viver o suficiente para ter o desgosto de ver a revolução cubana morrer. Não significa que ela não viva a prazo.

sexta-feira, abril 22, 2011

1001 covers para ouvir antes de morrer

Há dias em que deambulamos pela rua perdidos à procura de alguma coisa que não podemos encontrar. Fora de nós. Com sorte, descobrimos outras. Coisas em que nunca tínhamos reparado. Que não veríamos se não fôssemos só assim perdidos à procura de nada. Quando deambulamos pela internet perdidos é a mesma coisa. Num desses passeios encontrámos isto: 1001 covers para ouvir antes de morrer. E provavelmente não teríamos sequer piscado o olhar se não tivéssemos logo tropeçado em Matt Berninger. Quem mais, além dele, conseguiria transformar esta canção lamechas dos Crooked Fingers numa canção maravilhosa? (Depois, ali assassina-se muita coisa, mas há outras que vale a pena descobrir.)


Cold ways kill cool lovers
Strange ways we used each other
Why won't you fall back in love with me?
There ain't no way we're gonna find another
The way we sleep all summer
So why won't you fall back in love with me?

quinta-feira, abril 21, 2011

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o acto sem continuação, o acto em si,
o acto que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

Carlos Drummond de Andrade
[1902-1987]

quarta-feira, abril 20, 2011

V

My candle burns at both ends,

It will not last the night.*

*Edna St. Vincent Millay

Franz Kafka: Carta ao pai


"Tu, no fundo, és um homem bondoso e sensível, mas nem todas as crianças têm a perseverança e a coragem para procurarem tanto tempo até descobrirem o caminho da bondade. (...) Quando eu começava a fazer alguma coisa que não te agradava e tu me ameaçavas com o fracasso, o meu respeito pela tua opinião era tão grande que o fracasso era inevitável, ainda que só se fizesse sentir mais tarde. Perdi a confiança naquilo que fazia por iniciativa própria. Tornei-me inseguro, ficava cheio de dúvidas. À medida que eu ia crescendo, cresciam também as objecções que fazias para provar a minha insignificância, e a pouco e pouco passaste mesmo, de certo modo, a ter razão. Longe de mim, uma vez mais, afirmar que só me tornei assim por tua causa; tu limitaste-te a agravar o que eu já era, mas agravaste-o muito, porque tinhas um enorme poder sobre mim e aplicavas nele toda a força. (...) Entre mim e ti não chegou a haver propriamente luta, eu fiquei fora de combate em pouco tempo, e o que me restou foi a fuga, a amargura, a tristeza, o debate interior.

(...) Não é absolutamente necessário voar e entrar pelo sol adentro, basta rastejar até um lugarzinho limpo nesta Terra onde de vez em quando o sol brilha e nos podemos aquecer."

terça-feira, abril 19, 2011

The company men by John Wells (***)



É tramado quando um filme mau (demasiado mau para aquela quantidade de bons actores) nos bate tanto. Significa que estamos mais perto dele do que gostaríamos. Este é sobre a crise financeira, sobre presidentes de empresas que ganham por ano 700 vezes mais do que o funcionário de salário médio e que na hora de aperto (?) decidem sempre pelo downsizing. Despedir. Três, quatro, cinco mil funcionários, os que forem precisos. Sobre gente qualificada que fica desempregada aos 60 anos. Sobre gente qualificada que fica desempregada aos 35. Sobre gente que estudou tudo o que havia para estudar. Sobre gente que acreditou que, trabalhando, podia progredir, sustentar uma casa e uma família. Sobre gente que acreditou que podia para sempre viver perto da família. Não emigrar. Este filme é sobre gente que perdeu tudo para que uma minoria possa continuar a ter ilhas e aviões privados, jantares de 500 dólares e noites em suites de hotel de cinco mil dólares. É sobre gente que conseguiu recomeçar do zero e sobre gente que suicidou. Este filme é sobre a roleta russa que já somos. Infelizmente, a nossa vida não é um filme americano. Quem sabe quem terá direito a um happy end?

segunda-feira, abril 18, 2011

Evening



The sky puts on the darkening blue coat/ 
held for it by a row of ancient trees;/ you watch: and the lands grow distant in your sight,/ one journeying to heaven, one that falls;
and leave you, not at home in either one,
not quite so still and dark as the darkened houses,
not calling to eternity with the passion
of what becomes a star each night, and rises;

and leave you (inexpressibly to unravel)
your life, with its immensity and fear,
so that, now bounded, now immeasurable,
it is alternately stone in you and star.

Rainer Maria Rilke

Insónia



Não sei há quanto tempo dura nem quanto tempo vai durar. Sei que acordo todos os dias sem vontade de acordar. Tento não inquietar os agentes externos, tento fazer o que fazia quando gostava de acordar, sorrir, tagarelar, brincar. Mas já não consigo adormecer sem ajuda externa, sem aquela pílula de estabilização do sistema nervoso à qual também eu jurei nunca recorrer. Não consigo desligar a ficha, nem a dormir. E todos os sonhos me surgem em folhas negras excel. Já nem sei se é falta de liquidez ou insolvência mental, mas quem me dera houvesse uma única parte de mim da qual a minha cabeça pudesse ser expulsa! E, já agora, o coração também. 

It must be great to be straight

Rodrigo Olivares: "Portugal estaria claramente melhor com uma reestruturação antes do resgate do FMI e UE"

[Foto de Carlos Pinto Coelho, que faria hoje 67 anos]

[Eu sei que este blogue está cada vez mais deprimente. Mas, vivendo neste país, é impossível estar de outra forma]

Rodrigo Olivares-Caminal nasceu na Argentina, um país marcado por defaults, e veio a tornar-se num especialista internacional na matéria. É professor de Direito Financeiro na Universidade de Londres, depois de se ter doutorado em Warwick onde ficou a dar aulas. Investiga há vários anos os mercados financeiros e, mais especificamente, as incumprimento de dívida publica e as insolvências do sector privado, área onde tem vários livros e artigos publicados com chancelas como as das Nações Unidas – UNCTAD; Cambridge University Press, Oxford University press; Banco Mundial; Journal of Banking Regulation, entre outros. No currículo conta ainda com passagens como professor convidado de vários cursos pós-graduados nesta área, desde Londres à Grécia, passando por Buenos Aires. Tem acompanhado de perto a crise da dívida soberana na Europa, nomeadamente os casos grego, irlandês e islandês. Falou com o Negócios esta semana e não tem dúvidas: Portugal deveria renegociar a sua dívida pública.

Para Portugal teria sido preferível uma reestruturação antes ou depois deste empréstimo da UE e FMI?
Seria sem dúvida melhor uma reestruturação antes. Mas tal não vai acontecer: por pressões políticas, Portugal irá em primeiro lugar aceitar o empréstimo e só depois reestruturar.

Muitos economistas defendem que uma reestruturação, pelo menos na Grécia, mas também na Irlanda e Portugal, é inevitável. Se assim é, porque é que não acontece de uma vez?
Numa fase muito inicial, os líderes europeus tentaram salvar a Grécia, pensando que, assim, acalmavam os mercados para, logo que possível e sem ninguém esperar, anunciarem uma reestruturação. Não foi o que aconteceu porque os mercados não acalmaram mas, digo-lhe: na Grécia vai acontecer. É inevitável.

Porquê?
Dada a dinâmica da dívida, não vai ser possível resolver o problema só com austeridade. E os mercados já sabem isto: as obrigações gregas estão hoje a desconto de 70%. Além disso, com o empréstimo internacional a Grécia quase duplicou a sua dívida pública, estando a passar a mesma dor de ajustamento, mas sem reestruturação.

Fala de reestruturação quase como se não houvesse efeitos negativos...
Eu conduzi um estudo para as Nações Unidas onde chegámos a duas grandes conclusões. Por um lado, não há assim tantos efeitos negativos. Por outro, o mercado distingue claramente quando um "default" é oportunista/político - como o do Equador em 2009 - ou se é o resultado de uma situação de elevado "stress" económico e financeiro - como acontece na Grécia e em Portugal. Nestes casos, há um efeito reputacional, mas não é assim tão elevado.

Acha que a Irlanda e Portugal deveriam reestruturar a dívida?
A Irlanda é um caso muito diferente, pois o problema está muito centrado no sector bancário. Em relação a Portugal, que está mais próximo da Grécia, sem dúvida.

Há exemplos que podem ser tidos como de referência?
As crises grega e portuguesa têm os mesmos elementos de base de qualquer outra crise: tentam evitar o inevitável, e no fim acabam por reestruturar, passam por um grande "stress" durante algum tempo e passado um ano ou dois voltam a crescer. O que sugiro à Grécia e a Portugal é que façam uma reescalonamento da sua dívida. Isto é, antes de um "default", deveriam chamar os credores e convencê-los que este é o momento para negociar novas condições. Os credores percebem quando as decisões são inevitáveis.

Mas quem já fez isso?
O Uruguai propôs um reescalonamento da sua dívida, com uma adesão voluntária de 93%, conseguiram reduzir a sua dívida e poucos meses depois estavam no mercado com taxas de juro baixas.

Portugal tem também muita dívida privada ao exterior: faria sentido um "default" por parte do sector privado? Como é que isso aconteceria?
Há uma grande diferença entre incumprimento público e privado: no sector privado há empresas, e aí há leis de insolvência, o que torna o assunto mais simples. Sendo preferível reestruturar uma empresa do que colocar uma empresa em insolvência, esta é, por vezes, inevitável e é até uma forma de tornar os mercados mais eficientes. Aliás, a dimensão do "default" privado é uma boa medida da dimensão crise. Em casos limite, o Estado pode ser chamado para evitar um descalabro. Na Argentina, na crise de 2001, 95% das grandes empresas tiveram de enfrentar uma reestruturação.

Em caso de incumprimento do país, o FMI tem prioridade?
Sim, tem. O FMI tem um papel muito importante no sistema financeiro internacional: garante financiamento quando ninguém mais o faz ou quando os mercados pedem juros proibitivos. Ora, uma vez que o FMI empresta dinheiro para evitar uma crise mais profunda, acaba por ter prioridade nos pagamentos.

Mas de onde vem essa prioridade?
Não há nada legal que assim o defina, não há um tratado, um contrato, uma Lei. É prática comum internacional.

E o que acontece com os empréstimos da UE?
Com os empréstimo da UE, de forma talvez um pouco injusta por credores já existentes, criou-se uma segunda camada de prioridade, se assim se pode chamar. Primeiro está o FMI, depois os empréstimos da UE e só depois os restantes credores. Novamente nada na Lei diz isto e, no caso da UE, não se sabe como funcionaria muito bem.

Como ser feita uma reestruturação da dívida?
Não conheço em detalhe a dívida pública portuguesa, mas com elevada probabilidade é emitida ao abrigo de Lei do país. Nesse caso, uma extensão de maturidade, uma diminuição do valor da dívida ou qualquer alteração dos contratos pode ser feita simplesmente por uma Lei que assim o defina.

O mesmo não acontece com os empréstimos da UE e FEEF?
Não. Nesse caso o empréstimo será muito provavelmente sujeito à Lei inglesa.

Não se trata portanto de um empréstimo com a mesma natureza jurídica que a dívida pública já existente?
Não do ponto de jurídico. Mas também não do ponto de vista político. Este deve ser visto como um empréstimo político que acontece com grande interesse da França, Alemanha, Áustria ou Holanda que pretendem manter a crise controlada.

[Jornal de Negócios, na última sexta-feira]

domingo, abril 17, 2011

Extrema-direita supera todas as expectativas com 19%

Se a ascensão da extrema-direita nas legislativas da Finlândia desestabilizou o sistema nervoso da Europa e sobretudo de Portugal, o resultado não sossega ninguém: Kokoomus ganhou, mas por quase nada. Nenhuma coligação parece facilitar o resgate português.

Timo Soini, o eurocéptico dos Verdadeiros Finlandeses, era o principal inimigo de Portugal. Afirmou durante a campanha inteira que não aprovaria o resgate financeiro português, porque é completamente avesso ao financiamento das economias endividadas. Em caso de vitória, os portugueses bem poderiam esquecer a ajuda finlandesa. Soini não ganhou, mas com uma votação histórica – multiplicou por oito o resultado alcançado em 2007, conquistando 19% dos votos, o que lhe permite aceder a 35 lugares dos 200 disponíveis no parlamento – o problema de Portugal mantém-se. O partido de Soino foi a terceira força mais votada, demasiado votada para poder ser ignorada. Como o próprio afirmou, “no mínimo, vamos ter de ser ouvidos”. E não, ele não vai dizer “sim” ao resgate.

A Coligação Nacional liderada por Jyrki Katainen – o segundo mais jovem primeiro-ministro na história do pais nórdico – ganhou as eleições com vantagem mínima de 1,4%, seguido pelo partido social democrata, que garantiu 19,1% dos votos, a uma escassa décima de distância dos Verdadeiros Finlandeses. Considerando que o sistema finlandês é baseado em coligações políticas e que não poderá haver aprovação do resgate financeiro português sem unanimidade parlamentar, uma coligação com os sociais democratas poderia atenuar o problema português. Mas Jutta Urpilainen, também já veio esclarecer que concorda com a ajuda a Portugal, desde que “seja realizada noutros termos”. E justificou: “As instituições bancárias e financeiras também têm de assumir as suas responsabilidades”.

Perante este cenário, é o professor de Ciência Política Olavi Borg quem melhor o resume: "Este resultado dará cabelos brancos à Europa”.

E a Finlândia aqui tão perto....


A Finlândia conhece hoje o resultado das eleições legislativas e tudo indica que será Portugal, e a sua necessidade de resgate financeiro, a determinar a opção de voto dos finlandeses. Se os eurocépticos estiverem entre os mais votados, Portugal ganha (mais) um problema.

Esta semana, Pedro Passos Coelho tornou público um episódio privado que servirá não só para ilustrar como Portugal está descapitalizado - de dinheiro e de reputação - como para explicar a nossa súbita relação com a Finlândia. O líder do PSD estaria sentado à mesa de um restaurante, na Madeira, quando um turista finlandês, passando por ele, terá comentado: “Espero não ter de ser eu a pagar essa refeição quando chegar à Finlândia.”

O episódio, que reflecte a crescente falta de vontade dos países ricos (do Norte) em ajudar os países pobres (do Sul), ganha hoje um valor acrescentado, porque os finlandeses, cerca de 4,3 milhões, vão a votos numa altura em que o partido que mais se opõe a ajudar financeiramente Portugal é aquele que mais subiu nas sondagens. E o pedido de ajuda externa português foi precisamente o tema que dominou a campanha.

Com uma intenção de voto que pode superar os 18%, o partido dos Verdadeiros Finlandeses, liderado pelo populista e eurocéptico Timo Soini, não deverá vencer as eleições – tudo indica que será o partido de Centro-Direita, Kokoomus, a ganhar –, mas a Finlândia é o único Estado-membro da zona euro cuja concessão de empréstimo, através do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), depende não só da autorização prévia do Parlamento como de uma decisão tomada por unanimidade. E em véspera de eleições nada pode garantir que Timo Soini, 49 anos, não venha a integrar um governo de coligação. Pelo contrário. Até porque o sistema filandês não permite maiorias absolutas. Se há quatro anos o seu partido ocupou apenas quatro dos 200 lugares disponíveis, a partir de amanhã, a ocupação poderá mais do que quadruplicar.

O pensamento profundamente anti-europeu de Soini, adepto fervoroso de futebol e católico praticante num país onde mais 90% pratica o luteranimo, resume-se na frase que usou num dos debates televisivos e que não oferece margem para dúvidas: “Os países nórdicos não podem continuar a financiar as festas do Sul da Europa.” E disse mais: “O nosso governo concedeu um enorme empréstimo à Grécia e garantiu-nos que isso salvaria o Euro. Depois, veio a Irlanda. E agora, Portugal. Durante três meses garantiram-nos que Portugal resistiria. Agora, garantem-nos que não tem alternativa. Pois, a alternativa não é sermos nós a pagar a boa vida dos outros.”

Numa altura em que o principal exercício dos portugueses parece ser decorar o nome dos estrangeiros de quem dependerá o caminho marítimo para a saída da crise, Jyrki Katainen é um bom nome a reter. Todas as projecções apontam o líder do partido da Coligação Nacional como o futuro primeiro-ministro da Finlândia – o oitavo maior país da Europa, embora o terceiro menos povoado. E, ao contrário da Extrema-Direita, Katainen, 39 anos, eleito pelo Financial Times, em 2008, como o melhor ministro das Finanças da Europa, defende o auxílio financeiro a Portugal. Esteve em Budapeste no fim-de-semana em que os ministros das finanças da Zona Euro aprovaram o resgate (o mesmo fim-de-semana do congresso do PS, em Matosinhos) e já afirmou que só irá coligar-se com partidos que respeitem os compromissos já assumidos.

Por outro lado, também já afirmou, que “não há almoços grátis”. Disse-o em Março, referindo-se à Irlanda e à necessidade de assegurar a “sustentabilidade da dívida”. Mas sobre Portugal, quando o resgate era ainda uma incógnita, também foi claro: “Eu sei que o governo português está a fazer o que pode. Mas se os mercados ainda não confiam nele, só lhe resta fazer mais, reformar mais.”

Resta-nos também, a nós que não somos governo, saber quem vai retroceder primeiro: se Katainen na vontade de ajudar Portugal; se Soini na vontade de não ajudar.

What you break is what you get



Alguém pôs Matt Berninger (my current guilty pleasure) a cantar para Krzysztof Kieslowski. E nós rendemo-nos. Se em vez de "The Tram" (1966) fosse "La double vie de Veronique" (1990), teríamos duplo ataque cardíaco.

sábado, abril 16, 2011

Robert Fishman: "Culpa da crise em Portugal é do BCE, UE e agências de rating"


Robert Fishman é professor de sociologia na universidade de Notre Dame, nos EUA. As suas investigações incidem sobre o euro e as implicações da moeda única sobre os países ibéricos. Defende que Portugal não precisava da ajuda internacional, tal como referiu num artigo de opinião publicado no The New York Times (terça-feira), e que o país foi vítima dos especuladores, das agências de rating, mas também da inoperância do Banco Central Europeu (BCE).

Visitou Portugal quantas vezes?
Muitas, a maioria em trabalho. A minha mulher é espanhola pelo que passo parte do ano nos EUA e a restante em Espanha. A primeira vez que entrei em Portugal era ainda estudante de liceu. A trabalho, foi em 1978, durante uma semana. Voltei quinze anos depois. A partir de 2002 comecei a visitar o país regularmente, no mínimo duas vezes por ano.

Quando está em Portugal, encontra-se com quem?
Falo com professores universitários, políticos de vários partidos, alguns ainda estão no activo, líderes sindicais, elementos da sociedade civil, do centro-direita ao centro-esquerda e vários jornalistas. Um deles é o fundador do jornal em que trabalha, Francisco Pinto Balsemão.

Conhece José Sócrates?
Não, mas já entrevistei Aníbal Cavaco Silva, depois de ele ter abandonado o Governo, quando estava no Banco de Portugal, antes de ser eleito Presidente.

Diz que Portugal não precisava da ajuda internacional. Acha que o país foi sequestrado pelos especuladores financeiros?
São as suas palavras, não as minhas, mas, conceptualmente, essa é uma forma muito razoável de olhar para a questão.

Mas porquê Portugal, uma economia tão pequena?
Há uma hipótese que várias pessoas sugerem, que é a de que alguns negociadores de obrigações, especuladores e agências de rating estavam interessados em especular contra Portugal com o objectivo de fazer dinheiro, convictos de que com a sua aposta os juros subiriam. Outra hipótese é o cepticismo ideológico em relação a Portugal. O centro gravitacional da política em Portugal situa-se algures na esquerda, à esquerda de vários países europeus. E os fundamentalistas do mercado, que acham que o mercado deve ser livre de regulações, e que sozinho resolve os problemas do mundo, não gostam de Portugal. Vêem a política de uma maneira muito diferente da maioria dos portugueses. Pensam que são os maiores amigos do capitalismo, mas na verdade são os que lhe criam mais problemas. Em Portugal, a ideologia dominante está perto do Keynesianismo, com base na ideia de que o Estado pode intervir na economia. Eles detestam isso.

Que problemas criam ao capitalismo?
Criam enormes desigualdades sociais, conduzem a uma enorme instabilidade nos sistemas capitalistas. E mais, foi esta corrente que contribuiu, enormemente, para a recessão mundial que começou em 2007. Para crédito de Portugal, o país foi abençoado pelo facto de que os principais partidos, de centro-esquerda e de centro-direita, perceberem que uma economia moderna requer um mercado, mas também necessita de regulações e envolvimento do Estado. Isso funcionou em benefício de Portugal e é uma das razões pela qual Portugal teve muito sucesso entre 1974 e 2000. A visão de que Portugal é um falhanço económico centra-se entre 2000 e 2006.

Não acha que eles olham para Portugal como um empecilho que lhes impede de fazer dinheiro?
Há muitas oportunidades para o mundo dos negócios fazer dinheiro num país com economia mista e com orientações sociais-democratas. Eles não olharam para a história do país de uma forma correcta. Se o tivessem feito nunca teriam sugerido que Portugal tem problemas graves de crescimento. O país teve períodos de enorme expansão económica, guiado por políticas económicas parecidas com as que estão nesta altura em vigor.

Mas se estes fundamentalistas do mercado são assim tão poderosos, a ponto de derrubarem governos, quer isso dizer que a democracia está em risco?
Espero que não, mas parece que a capacidade das democracias de tomarem decisões fundamentais está a ser desafiada. Espero que no final disto tudo a democracia saia reforçada, mas não é claro que esse venha a ser o caso. É muito importante que as forças democráticas, partidos, cidadãos e líderes estejam atentos a esse perigo.

O governo do país mais poderoso do mundo, os EUA, não consegue resolver este problema. Porquê?
Podia fazer algo mais. Gostaria que ele fizesse, mas note-se que o banco central americano, a Reserva Federal, está a fazer muito mais do que BCE. Está activamente, envolvida na compra de obrigações do Governo americano. O BCE também compra obrigações de estados europeus, mas em muito menor quantidade, o que induz um estímulo muito menor na economia. Agora mesmo, o défice orçamental dos EUA é muito maior do que em Portugal, mas os juros são muito mais baixos. Isto acontece porque a Reserva Federal está a comprar obrigações o que possibilita ao Governo americano continuar a estimular a economia. O BCE não está a comportar-se de uma forma responsável.

Ao contrário dos europeus, a Administração Obama não pára de estimular a economia. Essa atitude tem feito a diferença na recuperação dos EUA, mais vigorosa do que na Europa?
Essa é uma das causas da crise que se arrasta. A zona euro está a ser exposta a uma política económica, essencialmente desenhada pela Alemanha. Pode funcionar para a Alemanha, mas não funciona para o resto da zona euro.

Porquê?
Diferentes partes da zona euro têm diferentes problemas económicos e desafios. A Alemanha tem uma especial e invulgar aversão ao estímulo monetário e está mais preocupada com a inflação, tem um medo exagerado da inflação. Esta mentalidade tem exercido uma influência muito negativa na periferia da zona euro - Espanha, Portugal, Grécia, Irlanda. O euro trás mais vantagens à Alemanha do que a Portugal ou à Espanha.

O euro foi bom para Portugal?
Neste momento, a resposta parece ser não. Dentro de dez anos, não sei. Hoje, o euro é a razão por que Portugal é incapaz de definir a sua política monetária, de uma forma que serviria o país. Se Portugal tivesse ainda o escudo podia desvalorizá-lo e prosseguir com uma política monetária que estimulasse a economia. Mas também há virtudes no Euro. O veredicto final sobre o euro ainda não foi escrito. Nesta altura diria que é um problema.


Há responsabilidade por parte dos governos portugueses por terem conduzido o país a um endividamento elevado?
Não sou político e o meu papel não é dizer o que é que os políticos portugueses deviam ter feito. Portugal, como qualquer democracia, precisa de partidos e políticos com visões, opiniões e programas diferentes. Não concordo com a ideia de que esta crise tenha sido criada pelos políticos portugueses. É normal os políticos discordarem uns dos outros.

Considera que o Executivo de José Sócrates estava no bom caminho. Acha que a oposição errou ao ter derrubado o Governo?
A oposição sempre acreditará que se podia ter feito melhor e, em abstracto, é claro que as coisas podiam ter sido feitas de outra forma. Mas quer o Governo quer a oposição comportaram-se razoavelmente. Não têm a mesma filosofia de governação? Tudo bem. Governo e oposição foram razoáveis. Os que não foram razoáveis estão fora de Portugal – BCE, União Europeia e agências de rating.

Estamos a assistir a um lento processo de eliminação das economias mais fracas da zona euro, de maneira a minar o projecto europeu, a União e o euro?
É muito possível que este processo mine a União Europeia e o projecto europeu.

Qual o interesse dos especuladores em destruir o projecto europeu?
Não tenho conhecimento sobre o que lhes vai na mente e embora não acredite que esse seja o objectivo, acredito que esse seja o resultado das suas acções. Mas o que é claro até agora é que as agências de rating têm de ser mais reguladas.


Além de Portugal, Irlanda e Grécia, os especialistas também falam da Itália, Espanha e Bélgica. Qual é o país que se segue?
É muito difícil de perceber. Se olhamos estritamente para a economia diríamos que a situação estará muito pior em Espanha (tem um desemprego muito maior) do que em Portugal. A dívida acumulada da Itália é muito superior à de Portugal, logo depende do que é que estamos à procura. Se a ordem tivesse sido determinada pelas circunstâncias económicas objectivas, Portugal não teria sido o alvo depois da Irlanda porque os problemas económicos portugueses são menos severos do que noutros países. As agências de rating podem ter sido desleixadas ou preguiçosas. Quando apostaram contra Portugal, tiveram em conta apenas a história recente, da última década, sem perceber que antes disso o modelo português criou riqueza e desenvolvimento.

Se tudo continuar na mesma, pensa que os EUA podem ser um alvo?
É possivel que os EUA seja alvo dos especuladores. Se os especuladores impossibilitassem o governo americano de continuar a estimular a economia, então a esperança mundial numa recuperação económica desapareceria.

[Hoje, suplemento de Economia do Expresso]

sexta-feira, abril 15, 2011

An undemocratic bailout

[Pollock]

Portugal needs international help to meet its debt obligations. But the insistence by the European Union and the International Monetary Fund that the caretaker Portuguese government commit to a long-term plan of fiscal austerity and economic reform in exchange for a rescue package is misguided.

The government of Prime Minister José Sócrates fell in March after the opposition rejected its austerity plan to address the economic crisis and is holding on to office only until special elections, which are scheduled for June 5. Not only would any reform package from the outgoing government lack legitimacy, it would lack credibility with investors, who would suspect the next government might not live up to what will inevitably be very painful terms. Rather than try to hammer out a definitive package, the European Union and the I.M.F. should give Portugal a bridge loan and wait to negotiate a deal until there is a new government in place. This would give Portuguese voters a chance to vote on proposals by each party to address the emergency.

In the meantime, Europe needs to rethink its all-pain-all-the-time approach to bailouts. The terms imposed on Greece and Ireland are stifling growth. On Wednesday, Germany acknowledged Greece may have to restructure its debts — rather than pay them in full.

Representatives from the European Union and the I.M.F. landed in Lisbon on Tuesday to negotiate a bailout plan expected to be worth $115 billion. The formula, by now, is predictable: deep budget cuts, cuts to public-sector wages and tax increases. They are also likely to demand that Portugal privatize state-run enterprises and reform labor laws to make it cheaper to hire and fire workers. The approach assumes sharp fiscal tightening will right Portugal’s finances, ignoring how a precipitous drop in government spending will cripple growth and Portugal’s ability to repay its debts. And it is unjust, demanding outsize, lasting sacrifices from the Portuguese people in order to repay Portugal’s creditors 100 cents on the euro.

There is time to get this right. Lisbon appears to have the funds it needs to meet a $7 billion debt-service payment coming due on Friday. While it does not have the money to meet a $10 billion payment on June 15, the European Union could provide short-term financing — with few strings attached — until a definitive deal could be negotiated with the new government. That is the best hope of coming up with a deal that Portugal’s new government and its voters can support — and one creditors will trust.

[Editorial NYT]

Os 15 minutos de sanidade de Marta Rebelo


De gravata cor-de-rosa PS – fushia, em rigor cromático – polegar pronto a elevar o moral, teleponto de lente cristalina sem lugar a enganos mas engasgos de emoção, o líder pergunta se estão com ele. E em apoteose estão todos. Todos se convencem que dia 5 de Junho chegará a vitória. O FMI passa a ser sigla desconhecida e o PSD a besta, numa amnésia colectiva de euforia telegénica produzida pelo maior realizador e protagonista da era mediática da política nacional: José Sócrates, senhoras e senhores. Chegou, discursou, venceu? Não. Mas na bolha da Exponor e até às 14h de domingo passado todos queriam tanto que sim. Fui delegada de sofá (por doença grave) o que me concedeu o distanciamento necessário para analisar aquelas pessoas. Muitas fazem parte do meu quotidiano há tantos, muitos anos. Sou leal, não sou cega. E foi muito mais fácil colocá-los no divã em frente ao meu sofá, tomar-lhes o pulso aos pecados e antever-lhes as vontades recalcadas, com a TV a intermediar-nos o encontro.

Sejamos verdadeiros: o que é que há para salvar? Nem a face. Vencer as legislativas é ganhar uma carga de trabalhos, a gestão da bancarrota e ter o triste contentamento de ser eleito pelos que votarão encolhendo os ombros enquanto a caneta faz a cruz. As sondagens são cruéis: quem vier a seguir, será tão mau quanto quem está. Mas o poder é uma vertigem de loucura, vício e ilusão da possibilidade do salvamento constante. E em euforia estudada, quase acreditando nela, estava lá a constelação dos maiores: José Sócrates, António José Seguro, António Costa, Francisco Assis. Depois, porque a união foi cozida com linha de pesca, da que não quebra senão mordida por um tubarão – e o único que tínhamos retirou-se, Jaime Gama – estavam Carlos César, Manuel Alegre, Ferro Rodrigues. E Edite Estrela a organizar os «peço a palavra» a Almeida Santos, o que valeu a Ana Gomes ser enxotada para a meia-noite de sábado e o pavilhão vazio. Erro – e este PS não costuma fazer destes: as TV´s só queriam uma voz dissonante. Mesmo sem gravata de cor estudada, Ana Gomes teve quase tanto palco quanto Sócrates.

Mas vamos ao futuro. E depois do adeus, o que faziam eles ali? Primeiro é preciso que haja adeus do grande líder. Sócrates é dos que cai de pé. Não bebe cicuta, fareja-a à distância. Vai a eleições. Perde-as, mas por uma unha negra. E quero ver Cavaco a obrigá-lo a retirar-se para outras pistas de sky para possibilitar o bloco central de todos. O homem da esquerda moderna pode bem ganhá-las por uma unha negra, e o imbróglio não muda de figura. Mas muda a vida interna do PS. Seguro respira já os ares do próximo congresso, que muitos dizem ser dentro de três meses. Será eleito, pois claro. Na surdina, nos bastidores, a fazer a sua cama com lençóis de algodão egípcio desde 2004, tecido pelos melhores artesões do aparelho socialista, não acredito que alguém vença Tozé. Tal como não lhe antevejo qualquer feito relevante. Não sabe escolher gravatas nem combinar-lhes as cores. Fala pouco, não vá comprometer-se. No congresso, dirigia-se aos jornalistas dizendo lugares comuns como um jogador da bola na flash interview. Não me identifico com gente que só faz e fala em off, para evitar o compromisso. António José Seguro é o amante que anda com a caixa do solitário no bolso há anos, à espera do momento propício para fazer o pedido sem correr o risco da noiva dizer que não. Calculismo é só forma, e por mais quilates que o diamante tenha não há gemas perfeitas. Pode viabilizar o bloco central? Pode. Vai ser Secretário-Geral do PS? Vai. Um dia Guterres, num momento intimo a quatro, prognosticou que Seguro faria a liderança da esquerda do PS. E como anda há tanto tempo a preparar-se, é seguramente impoluto. Encontrem-lhe lá a careca, desafio-vos. Encontrem-lhe lá o génio ou as ideias, peço-vos.

Se, e só se, daqui a três meses se repetir o conclave socialista, Francisco Assis, atira-se ao caminho de Seguro. Perde, mas como provou em Felgueiras, não tem medo nenhum de levar tareia e tem tempo. É determinado, este nosso povo gosta mais dos fortes do que dos das falinhas mansas, como Seguro. Não tem o aparelho do PS em todo o seu esplendor, mas tem os que vêm minando a vida a António José e se preparam para lhe dar guerra. Tem os que ainda acharem que devem alguma coisa a Sócrates, que tem com António José um ódio mútuo de décadas – mas esses serão tão poucos, num partido as dívidas eclipsam-se todas na má sorte. Tem uma certa continuidade do status quo, sem estar demasiado comprometido com o dito. Tem fibra própria, imagino-lhe um pequeno-almoço menos metódico do que o de Tozé, que se atira voraz às fibras dos cereais saudáveis para o corpo e a mente todas as manhãs. Só que é aqui que Seguro é impossível de bater: no método, na organização, na espera. Nem precisa de esticar muito as pernas quando descansa de esperar sentado.

Depois o eterno amado António Costa. No PS sempre me disseram «costista». Estes alinhamentos lembram-me a «cosa nostra», mas tenho uma admiração assumida pelo edil de Lisboa que me vem ainda da menoridade. Hoje ouso dizer que os timmings vão estando contra ele. E que está errado se vê com solidez a mudança directa dos Paços do Concelho para o Palácio de Belém, à semelhança do seu mentor Sampaio. António, precisa de escolher a cor de gravata certa para o palco adequado, e esticar o tempo como num jogo de xadrez. Xeque-mate?

Manuel Alegre, porque era preciso, foi morder a mão do PCP e do BE, que lhe deu de comer e uma bela indigestão em Janeiro; Ferro Rodrigues voltou, é um homem bom e nestes anos chamou os bois pelos nomes; Carlos César é determinante. Porém não sei que vento ou casamento virá dos Açores. César não gosta de Sócrates, isso um leigo percebe. Foi alegrista como poucos atentando contra a moderação lisboeta; disse à porta do Congresso que o governo cometeu erros e identificou-os: demorou demasiado tempo a reconhecer a existência da crise, a «internalizá-la», foi demasiado keynesiano e a estratégia falhou. Depois, debaixo dos holofotes, disse como os outros, «Zé, estou contigo». É, como figura, mais forte do que Seguro, mas socialistamente mais insular; facilmente se entenderia com Costa, são ambos rijos; com Assis, depende da direcção dos ventos nas Lajes. Curiosamente, disse o mesmo que Ana Gomes foi bradar a palco. Mas lá dentro, na cenografia magnificamente orquestrada alinhou pelo diapasão da unidade.

Este PS precisa de definição. Precisa o país, precisamos todos. Estou certa de que já todos recuperaram da embriaguez do fim-de-semana. E sóbrios, esperam pelo futuro do líder. Sócrates não sucederá a Sócrates, isso todos pensam e (quase) todos anseiam. Eu, a quem «elogiaram» como «a menina bonita do PS», «a socranete n.º 1», ou «a estrela em ascensão», respondo que a idade traz rugas; então e Edite Estrela?; e as estrelas acabam cadentes. Estou desiludida, afastada e farta desta engrenagem do meu partido (vá, chamem-me o que quiserem). Não sei se estou contigo, Zé – eu manifestante com a Geração à Rasca. E sem humildade de plástico, não me tenho na conta de futuro de nada. Todavia, avance quem for contra Seguro, regresso com o arsenal que aprendi a reunir com todos estes. Estarei com Costa sempre. Com Assis, se for ele a avançar. Posso porém garantir-vos que o meu arsenal não caberá nunca numa lata de salsichas nobre, daquelas pequeninas e de seis unidades, de qualidade dúbia mas que de repente geraram uma corrida às prateleiras dos supermercados. Que partidos são estes?!

[Marta Rebelo, "Novas gravatas para o PS", edição on-line da Sábado]