Tinha medo de pensar na morte. Mas se o desafiassem a pensar nela, nesse fim do caminho, ele respondia que gostava de ter uma morte boa. Uma dessas em que "a gente deita-se para dormir e nunca mais acorda". Mário Cesariny, poeta e pintor, morreu hoje na cidade onde nasceu - Lisboa. Tinha 83 anos. Morreu hoje apesar de ter dito, há dois anos, que já não estava vivo. "Custa-me muito estar vivo, e isso já não é estar vivo", disse a Miguel Gonçalves Mendes, autor do prodigioso trabalho "Verso de autografia" - livro acompanhado de fotografias únicas de Susana Paiva, e filme.
Cesariny - "avião que sobe levando-te nos seus braços, que atravessam agora o último glaciar da terra" - é a representação do surrealismo português. "Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista". Ele era. Ele é. Sê-lo-á agora mais do que antes. Mais agora, porque é sempre assim quando se morre. Antes, dizia, aplaudiam-no muito, mas depois deixavam-no ir para casa sozinho. Sentia-se sozinho. Ainda mais sozinho desde que lhe morreu a irmã, Henriette, oito anos mais velha e companheira de uma vida inteira. Desde que os cafés passaram a ter televisão aos berros, impedindo-o de ir para lá escrever poemas e conversar com os amigos que apareciam. E desde que deixou de foder. "O outro é o nosso espelho, sem esse espelho não nos vemos. Não existimos. Eu no espelho ou vejo os dois ou vejo o outro, através de mim. Os seres habituais têm necessidade desse encontro".
Ele também tinha. Não acreditava na alma gémea - tinha que ser alguém diferente dele, mais ingénuo, mais puro -, mas acreditava que é possível morrer de amor. No amor, que também procurou, apesar de achar que "a necessidade extrema do outro acarreta o ódio". No amor que encontrou. E perdeu. "O que é que aconteceu ao amor? Ah, eu sei lá". Guarda dele apenas um poema que "alguém publicará".
Cesariny - "carruagem de propulsão por hálito" - não se importava de ser enterrado em Espanha, "que esta porra desta pátria nunca fez absolutamente nada" por ele. O ano passado recebeu duas distinções - as únicas da sua carreira: o Grande Prémio Vida Literária APE/CGD, pelo conjunto da sua obra, e a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, que lhe foi entregue pelo então Presidente da República Jorge Sampaio. Este ano viu o seu nome ser integrado na "Anamnese", projecto da Fundação Ilídio Pinho que compila a esmagadora maioria dos artistas plásticos portugueses da década de 90.
Cesariny não sabia o que era a saudade. Mas sabia que a saudade podia "não ser dor". Sabia que tinha saudades de voar. "Quase desde miúdo até aos cinquenta anos, todas as noites já adormecia a sorrir de gozo, porque sonhava sempre que voava, e era uma coisa tão boa, tão boa, tão boa... E depois não havia paisagem, era o espaço puro, não se via nada. Maravilha. Depois, aos sessenta anos, nunca mais sonhei".
Mário Cesariny voltou a voar.
[A maior parte de nós acha que passaria a viver razoavelmente mal se a vida lhe subtraísse, apenas, um número reduzido de pessoas. Mas depois desaparecem pessoas como Cesariny, que nunca vimos senão nos livros, nos quadros... e não consegue evitar-se o vazio, a quase dor... um arrepio a lembrar que esse número de pessoas é maior do que imaginamos.]
Eternamente grata!
ResponderEliminarAté sempre
e com este belo texto, ainda fiquei com mais saudades do Mário
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