sexta-feira, julho 22, 2005

José Amaral Lopes

"Não sei se o país precisa de capitais da cultura"

É o braço operacional do ministro da Cultura e maneja todos os dossiês quentes, assumindo maior protagonismo do que Pedro Roseta.Nesta entrevista ao "Jornal de Notícias", o secretário de Estado da Cultura enuncia "reformas profundas" para diversos sectores e promete que em 2004 todas as capitais terão um teatro. " A política cultural não é verificável a curto prazo", justifica quando sai em defesa do primado do património. Mas admite: "Não temos a arrogância de fazer tudo bem feito".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 3 de Fevereiro de 2003)

Em nove meses de mandato, o protagonismo do secretário de Estado sobrepôs-se ao do ministro da Cultura...
Não concordo nada com isso. O ministro não cultiva a popularidade. Eu também não. Tenho um papel preparatório que leva a que o primeiro impacto, em algumas matérias, seja meu. E, provavelmente, as minhas matérias têm maior impacto mediático porque os próprios agentes o são.

Qual o futuro dos teatros nacionais, sobretudo o D. Maria II?
O Governo está a promover uma reforma profunda. Os teatros nacionais deixaram de poder ser pensados isoladamente e isso atrasou o processo. Está ser definido o melhor modelo.

Qual é?
Não posso dizer. É uma situação política do Governo. Estudamos os modelos europeus que a nossa lei prevê. Pode ser direcção-geral, instituto, empresa, fundação ou associação. Não se trata de copiar, mas de reconhecer que já não há nada para inventar.

Qual é a situação actual do Teatro Camões?
Vamos acabar com aquele escândalo de desperdício financeiro, integrando-o na Comissão de Bailado. Só não o faremos se concluirmos, clara e inequivocamente, que é inviável.

A que se deve a integração do Teatro de Carlos Alberto (TCA) no Teatro Nacional São João ?
Há uma rentabilidade fácil de identificar. Pensamos, de forma inadequada, que o TCA podia ser gerido, a 300 quilómetros, pelo IPAE. Havendo no Porto um teatro nacional com pessoas competentes para a gestão daquele espaço, não fazia sentido duplicar esforços.

Mas concorda que as companhias perdem primazia?
Perdem o quê? O que nunca ganharam? Não me parece correcto que o TCA tivesse obrigação de ajudar projectos só por serem do Porto.Não é critério que presida à decisão de um teatro nacional.

Foram aprovados projectos para teatros em Aveiro, Braga, Espinho e Porto. E, ao mesmo tempo, cortados apoios às autarquias, não podendo contratar companhias. Não é uma contradição?
Não é bem assim. O Estado não interfere na gestão financeira das autarquias. O Programa Operacional da Cultura (POC) foi definido pelo anterior Governo. Como os meios são escassos, decidimos assegurar as capitais que não têm equipamentos culturais adequados.Simultaneamente estamos a tentar alargar o POC a outros teatros.

Portanto, em 2004 todas as capital terão um teatro?
Espero que sim. Concluídos os projectos em curso, serão aprovados alguns novos que já deram entrada.

O POC acaba em 2006 com baixa taxa de execução. Faltam projectos ou os processos não são resolvidos a tempo?
Na rede de teatro está tudo comprometido. Há dinheiro noutras medidas onde não houve projectos. Para que o dinheiro não seja devolvido, estamos a reformular o projecto na União Europeia.

O PS acabou com as companhias convencionadas e criou subsídios plurianuais, bianuais e anuais que foram parcialmente cortados.No concurso para deliberar os subsídios de 2004 que mudança está prevista?
A grande reforma é a participação dos agentes culturais locais que são, por excelência, os autarcas, na decisão. As três fórmulas de financiamento - POC, Fundo de Fomento Cultural e o IPAE - serão reduzidas à comunitária e à nacional. É preciso coragem para assumir que não podemos ter 500 companhias. Vamos eleger a mais sólida de cada município e canalizar todo o apoio para aí. A lei de apoio ao audiovisual vai mexer com as estruturas já existentes e deverá ser apresentada este mês. É um dossiê quente da actualidade, sobretudo com as dívidas das televisões ao ICAM a ficarem acertadas.Novidade absoluta é a extensão da Cinemateca ao Porto, que acontecerá no curso de 2003.

De acordo com a nova lei do cinema, que critérios pautarão os concursos?
Há uma profunda alteração. O trabalho preparatório, em termos de lei, já existe. É um anteprojecto de lei para o cinema e audiovisual, para os mecanismos de apoio. Está em fase de apresentação pública.

A Cinemateca de Lisboa poderá ter pólos no país?
Estamos na fase de anteprojecto e já há infra-estruturas para a existência de um pólo no Porto.

Ainda este ano?
Espero que sim. Não é difícil, porque a fusão do IPAE com o IAC obrigou-nos a reequacionar tudo - a Casa das Artes estava integrada no IPAE. A sua actividade mais adequada é o cinema. Esse equipamento pode vir a resultar no pólo da Cinemateca no Porto, permitindo complementaridade com projectos que lá são desenvolvidos. Vamos ouvir o presidente da Cinemateca e proceder à alteração legislativa.

Num concurso de apoio ao cinema, foi acusado de devolver duas vezes a decisão do júri para privilegiar José Fonseca e Costa em detrimento de Leonel Vieira.
Devolveria cem vezes. Havia a suspeição de decisões subjectivas.Fiz a minha obrigação. Aquilo era uma confusão e o Estado tem que ser claro e rigoroso. Não me importo de ser criticado por isso.

"O país todo ganha com as capitais nacionais de Cultura?" O secretário de Estado não sabe - e manifesta reservas quanto à continuação de programas nesse sentido. Quanto a Coimbra 2003, a resposta é breve: "Tentaremos que resulte", mas avisa que o programa já vem do anterior Governo. Prioridade declarada para todo o país é a manutenção do património, ainda que a medida possa não trazer consigo popularidade. Mas José Amaral Lopes deixa no ar uma inquietação: "Ninguém se insurge por ser obrigado a ler Eça ou Camões, mas acham disparatado que sejam obrigados a conhecer o património". Acusando os atrasos na Casa da Música, no Porto, de prejudicarem o interesse nacional, sobra uma solução: "Tentaremos que seja culturalmente rentável".

O presidente de Coimbra Capital Nacional da Cultura diz que a burocracia está a impedir a agilização do projecto. Por que é que não foi criada uma estrutura idêntica à do Porto 2001?
As dimensões são completamente diferentes. Não tenho a percepção de que haja assim tantos problemas burocráticos. Há razões que, às vezes, presidem à existência de determinadas regras, como a fiscalização, a transparência, o rigor. E isso não é burocracia.Este Governo não pensou o projecto, mas uma vez que há meios envolvidos, interesse para Coimbra e para o país, tentaremos que resulte.

Há projectos para continuar a investir nas capitais nacionais? Fala-se em Faro.
Não sei. Há vozes discordantes nessa matéria. Não sei se o país, com as necessidades que tem, terá alguma coisa a ganhar com essa chamada de atenção pontual. Para as cidades e para as comunidades locais é agradável. Mas o país todo ganha muito com isso?

Manuel Maria Carrilho insistia na importância da contemporaneidade.Este Governo, ao contrário, privilegia o património em detrimento dos artistas emergentes.
Não é verdade. As duas coisas não existem por oposição. Os ministros não têm que ter gostos nem expressar esse tipo de opinião pessoal.

Não era uma opinião. Era uma prioridade política.
Na política não se pode correr o risco de deixar degradar o património.É a herança que define a nossa identidade cultural. A arte contemporânea, que será o património do futuro, também tem que ser promovida.Não são coisas antagónicas. Pergunte-me se prefiro deixar ruir a Torre de Belém ou apoiar uma exibição de arte contemporânea.Confesso que não sei. As pessoas vivas são politicamente mais agradáveis. O país tem que encontrar o equilíbrio entre as duas coisas.

Mas existe uma preocupação vincada com o património?
Às vezes, a necessidade de intervenção é tão urgente que não pode deixar de se fazer. É claro que não tem o impacto mediático de um espectáculo. Se o país achar que somos antipáticos porque preferimos recuperar o património, paciência. Se calhar, daqui a 20 anos, avaliam de maneira diferente.

O Museu do Côa foi contemplado pelo reforço da acção do Instituto Português de Museus?
O projecto do Côa partia de pressupostos megalómanos, infundados e irresponsáveis. Previa um número de visitantes superior à Torre de Belém! Só uma pessoa arrogante, que pensa que os portugueses são ignorantes, pode defender um projecto desses. O custo de manutenção era incomportável. Ficamo-nos pelo domínio do realismo.O projecto foi reequacionado pelos técnicos competentes.

A Casa da Música também é um projecto megalómano?
É um bom projecto para o país, com atrasos que prejudicaram o interesse nacional. O anterior Governo deixou uma péssima herança.Mas tentaremos que seja culturalmente rentável.

O Museu de Etnografia do Porto está fechado há mais de 20 anos.Há algum projecto no sentido de o reabrir?
Não tenho conhecimento. O IPM não faz parte da minha tutela directa.

A política de ensino artístico em Portugal é das piores da Europa.É uma prioridade rever a situação?
O ministro tem sido acusado de exagerar na articulação entre os ministérios da Cultura e da Educação e tem falado nas contrapartidas pedagógicas, o que tem causado muita polémica, não se sabe porquê.Ninguém se insurge por ser obrigado a ler Eça ou Camões, mas acham disparatado que sejam obrigados a conhecer o património.

Que políticas inovadoras tem para os próximos anos?
A lei das artes cinematográficas e audiovisuais, a informatização das bilheteiras, que já está pronta, o organismo que regula a integração do Estado no domínio das artes do espectáculo e das artes visuais, o quadro normativo das artes do espectáculo, que vai reformular profundamente toda a estrutura de apoio, com novos objectivos de criação de público. O quadro normativo de apoio ao Instituto do Livro e da Leitura, que não existe, a reforma profunda da Lei do Depósito Legal, todos os regulamentos e conceitos jurídicos dos teatros nacionais de forma a terem melhor gestão.Vamos alterar todo o sistema disperso de apoio à formação.

Que marcas que pretende deixar neste mandato?
Nunca pensei nisso. A política cultural não é verificável a curto prazo. Não temos a arrogância de fazer tudo bem feito. Os meios não são muitos, mas gostaríamos que a nossa acção impedisse a deterioração do património, aumentasse o interesse das empresas e a sua capacidade de intervenção através do mecenato e instituísse hábitos nas pessoas.

Não reprova os escritores que emergem no mercado, mas indigna-se com o facto de não encontrar as obras completas das "referências fundamentais da literatura portuguesa". Amaral Lopes acredita que ambos podem coexistir, mas defende um apoio mais criterioso para as revelações.

Acabaram as bolsas de criação literária. Qual será o novo modelo de apoio?
As bolsas funcionam de forma casuística com o dinheiro dos contribuintes.Há um projecto para apoio às edições de obras que não existem e que são referências fundamentais da nossa literatura. Não se pode apoiar obras de pessoas que não mostraram ainda se têm capacidade quando não há a obra completa de Camilo Castelo Branco.

É incompatível apoiar novos escritores e clássicos?
Nada é incompatível. O Ministério não pode é apoiar coisas que não existem e depois não ter dinheiro para apoiar aquilo que os editores querem lançar. Os riscos são demasiado elevados.Se o autor da obra que aprovou não vingar, são os portugueses que ficam prejudicados. Continuará a haver processos de apoio, mas através de mecanismos mais rigorosos, mais transparentes, mais justos.

Directores artísticos não podem ser gestores
Desde o início do mandato do PSD que as demissões de vários institutos e teatros surgiram em catadupa. Quase sempre por discordância com o corte orçamental. "É difícil que as pessoas com preocupação em realizar um projecto artístico estejam também com a preocupação administrativa. A experiência tem demonstrado que não existem bons resultados", entende o secretário de Estado.

Braga e coimbra perdem apoios
O IPLB retirou o apoio à Feira do Livro de Braga, por se encontrar em total regime de excepção. "Nenhuma outra feira era apoiada", sublinha Amaral Lopes. Também os Encontros de Fotografia, em Coimbra, estão em risco. "Não existe rigor no protocolo assinado.Há um entendimento que prevê um aumento para determinadas actividades não previstas. E um despacho no sentido oposto."

Pedro Berhan da Costa

"Pedro Roseta poderá ser a próxima vítima"


Regressa à advogacia depois de sete anos à frente do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM), de onde saiu a semana passada "magoado, mas tranquilo". Na primeira entrevista após a demissão, Pedro Berhan da Costa considera-se um homem "paciente", mas se o obrigam a atacar fá-lo "sem economia". A incompatibilidade com o secretário de Estado da Cultura, José Amaral Lopes , um homem "sem coluna vertebral", levou-o a pedir a demissão. O ministro da Cultura, Pedro Roseta, recebeu ontem o despacho da demissão, que aceitou de imediato. Entretanto, o JN sabe que José Pedro Ribeiro, que, curiosamente, apresentou a demissão há duas semanas, assegura a gestão corrente do ICAM.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva, publicada no Jornal de Notícias a 5 de Novembro de 2002)

Pautou sete anos de mandato por alguma discrição.Agora, veio dizer que o cinema português está a ser notícia pelos piores motivos...
Procurei ser discreto, mas eficaz. Canalizei o protagonismo para a instituição e para o sector cinematográfico.Neste momento, o cinema e eu próprio fomos protagonistas pelas piores razões. Impunha-se mudar de atitude para defender a minha honra pessoal. Fui alvo de um processo de calúnia que nunca julguei que me pudesse acontecer. Como não dependo de nada a não ser da minha consciência, não podia deixar de reagir, e sem panos quentes.

O atrito com o Governo cinge-se a esta recta final ou foi o culminar de um desentendimento que começou quando tomou posse, em Março?
Não faço combate político. Fui nomeado por um Governo socialista.Quando este tomou posse, coloquei o meu lugar à disposição. Foi-me reiterada a confiança. Isto não tem nada a ver com o PSD, mas com um dos seus ministros. Tive excelentes relações com os anteriores porque eram pessoas honestas.

Que relação mantém com o ministro Pedro Roseta?
Do ponto de vista pessoal, tenho a melhor impressão. Aliás, aconselhei-o a ter cuidado. Ele pode ser a próxima vítima de uma orquestração política. Se o secretário de Estado da Cultura tiver ambições políticas maiores não olhará a meios.

Apesar da demissão do vice-presidente do ICAM, José Pedro Ribeiro, garantiu que o instituto funcionaria normalmente e recusou a demissão...
Cheguei a um ponto limite. Achei que a saída dele seria um fenómeno secundário para a tutela. Percebi depois que ambos estavam combinados.Disse que a direcção continuava em funções por uma questão de responsabilidade e clareza de processos. Quando foi entregue o relatório a demonstrar categoricamente que a situação do ICAM, sendo difícil, está controlada, percebi que o ministro estava de má fé. Seria impensável continuar a trabalhar com ele.

Sentiu-se traído com a demissão de José Pedro Ribeiro, até porque é ele que vai assumir a gestão corrente do ICAM?
Todas as pessoas que trabalham comigo são escolhas minhas. Esta foi uma escolha errada. Como consultor jurídico transmitia-me alguma confiança do ponto de vista técnico. Pessoalmente achava que era sério. Enganei-me redondamente. E assusta-me que uma pessoa que se presta a ser instrumento de uma manobra, tão permeável a lóbis - e este meio está cada vez mais cheio deles -, possa assumir a presidência de um organismo.

A que tipo de lóbis se refere?
A uma coisa gravíssima que nunca tinha visto. Num concurso de apoio à criação de cinema que visava apoiar dois projectos, o secretário de Estado da Cultura mandou duas vezes a decisão para trás para reapreciação. Manoel de Oliveira ficou em primeiro lugar, Leonel Vieira em segundo e José Fonseca e Costa, em terceiro, não seria apoiado. Mas foi apoiante público na campanha deste Governo. O pedido referia-se à inversão do segundo e terceiro lugares.
Falou-se em cerca de 30 milhões de euros de dívidas. Confirma-se a pior crise de sempre?
Numa lógica calendarizada, o que o instituto vai receber chega para cumprir os compromissos assumidos. Chama-se gestão deslizante.A situação foi difícil nestes meses, mas estamos agora a dar a volta.

Porque é que a RTP, ao contrário da SIC e da TVI, fica ilibada de juros de mora?
Os montantes da RTP e os meses em dívida são muito inferiores e a proposta de pagamento foi feita em seis prestações.

Vai continuar ligado ao cinema?
Não. Volto à advocacia. Apesar de reconhecer que vou desbaratar o capital de experiência adquirido.

Esta sucessão de estreias - "A falha", "A selva", "A jangada de pedra" - fecha um ciclo?
Não. Estamos a colher os frutos de uma política de clara aposta na produção, que foi executada no cinema nestes últimos anos.Agora, devemos dar o salto seguinte que é conseguir mais público nas salas. Tinha esperança que isto pudesse ser feito sem esforço e sem comprometer o que estava para trás. Para já, parece-me que a única aposta é extinguir o ICAM.

Quem supõe que possa ser o seu sucessor, agora que Salvato Telles de Menezes recusou o convite?
Tenho a convicção de que não vai ser fácil encontrar um nome credível para presidir o instituto. Creio que o ministro vai ter que fazer quartas e quintas escolhas. Alguém que tenha sentido de responsabilidade, que faça da ética o seu modo de actuar e que seja minimamente responsável não aceitará presidir o instituto.Estamos condenados a alguém com um espírito aventureiro que irá aceitar o convite sem saber porquê. A tutela actual comprometerá sempre o trabalho de quem quer que seja. É uma fatalidade achar que o ICAM não terá dias muito risonhos pela frente.

Faz sentido a divisão do ICAM em dois organismos?
É a primeira ideia apresentada pelo secretário de Estado e é completamente disparatada. Creio que será chumbada nas finanças porque vai contra uma tendência que visa fundir e não separar.Por um lado, um instituto só para fazer a cobrança das taxas é um motivo muito pobre para a sua criação. A receita pode ser cobrada pela Inspecção Geral das Actividades Culturais, por exemplo.Apoiar a produção é o que o ICAM.

Os concursos de Dezembro estão em risco?
Não sei, mas espero que esses concursos sejam lançados, porque existe capacidade financeira para o fazer, uma vez que só terão repercussão nos próximos anos.

Que outras fontes de financiamento poderia ter o cinema português?
Poderia passar pela exibição cinematográfica, com a percentagem do preço dos bilhetes. As televisões poderiam começar a ter também uma intervenção...

Perfil
Pedro Berhan da Costa chegou à liderança do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) em 1995. O advogado - actividade à qual vai, agora, regressar - afirma "não se assustar com contrariedades", embora admita ser paciente. Porém, autodefine-se como apto a reagir convictamente a ataques, mormente os de contexto ético. Aliás, Berhan da Costa justificou o seu pedido de demissão por discordãncias políticas, mas, também, por razões éticas.

quarta-feira, julho 20, 2005

Pedro Burmester


"É estranho o Governo ainda não ter revelado modelo de gestão"


Deixou, há quase dois anos, o piano em "banho-maria", para se dedicar àquela que já considera ser "a grande aposta" da sua vida, a Casa da Música. Pedro Burmester, responsável pela programação da instituição, confessou acreditar piamente no projecto. Mas estranha que o Ministério da Cultura, a um ano da abertura da obra de Rem Koolhaas, não liberte o modelo de gestão. E que a Câmara Municipal do Porto queira reduzir a cidade a uma aldeia.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 18 de Junho de 2003)

Costuma usar-se o atraso da obra da Casa da Música (CM) para provar o fracasso do Porto 2001...
Provar-se-á o contrário. A CM é o símbolo máximo da importância do 2001. Quando passar a lógica política do quem fez o quê, o balanço será francamente positivo.

Que peso poderá ter a CM no salto qualitativo do país?
O país precisa de investir na formação, na educação e na cultura.A CM não vai salvar o Mundo, mas pode, em conjunto com outras políticas, contribuir para isso. Não pode é tornar-se uma ilha isolada como é, de certa forma, Serralves ou o Teatro S. João.Embora a Câmara Municipal não concorde com esta visão, acho que o Porto tem condições especiais para se transformar num importante pólo cultural do país.

Qual é a responsabilidade da autarquia na CM?
Tem uma percentagem muito pequena e, segundo diz, poucos meios financeiros para investir aqui. Como tal, não terá uma palavra muito importante a dizer. Está mais preocupada com questões, que também têm que ser resolvidas, mas que reduzem o Porto a uma aldeia.

Já são conhecidas as hipóteses de modelo de gestão?
Estranhamente, não. Provavelmente, o Ministério da Cultura tem muitos assuntos para resolver, e a cultura não deve ser uma prioridade.Com a Casa da Música tem havido muito pouco diálogo.

Poderemos estar ainda perante uma folha em branco?
Seria uma grande inconsciência. Quero crer que o Ministério da Cultura estará a preparar tudo e que, na altura devida, irá dizer o que fazer. Mas o limite é urgente. Terá de ser, no máximo, até Outubro, porque caminhamos rapidamente para a conclusão da obra.

Já existe programa definido para essa altura?
A nossa equipa está reduzida ao mínimo, mas obviamente já está a pensar no que vai fazer. Não divulga porque não pode. E porque ainda não sabemos o que vai acontecer para o ano, em termos de estrutura jurídica, quantas pessoas vão trabalhar, quem será a equipa, que meios vai haver e que enquadramento terá a Casa da Música.

Não tem dado concertos. Teria sido mais fácil conciliar o piano com o futebol profissional a que aspirava do que com a CM?
Não creio. Acredito tanto neste projecto, e revejo-me tanto nele que, enquanto for assim, continuarei com o piano em banho-maria.Se o projecto for descaracterizado, aí sim, saio.

A CM é a aposta da sua vida?
Estou a ver que se está a tornar nisso.

Rui Amaral, disse recentemente que a Casa da Música "não é para todos os tipos de música". Afinal, é ou não?
Rui Amaral (presidente do conselho administrativo da CM) não é do meio musical, é natural que faça afirmações confusas para as pessoas. Uma vez diz que haverá só ranchos folclóricos e bandas filarmónicas. Outra vez, que haverá ópera, depois que já não há. Como res- ponsável pela programação cultural, garanto que a CM é para todo o tipo de música. Mas com critérios de programação e noção clara das áreas em que quer apostar. Defendo o jazz, o fado, a música potuguesa,a electrónica e a clássica. Se o género musical tiver qualidade, independentemente do critério estético de gosto - de uma Ágata, a uma Mariza no fado, a um António Rosado na música clássica -, a CM deve ceder o espaço. Mas não será um "acolhe tudo".

A questão da ópera regressou também à ordem do dia...
Mas não devia. Definitivamente, a ópera é uma aposta da CM, até porque temos o Estúdio de Ópera, que aposta nos jovens cantores e na sua formação. Como a CM é um espaço muito cenográfico, estamos a pensar fazer óperas especificamente desenhadas para aqui.

A CM está a negociar a presença do Ensemble em festivais internacionais...O coração da CM é o Serviço Educativo, a quem compete educar pessoas de forma a poderem valorizar uma programação de qualidade e formar jovens, abrindo-lhes o mercado internacional.

Quais são as suas apostas?
Fado, algumas áreas do jazz, música portuguesa, electrónica e clássica.

A criação de públicos estende-se a pessoas mais velhas ou concentra-se nas escolas?
O serviço educativo tem que criar projectos específicos que envolvam todos os públicos arredados da cultura. E já o fez com óperas como o Wozzeck, escrita e feita por bairros carenciados. Claro que não basta abrir as portas às escolas. É preciso obedecer a um trabalho continuado.

Há mercado para os músicos que a CM deverá formar?
Em Portugal há o medo de julgar as coisas pela qualidade e de as por concorrencialmente com outros países. Vamos fazer isso, internacionalizar os nossos músicos.

A programação será tão polémica como o edifício, os prazos incumpridos ou o arquitecto?
Se tiver os meios, a CM será inteligente para satisfazer o mais alargado leque de públicos. A polémica prende-se com o gosto e não com a qualidade.

Qual objectivo do futuro programa?
Ser realista, de qualidade, arrojado no sentido de surpreender.

Fausto Neves

'Administração é ignorante
quanto ao projecto artístico'

Fausto Neves é o primeiro elemento da Casa da Música a quebrar o silêncio da instituição. O responsável pela programação da Casa da Música não acumula o Serviço Educativo (SE) com a direcção artística. A garantia foi dada a Fausto Neves por Agostinho Branquinho, do Conselho de Administração, que tem agora sob a sua alçada o SE. O pianista e professor, que ontem deixou para trás um trajecto de cinco anos à frente do mais visível departamento da instituição, denuncia o "ajuste de contas" que levou à saída de Pedro Burmester e acusa o CA de ser "ignorante" quanto ao projecto artístico.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 2 de Abril de 2004)
Demitiu-se, apenas, por solidariedade com Pedro Burmester?
Fi-lo pelo projecto em si, que não consigo dissociar do Pedro. A saída dele, além de imprevisível, deve-se a um mau gosto e metodologia que roça a boçalidade. Nunca deveria ter sido tratado como foi, quanto mais não seja pelo trabalho que fez - que eu espero que não se perca -, e que condicionou a própria arquitectura. Convém não esquecer que o edifício foi feito para um projecto claro, que duvido que tenha continuidade. Há sinais claros de uma mudança radical.

O projecto tem cinco anos. É a pela primeira vez que o sente?
Sim. Nunca se discutiram horários, fins-de-semana, noites ou a obrigatoriedade de fazer tarefas que não eram da nossa competência, mas que se fizeram em prol de um projecto que nos entusiasmou.Mudar esse incentivo por exigência de uma empresa 'out-sourcing' que controla o que fazemos não faz sentido.

Alves Monteiro admitiu que não o teria dispensado, mas que passaria a exigir-lhe uma colaboração que não se compadece com 'part-time'...
É de mau gosto falar em 'part-time'. Nunca me criticaram em qualidade nem em quantidade, e eu nunca exigi da CM horas extraordinárias.Fizemos trabalhos de produção quase impossíveis, devido ao voluntariado.Fico embaraçado por ter que citar este tipo de argumento. Este ano, com autorização do CA, dou 12 horas de aulas semanais, em Aveiro, mas nenhuma actividade saiu prejudicada.

Conheceu três administrações, quatro ministros da Cultura e três presidentes de Câmara. Em algum outro momento teve vontade de sair?
Houve momentos mais ingratos, que resolvemos com conversas em que se ouviam todas as partes. Com este CA isso não aconteceu.Desmembraram o SE da programação, que ficou debaixo da alçada de Agostinho Branquinho, enquanto a programação continuou com Alves Monteiro. Isto colocava-nos problemas técnicos complicados, porque o SE está ligado à programação com uma interactividade relacional. Depois, para minha surpresa, foi nomeado Wi-thworth-Jones, numa altura em que havia a insustentável indefinição da posição de Pedro Burmester, que já estava prometida para o ano anterior.Quando percebi que o Pedro soube da nomeação por carta, ao mesmo tempo que os jornais, achei que já chegava.

O projecto pode ser desvirtuado ou a nova equipa vai colher frutos do trabalho da anterior?
Nem uma coisa nem outra. Esta administração não está de pedra e cal na CM. Tinha um objectivo claro e está a prossegui-lo.Desvirtuar completamente o projecto é impossível, porque já tem pilares muito sólidos. Esta administração é bastante ignorante quanto ao projecto artístico que está subjacente à CM. Todas as administrações tiveram pessoas ligadas à arte. Esta é a única que não tem e subalternizou de maneira muito perigosa quem tinha.O conhecimento do terreno do Pedro - conhece o que de muito bom e muito mau se faz lá fora e cá dentro, o que é raro - era fundamental para fazer algo original e nosso. Não vai ser fácil para uma pessoa de fora fazer isso.

Estamos perante a eterna discussão do artista não saber ser gestor e vice-versa?
Não tenho uma visão tão radical. Os artistas devem saber ser gestores. Tem que haver um respeito muito grande entre a parte administrativa e política e a parte técnica. Esse cuidado foi enorme até chegar esta administração. Apesar das parangonas públicas, este CA tinha uma ideia preconcebida, que se manifesta numa permanente desconfiança em tudo o que se fez para trás.

Conheceu Withworth-Jones?
Fui formalmente apresentado. Tivemos uma conversa curta, mas muito agradável. Fez-me alguns cumprimentos em relação a um relatório que lhe apresentei de toda a actividade.

Acredita que ele pode fazer um bom trabalho acumulando a direcção artística e o SE?
A acumulação foi-me desmentida por um elemento do CA. Ele pode fazer bom trabalho como programador. Não poderá é dar sequência a um projecto, que se queria de terreno, por razões óbvias - não conhece o meio.

Teme a mudança que Alves Monteiro disse querer imprimir ao SE?
Suspeito que não é isso que quer fazer. Sempre disse que o SE é a pedra de toque da CM - ou, como ele gosta de dizer, um 'line enterprise'... Com a abertura da Casa, há vertentes do SE que poderão ser melhoradas. Se realmente é verdade a mudança completa, insurjo-me.

Acha que a CM está ser politizada ou alvo de uma perseguição?
As duas, provavelmente. São públicas as declarações do Pedro, e as inimizades que isso criou. São públicos os ajustes de contas.

A substituição de Rui Amaral por Alves Monteiro foi uma lufada de ar fresco ou houve logo algum sinal negativo?
Achámos que seria uma boa solução para resolver problemas que se arrastavam de forma penosa. Mas as expectativas não se confirmaram.Este CA só fala da empresa e deixou de falar do projecto artístico.Alves Monteiro não tem consciência do que é este projecto, e tem dificuldade em ouvir quem a tem.

Defende esta estratégia generalizada de silêncio?
É insustentável, sobretudo pelo investimento público que representa.É caricato que o vereador da cultura do Porto seja sempre apanhado de surpresa pelos acontecimentos. No caso de Pedro Roseta ainda é pior, quer pela responsabilidade que deveria ter quer por ser o principal accionista da CM. É ainda mais estranho porque apoiou o Pedro na crise de 2003. O silêncio de Pedro Roseta é estranho depois de ter defendido Pedro Burmester

sábado, julho 16, 2005

José Luís Borga


'Estar na televisão não renova a Igreja,
mas dá uma achega"


As televisões disputaram-no. Ele poderia não ter sido padre, mas, assegura, "seria sempre um comunicador". José Luís Borga, o sacerdote que pôs o país a cantar "Põe a mão na mão do teu Senhor da Galileia", tem uma utopia: "Se pudesse, ninguém faria abortos". A progressiva legalização dos comportamentos sociais incomoda-o. "A homossexualidade passou de perversão a doença; e daí a opção. Qualquer dia é uma obrigação". Diz que não a julga, mas também não a entende. Como não entende o Vaticano, que desconhece se "será um mal necessário, ou um serviço preciso". Cobra 4000 euros por concerto, cachet que partilha com a comunidade."A Bíblia pede um décimo - eu dou metade".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 19 de Outubro de 2004)

As suas sucessivas aparições televisivas são uma tentativa de renovar a imagem da Igreja ou fruto de uma opção exclusivamente individual?
Não tomei a decisão de usar a televisão para passar uma imagem da Igreja. Estou perante uma oportunidade que estes meios raramente dão. E não dão a toda a gente. Deram-me a mim. Tenho a humildade de pensar que estar na televisão não renova a Igreja no sentido de ir ao essencial. Ela não fica enriquecida porque apareço; espero que não fique empobrecida. É mais uma achega.

Que leitura lhe merece a presença de três padres nos três programas da manhã? [José Cruz na TVI; Milícias na SIC]
O público alvo da manhã são pessoas reformadas, para quem a Igreja tem um peso significativo. As televisões vêem audiências e percebem o que é estar o padre Borga, ou não; estar uma cartomante, ou não. No início, houve uma certa disputa de mim. A RTP propôs-me exclusividade, e eu aceitei. As outras televisões foram ao encontro do mesmo.

Além da televisão, dá concertos. A que critério obedece a sua agenda?
Primeiro, cortando muitas horas ao sono. Segundo, dentro do possível do que me pedem, tento responder afirmativamente. Terceiro, sendo capaz de fazer entender às pessoas que não sou mendigo, nem escravo, nem dependente dessa situação. Vou porque é bom ir; nunca irei porque preciso de ir. Se me pedem para dar um espectáculo onde estão seis mil pessoas, dificilmente direi que não. Se me pedem para ir a um larzinho, onde estão meia dúzia de velhinhos, terei mais dificuldade em dar prioridade a isso. Faço uma gestão entre qualidade e quantidade. Sou prioritariamente pároco; raramente colido com a minha dimensão de responsável por uma comunidade. Este ano já fiz mais de 70 espectáculos; não me posso queixar muito.

Que destino dá aos 4000 euros que cobra por espectáculo?
Só metade do que ganho fica para mim. A Bíblia pede um décimo; eu dou metade. Nunca fui a lado nenhum para ganhar dinheiro, nem deixei de ir por não ganhar. Tento fazer uma gestão de tudo o que tenho, de forma primeira a que não viva para isso; segunda, que viva apesar disso; terceira, que haja muita gente a ganhar com isso. A minha Igreja tem sido a destinatária, porque houve obras. Se tenho ajudado tanta gente, mau seria que andasse a pedir para a minha paróquia.

Lida bem com a popularidade?
É a minha cruz. (risos) Sou bastante desconcertante. Às vezes, até fico com pena das pessoas. Reconheço que é cansativo, inoportuno, quero passar discreto e não consigo. Mas sou sobejamente grato para pensar que isso acontece porque as pessoas gostam de mim, e são gratas por aquilo que sou. Não tenho o direito de ser frio. E não me preocupa porque sou um homem livre, faço tudo às claras, ninguém depende de mim. O meu celibato dá uma boa ajuda. Lido com a simplicidade e a gratidão que isto supõe e exige. E com os pés no chão, porque tudo é efémero.

O seu protagonismo não pode ser confundido com uma certa falta de humildade que lhe é exigida?
Pode. Mas quem dirá da humildade, ou não, terá que ser a própria pessoa, e os seus amigos. Somos facilmente avaliados por gente que nem sabemos que existe, e que se acha no direito de avaliar só porque conhece uma parcela. Haver gente que fica eufórica ou angustiada porque estou na televisão, não me é particularmente incomodativo. Agora, se tenho um colega sacerdote ou bispo, isso sim. As pessoas são um bocadinho adolescentes nestas matérias: somos óptimos se os servimos; na primeira vez que dissermos que não, revêm logo o nosso estatuto. Passamos de bestial besta com muita facilidade.

Que avaliação fez da proibição do Governo ao não deixar atracar em território português, o "barco do aborto"?
O aborto é um acto desumano e desumanizante. Fazer disto uma indústria, é pior a emenda do que o soneto. A política não soube lidar com isto, e foi lamentável. Quer-se uma ordem jurídica baseada em princípios de dignidade da pessoa humana, mas só se dá tiros nos pés. Ainda bem que não houve gente da Igreja no cais a pedir para o barco não atracar; seria lamentável.

Defendia a vinda do barco?
Tanto me faz. A realidade, em Portugal, está bem pior do que no barco. Já começo a temer que se legalize a pedofilia. Desde que se faça em condições de higiene, as crianças não se queixem, tenham subsídio depois, e haja rastreio higiénico aos clientes. Já vi legalizar tanta coisa! Estamos na miséria? Citando Kierkgaard, "venham os poetas falar daquilo que é belo". Não temos que morrer todos no esterco da vida. Tenho uma utopia: se a pessoa pudesse, nunca faria aborto.

Numa altura em que se esperava que o Vaticano revisse algumas posições consideradas mais retrógradas, é emitido um documento a reprovar a homossexualidade...
Não é só a igreja que é contra a hossexualidade. Não há nenhuma religião, a não ser que depois haja interpretações pastorais, que diga que essa opção é de ordem divina. Sou da maior compreensão face à homossexualidade, mas sou, também, da maior questão perante ela. Honestamente, acho que masculino e feminino são complementares no masculino e no feminino. Esta visão tem milhares de anos, e não estará assim tão errada.

A homossexualidade não é propriamente recente...
Pois não. Passou de perversão a doença. Agora já não é doença, é opção. Qualquer dia é uma obrigação.

Ou seja, evita julgar, mas não aceita?
Se alguém me vier dizer que tem tendência homossexual, gostava de lhe dizer que está enganado. Não aceito como opção igual a outra qualquer. Tenho dificuldade em compreender. Quer mais uma perversão? Ter relações com animais. Até aqui, ainda achamos que é perversão, mas qualquer dia passa a ser natural casar com cães e gatos. Posso parecer exagerado, mas não sei se sou. Há 40 anos, se dissesse que a homossexualidade era opção, estaria a ser tão exagerado como pareço estar a ser agora. É preciso não esquecer que a sexualidade tem associada a ideia de fecundidade.

Concorda que a imensa riqueza do Vaticano pode afastar as pessoas da Igreja?
Concordo, claro. Como a minha.O poder está sempre associado a uma dimensão visível. A riqueza do Vaticano é algo que não se pode hipotecar. Fui prior no mosteiro sistersiense, numa comunidade paupérrima, em que até para mudar lâmpadas tinhamos que fazer peditórios. O IPPAR gastou lá milhões na restauração. É um património tal, que deixá-lo deteriorar-se, era um crime contra nós proprios, a Historia e a memória. O Vaticano vai vender aquilo a quem? Ao Bill Gates? Ao Estado?

O património do Vaticano não é só arquitectónico...
O que importa não é o que temos, é o que damos. O orçamento do Vaticano, em relação a cidades como Lisboa ou Alemanha, não é comparável. O serviço que presta à comunidade, a grandeza espiritual que tem, a quantidade de organismos de apoio aos mais pobres, à investigação, não tem comparação. A maior pobreza é acharmos que é mau os outros terem. Vivi num seminário, em Santarém, uma casa estupenda. Parece muito rica, mas viver lá é quase um castigo. Meu rico andarzinho no Entroncamento! Só o arranjo do telhado daquilo dava para comprar três andares iguais ao meu.

E todo o mistério que envolve o Vaticano: a moeda própria, os livros a que ninguém tem acesso, não o inquieta?
Tenho mais que fazer do que estar preocupado com o Vaticano. Não é dos sítios mais fascinantes da vida. Não sei se é um mal necessário, ou um serviço preciso. Tem muitas virtudes, mas terá também limitações. Faz parte do mistério disto tudo. Não sou admirador do Vaticano; isso não sou, até porque há muita coisa que não sei como funciona. Os que sabem não ficam muito edificados, os que não sabem passam muito bem sem isso. Pertenço ao segundo plano.

Que reacção lhe suscita o mediatismo de padres como o controverso Mário de Oliveira, autor de livros como "Fátima nunca mais"?
Gostava de ver nele um homem feliz. E lamento que a cruz dele seja esta Igreja. Concordo com algumas coisas que diz. Aliás, razão é coisa que não lhe falta. Mas acho lamentável que se faça passar por servidor da Igreja que abomina. É um fio ao qual tem conseguido ser tão fiel, durante todos estes anos, que até o admiro por isso. Honestamente, se achasse da Igreja o que ele acha, já tinha ido embora.

Ele não é caso único.
Pois não. A igreja ainda não sabe lidar bem com estes casos. Ele pode ser um doente, mas é um irmão no sacerdócio. Era talvez possível, entre os colegas, ir pondo água na fervura. Gostava de o ver mais acompanhado. Sou um espectador dele como toda a gente. Expõe-se muito. Acho que ele não é feliz. Mas, provavelmente, ele acha o mesmo de mim.

O celibato é um dossier que a igreja devia rever?
Está sempre a ser revisto, desde que foi instituído pelo próprio Jesus Cristo. É matéria que vai continuar a ser discutida. Mas será sempre um tesouro complicado de nos desfazermos. O tesouro tem sido, nestes séculos, inestimável. Não poderíamos apresentar serviços de qualidade, de testemunho, de autenticidade evangélica, sem esta opção. Mas vai sofrer alterações. O sacerdócio ministerial, até há pouco tempo, estava vedado a não celibatários; neste momento, já há diáconos permanentes que são casados. Lamento que um sacerdote que por causa do celibato deixa de exercer, não seja, pelo menos, colocado no diaconato. O celibato tem que ser uma opção da felicidade, e se alguém não é feliz porque é celibatário deve deixar de o ser. Mas não deve ser reduzido ao grau zero.

Perfil

Idade 40 anos
Trabalho Sacerdote e cantor
Família Um irmão gémeo, um irmão padre
Filme "A missão"
Música "Canção da cidade nova"
Livro "Principezinho"
Cidade Entroncamento
Qualidade Coerência
Defeito Arrogância

Confissões

Fascínio pela comunicação
"Um padre que só dá para padre, geralmente não dá para padre", defende José Luís Borga, que é padre, mas poderia "encontrar-se em muitas outras facetas, todas ligadas à comunicação". Diz que não perdeu "tudo aquilo que era capaz de fazer", mas reconhece: "Na vida, quando queremos agarrar tudo, acabamos por não agarrar nada".

Primeira missa sem o pai
Quando realizou, pela primeira vez, a Eucaristia - "o que mais me agrada fazer na vida, é ser ministro da presença de Cristo numa Comunidade" -, o pai não esteve presente. Havia sido internado. Como agora. "Foi, provavelmente, o momento mais difícil dessa missa", confessa, emocionado só com a recordação. "Estava rodeado de gente que me quer bem, mas nos momentos de maior intimidade, a ausência das pessoas que, se pudessem, estariam presentes, acaba por ser mais marcante. E dolorosa. E sei o quanto para o meu pai teria sido significativo estar ali". Padre Borga aprendeu com a ausência. "Foi uma antecâmara para a minha capacidade de ver mais longe".

Lágrima fácil. E nó na garganta
Comove-se mais do que gostaria. E surpreende-se com isso de todas as vezes. "Há pessoas que, só de me lembrar o que representam na minha vida, me põem um bocado perturbado e com um nó na garganta". Como reage à emoção? "Peço desculpa e passo à frente. Sou sobejamente racional para perceber que tenho direito aos meus sentimentos".

quarta-feira, julho 13, 2005

Paulo Cunha e Silva



"Governo dá-me cobertura política"

"Arrojado, atrevido, a favor da experimentação" - Paulo Cunha e Silva não fala de si; fala do seu pensamento. "Fui escolhido pelo meu pensamento", diz, a propósito da sua escolha para presidir ao novo Instituto das Artes (IA). Naquela que é a sua primeira entrevista como dirigente indigitado para presidir ao novo organismo que regulará a arte contemporânea - a tomada de posse deverá verificar-se no final do mês -, Paulo Cunha e Silva diz ter liberdade para afastar quem quiser, e autonomia para convidar quem entender. "Há muita coragem da parte de quem me convidou". Personalidade mediática cimentada com o Porto 2001, garante não ter uma visão partidária da intervenção cultural, mas identifica-se com o programa do Governo para o IA.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 5 de Julho de 2003)

Estava do lado mais confortável, a fazer dignósticos. Está preparado para passar para o outro lado: ser dignosticado?
Isso é injusto. Durante o Porto 2001, estive do outro lado, e de uma forma guerrilheira: tive editoriais de jornal e cronistas contra mim. Mas sinto-me bem dos dois lados.Sou muito experimental, como o presidente de um instituto de arte contemporânea deve ser. Tentei ser um crítico eficaz, não cabotino, inconsequente ou cretino. Pretendo fazer o mesmo exercendo uma direcção substantiva, estratégica e com sentido.

Foi um das raros defensores da fusão do Instituto de Arte Contemporânea com o Instituto Português de Artes do Espectáculo. Isso influenciou o convite?
Há muita coragem da parte de quem me convidou. Não fui escolhido por ser do PSD, nem sou alguém a quem o Governo quer premiar por fidelidade política. Fui escolhido pelo meu pensamento - arrojado, atrevido, a favor da experimentação - e pela minha prática. A não ser que sejam sádicos comigo ou masoquistas consigo próprios ou que tenha havido um erro de casting, convidaram-me porque há espaço para o que defendo. Não é inocente o facto de o Governo me dar cobertura política e técnica para exercer o mandato com alguma estratégia.

Quais são as principais vantagens desta fusão?
São as menos interessantes: orgânicas, funcionais e administrativas.Acredito que o instituto não foi feito para poupar dinheiro, mas para criar uma estrutura mais ágil. Há um princípio de ligação entre as artes performativas e visuais. E faz sentido haver um instituto exclusivamente dedicado à divulgação da contemporaneidade.Talvez o cinema de autor e a fotografia devessem estar integrados no Instituto das Artes.

"Não serei o coveiro da arte contemporânea nem o burocrata dos subsídios". Será o quê?
Alguém que vai promover a criação e os criadores. Um provedor dos artistas, um interlocutor. Sou uma pessoa que conhece, de facto, o território das artes performativas e o das plásticas.E isso é uma vantagem.

Publicamente ligado ao PS, como se sente sendo uma aquisição do Governo PSD?
A minha ligação com o PS é fluída. Fiz parte da comissão de honra da candidatura de Ferro Rodrigues à putativa liderança do país e aceitei o convite de Francisco Assis para integrar um grupo de reflexão sobre comunicação e cultura. Não tenho uma visão partidária da intervenção cultural. Não sou arregimentado ou arregimentável.

Manuel Maria Carrilho foi um acérrimo defensor da contemporaneidade em detrimento do património, que é a prioridade deste Governo.Prevê obstáculos na gestão do IA?
Isso não é verdade. Li o programa do Governo, e é particularmente generoso na defesa da contemporaneidade. Não aceitaria integrar um instituto com esta importância se sentisse que não há apoio político na prossecução dos seus objectivos. Sou patrimonialista na relação com a contemporaneidade e contemporâneo na relação com o património. Ou seja, criar condições para que ela possa existir no futuro.

O IA nunca existiu. O que vai ser o Instituto das Artes?
Vou apostar em dois pólos de circulação: descentralizar e internacionalizar.Internacionalizar porque a cultura é a melhor imagem do país.Não há diplomacia económica e política sem diplomacia cultural.Ninguém aposta num país que não existe. Descentralizar, no sentido de conciliar o país com a arte contemporânea e mostrá-lo através dela. O Euro 2004 pode ser importante porque envolve muita gente.Tenho ideias para os estádios, mas ainda não faz sentido divulgar.Também o Brasil pode ajudar Portugal a amplificar-se. No âmbito da política cultural, gostava de fazer lá a minha primeira acção do IA. Do ponto de vista simbólico, quero chamar ao instituto "IÁ", com sentido afirmativo, coloquial e contemporâneo, e não "ÍA", verbo condicional e distante.

O IA corre o risco de apoiar mais os artistas já consagrados?
A definição do estatuto de artista é uma das prioridades. O IA não pode apoiar só artistas consagrados, para isso é que existem apoios pontuais, para o carácter efémero, transitório, não sistemático da criação artística.

O que o poderia fazer desistir do Instituto das Artes?
Tirarem-me as condições políticas e financeiras de que necessito para defender este projecto. Não vou fazer um IA assim-assim, vou tentar fazer um instituto bom.

Disse que só toma posse quando o IPAE resolver a questão dos subsídios em atraso. Remete o problema para quem está antes de si?
É uma afirmação com sentido político e não como quem sacode a água do capote. Estou a passar um sinal a quem foi atribuído o subsídio de que não concordo com o atraso. É uma forma de pressão para que o assunto seja resolvido. Uma das palavras mais repugnantes no actual léxico político-cultural é a subsidiodependência. É insultuosa para quem faz da cultura o seu modo de vida. Os artistas dependem do apoio do Estado para fazer o seu trabalho como qualquer um de nós. Eu também sou um subsidiodependente.

Identifica-se com a política cultural do Governo?
Identifico-me com o programa de Governo que diz respeito ao Instituto das Artes.

Disse que as pessoas do Porto 2001 tinham sido mal aproveitadas.Tenciona recuperá-las?
Primeiro, tenho que reciclar as pessoas que vêm dos dois institutos.Não vou fazer nenhuma caça às bruxas, embora me tenham dado liberdade para afastar quem quiser. Claro que também tenho intenção de trabalhar com pessoas que conheço bem, e essas são do Porto 2001.Tenho que convidar dois subdirectores e três directores de serviço.

Mesmo inconscientemente, terá preocupações especiais com o Porto?
Sim. Gostaria de fazer o IA a partir do Porto, de transportar a sede para cá, mas os estatutos não permitem. De qualquer forma, tentarei fazer uma presidência aberta.

Pedro Roseta disse que não cumprirá o segundo mandato. É uma perda?
Não faço comentários políticos. Mas acho-o profundamente empenhado na defesa da cultura. Aliás, como o próprio secretário de Estado, que me surpreendeu muito positivamente.

Qual é o equilíbrio de quem considera a cultura uma importante arma política, mas evita a partidarização?
A minha intervenção é apartidária, mas não apolítica. O triângulo política-economia-cultura é fundamental para um país funcionar convenientemente.

Quando rebentou a polémica da Casa da Música, foi o primeiro a aventar soluções...
Fui a pessoa que mais apareceu na comunicação social a dar a cara pelo Pedro Burmester numa situação politicamente complicada para mim. Disse é que não havia condições para aquele Conselho de Administração continuar.

Querem fazer da Casa da Música o que acusou de quererem fazer com o Porto 2001: uma oportunidade perdida?
Não. A Casa da Música será a nova Torre dos Clérigos do Porto.E, tanto quanto sei, Rui Rio concorda.

Como vê a crítica de Rui Amaral que o acusa de ter gasto 99% da verba do seu pelouro do Porto 2001 em "Outras Despesas"?
É disparatado, esquizóide, patológico. Era preocupante se fosse 5%, porque era excessivo. Sendo mais, só posso estar diante de um de três cenários: ou fiz a programação (o maior colóquio internacional feito em Portugal; mais de 50 edições; a "Rosa do Mundo"; exposições e espectáculos performativos) com 2150 contos e, nesse caso, deveria ser nomeado ministro da Economia; ou há uma patologia contabilística no sentido da nova empresa considerar "outras despesas" todas as que estavam discriminadas; ou, então, e esta parece-me a hipótese mais plausível, essa informação surgiu a seguir à minha indigitação, o que não será inocente vindo de uma pessoa que tem essa afirmação há um ano.

Foi dos maiores críticos do Porto pós-2001, que definiu como a capital europeia do vazio. Quer actualizar a definição?
Não se pode dizer bem nem mal da política cultural da Câmara porque ela não existe. Aliás, o próprio presidente da Câmara faz gala em dizer isso. O que não existe não é criticável. E a cultura é importante como elemento de coesão social. Tendo esta autarquia um discurso social tão arreigado, devia ter percebido isto. As instituições importantes da cidade estão ligadas ao Ministério da Cultura. Se o ministério desaparecesse do Porto, a cidade culturalmente morria. Acabava a Casa da Música, Serralves, o São João.

Entende a cisão entre Rui Rio e Marcelo Mendes Pinto?
Não quero envolver-me nas questões camarárias, mas claro que há uma falta de sintonia. É publico e notório.

Rui Rio terá hipótese de repetir o mandato?
Não sei. Mas acho que está numa situação difícil.

Perfil

Herói Super-Homem
música Clássica e contemporânea
Escritores Pessoa, Proust, Musil. Paixão Mar cidade Rio, Roma, Sidney, Porto e agora Lisboa
Objecto Telemóvel
Filme "Blue velvet"(David Lynch), "eXistenZ" (David Cronenberg)
Lema Trabalhar divertindo-me e divertir-me trabalhando.


Confissões

"O que mais me angustia é deixar de escrever catálogos de exposições, que fazia com a maior das ingenuidades, a troco de um quadro.Vou suspender a minha visão do Mundo. Mas não deixo a crónica - é um observatório que quero manter. Entretanto, já não cultivo orquídeas; vendi-as à minha mãe, juntamente com os cactos.

Protagonismo? Não, obrigada.
Acusam-no de fome de protagonismo. Confrontado com o rumor, surpreende-se."É um anátema que cai sobre todas as pessoas que aparecem. Não é isso que me faz mover, é a vontade de fazer e realizar. Se faço bem e realizo bem, já é outra história". A "Visão" colocou-o no rol dos 200 portugueses mais importantes. Ficará na história? "Na minha, com certeza, porque faço as coisas com desassombro e empenho".

Pedofilia
"O último ano foi muito duro. A crença nas instituições entrou em crise". Sobre o cenário nacional, escolhe a pedofilia. "Houve múltiplos escândalos. O da pedofilia foi o que mais perturbou a autoestima do país. Em relação a Pedroso, é minha convição de que é inocente. O desfecho nunca será feliz: se forem inocentes, o sistema fica precarizado; se não, o país entra em crise.

Carlos Pinto Coelho

"Não sou uma vedeta"

O mais antigo telejornal cultural da Europa deixou de acontecer.À beira de completar dez anos de existência, "Acontece", da autoria de Carlos Pinto Coelho, regressaria depois de amanhã ao ecrã se a Administração da RTP não tivesse, subitamente, ditado o seu fim. Mas na redacção, onde continua a trabalhar a exígua equipa do programa, ninguém parece ter desistido. Riem. É a alegria, explica o jornalista, ao JN, "de quem está triste, mas não abatido.O poder de quem tem a consciência tranquila". De quem há mais de três anos alertou as sucessivas direcções da estação pública para a forma "envelhecida" do programa, e não foi ouvido. A cabeça de Carlos Pinto Coelho fervilha, aos 59 anos, de projectos, de livros que conhecerão nova edição e de livros que estiveram congelados durante décadas. "Sou um homem de luto intenso, mas nunca prolongado".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 9 de Agosto de 2003)
Esta decisão da RTP vem abortar o desejo que tinha de celebrar as bodas de prata do programa...
Aborta uma coisa mais funda do que isso. Em Janeiro de 2000, escrevi um documento intitulado "Como acontece", em que explicava que o programa era robusto, mas estava envelhecido na forma, tinha prestígio, mas estava obsoleto no discurso televisivo e, ainda que fosse bem aceite, era já insatisfatório. Propus a sua reformulação total: nas áreas, nos conteúdos, no décor, nos genéricos, na forma como os cameramen estavam a trabalhar as peças. O documento repousou nos sucessivos directores e administradores da RTP sem nunca terem feito nada. Houve um di- rector que ainda se entusiasmou com o projecto, mas nunca passou disso. O caminho seria o do programa da Bárbara Guimarães, na SIC: visual despojado, sóbrio, bonito, moderno.

Soube do fim do "Acontece" pela rádio. O director de programas, José Rodrigues dos Santos, já explicou as razões?
Não há guerras, animosidade ou ressentimentos entre nós. É mais uma questão de choque de gerações do que de discordâncias profundas.Nesta crise final do "Acontece", o Zé estava de férias, no Brasil.Não podia ter-se pronunciado publicamente. O que estranhei foi ter ouvido pelo presidente da RTP, na TSF, e não pelo director de programas, não agora, mas no dia 27 de Junho, quando anunciei aos telespectadores que iria voltar.

Em televisão vende mais uma Bárbara Guimarães do que um Carlos Pinto Coelho?
Isso é visível. Em quase todas as televisões da Europa e dos EUA, os telejornais de referência são apresentados por homens e mulheres de cabelos brancos. Em Portugal não há uma única pessoa com mais de 50 anos a apresentar. É um toque de referência civilizacional que existe no Portugal do pós-25 de Abril. A Bárbara é jovem, culta, bonita e elegante. Eu tenho 59 anos, tenho cabelos brancos, sou avô. Mas digo isto sem mágoa, porque o ecrã nunca me fez falta.

O "Acontece" acabou pela polémica espoletada pelo ministro Morais Sarmento, pelo seu pedido de rescisão ou pela "selva da audiometria"?
Julgo que sei porque é que me mataram o "Acontece" tão de repente.Tenho a minha cabeça arrumada, mas não quero afirmá-lo na praça pública, porque não tenho provas. O que eu digo empiricamente é que o meu programa era visto, nas suas quatro emissões, por 250 mil pessoas por dia.

Em termos estritamente pessoais como é que sente a perda do programa?
É uma violência emocional para nós todos. Racionalmente aceito que todos os programas têm um fim. Mas o fim que eu esperava era mais bonito do que este. O "Acontece" nasceu como um filho meu. Diziam que não durava seis semanas, que não havia volume de matéria para alimentar sete minutos. E os anos encarregaram-se de mostrar o contrário. Falta-me agora a saborosa relação com os editores de livros. Entregámos 46 mil livros aos portugueses, com o apoio entusiástico desses editores (comove-se). E havia as distribuidoras de discos, filmes, bai- lado... Tudo eram relações de afectos. Não se pode soprar e dizer: "Acabou, gostei muito deste bocadinho." É uma década da minha vida e da minha gente.Somos humanos. Goste-se ou não de mim, julgando que sou ou não uma vedeta - e aproveito já para dizer que não sou. Respeitem, pelo menos, as pessoas que fizeram daquilo o melhor das suas vidas.

Foi uma espécie de missão apresentar esse programa no país europeu que menos consome livros, jornais, teatro...?
Depois de um inglório período de um ano, em que a RTP me mandou para casa, convidaram-me para editar o 24 horas. Foi um fracasso de audiências. Era o programa certo no horário errado. Foi aí que idealizei o "Acontece", que ganhou os três maiores prémios de jornalismo em Portugal.
Concebe o mesmo programa noutra estação de televisão?
Claro. Nós não cometemos nenhum crime. Não tenho vergonha nenhuma do nome "Acontece". Se puder transplantar o conceito e a obra, a vida e a experiência deste produto jornalístico para outro terreno, transplanto sem margem para dúvidas ou hesitações.

Está disponível, portanto?
Não estou morto nem enterrado. Estou disposto, mais do que disponível, a partir para outros projectos. Agora estou na RTP. É a minha casa há mais de 20 anos e continuo a gostar muito dela, apesar de estar muito triste e amargurado. Não me pergunte se quero mudar de mulher com esta rapidez. Quero viver com ela o máximo de tempo que me deixarem.

Aceitaria dar a cara pelo novo magazine cultural que deverá substituir o "Acontece"?
Que magazine? Com que colaboradores? Com que projecto? Digam-me primeiro qual é o projecto e as condições. Agora preciso que termine este período de luto para saber qual será o meu próximo salto. Aí, quando eu entender o que posso e quero fazer, fá-lo-ei com toda a energia, como no início. Os lutos, para mim, foram sempre rápidos. Mas muito intensos.

O programa passa em 90 emissoras de rádio. Também aí desaparecerá?
Claro que não. O programa de rádio, que chega a Macau e a Timor, tem quatro anos, e é completamente distinto da televisão. É a outra menina dos meus olhos, mas essa está bem, obrigada. Se calhar até vai ficar mais robusta, porque agora tenho mais tempo para ela.

A revista, que nunca chegou a aparecer, também poderá beneficiar desse tempo extraordinário?
Não. Só se justificava pela sinergia. Era a terceira perna do projecto "Acontece". Caía quando caíam as administrações RTP e renascia com as novas para voltar a cair. Nunca arrancou na vida. É muito português. Somos campeões europeus dos projectos metidos na gaveta.

Há uma faixa, a da guerra colonial e do 25 de Abril, que se demitiu da cultura, e não aparece nos espectáculos. Daqui a 20 anos essa ruptura será menos evidente?
Há um rompimento da minha geração com a das minhas filhas. A nova geração não quer os valores de alguns pais que se comprazem a chegar a casa, cansados, e ficam bovinamente sentados no sofá a ver novelas e Big Brothers. Mas daqui a 20 anos continuará a haver ruptura. Tem a ver com a globalização. Se calhar, nessa altura, os países já se transformaram noutras entidades cosmogénicas.

Acredita obviamente que a cultura pode mudar o Mundo...
Sempre foi a cultura a alavanca das mudanças, sobretudo nas rupturas.Os políticos entendem isto, mas têm um período muito curto de sobrevivência. Têm pouco tempo para provar, vencer e recolher os frutos. A cultura, ao contrário, tem o tempo todo da humanidade.Muitas vezes, até depois da morte dos seus criadores.

O próprio "Acontece" possui, nesse sentido, uma galeria de mortos.
Vou revelar-lhe uma coisa: o primeiro programa "Acontece" depois de férias, que deveria ir para o ar depois de amanhã, era exclusivamente dedicado a Augusto Abelaira, que morreu dois dias antes de eu saber que o "Acontece" iria morrer também. Com imagens inéditas.Pedi a uma equipa da RTP para filmar o último encontro que ele teve, em vida, com escritores.

A mania de dizer que a cultura é para as minorias não afasta ainda mais as pessoas?
A cultura é como aquelas mulheres bonitas, atraentes, graciosas e inteligentes, que se apaixonam perdidamente por um homem barrigudo, velho, careca, mas que têm toda a ternura e todo o encanto masculino do mundo, que só ela sabe. E, no entanto, quantos homens belos passam por ela, e ela não olha para eles. Quer só aquele.

O que é um jornalista cultural?
Um jornalista é um jornalista, ponto. Depois, como se fosse uma receita para fazer um herói, segundo o poema de Reinaldo Ferreira, junta uma dose de gosto. É preciso ter dentro um grãozinho que nos faça identificarmo-nos com o objecto do nosso trabalho. E ter uma imensa humildade: não somos gente culta. Somos a ponte entre a gente culta e o leitor. Finalmente, é preciso trabalhar desumanamente.

Nestes dez anos, cruzou três governos e muitos ministros da Cultura.
É verdade. O "Acontece" nasceu e morreu com um Governo PSD, o que é curioso.

Torna-se agora evidente a diferença entre a política cultural de Esquerda e de Direita?
Não. A cultura não é de Esquerda ou de Direita. Há acções de Direita no Governo de Guterres e de Esquerda no Governo de Durão Barroso. O conceito de Esquerda e Direita, infelizmente, esbateu-se ao longo de toda uma geração. Com o Muro de Berlim caíram os referentes de extrema. Tem a ver com a globalização, que é o empobrecimento autêntico para a acção mas não para o pensamento.

Não concorda então com o desinvestimento cultural deste Governo?
Concordo, não só na cultura como praticamente em tudo o que é acção. Este momento governativo português é eminentemente reactivo.Há uma reacção em relação a uma situação deplorável que foi encontrada.

Quer dizer que entende?
Não. O que eu discuto são as prioridades. Naturalmente, a prioridade contabilistica orçamental que agora impera no Governo do meu país não é a que eu consideraria primeiro e mais legítima. Mas eu não sou político. Sou, apenas, um cidadão que não abdica das suas opiniões.

Tem vocação política?
Tenho. Não gostava de a exercer, porque não gosto da vida política.

Perfil
Diz que a cultura lhe apareceu "no leito da mãe Sara", em S. Tomé e Príncipe. Foi ela, professora primária, a responsável pela paixão avassaladora que Carlos Pinto Coelho, 59 anos, jornalista, tem pela literatura. Em Lourenço Marques (agora Maputo, Moçambique) onde viveu parte substancial da juventude, a casa estava toda forrada de livros. Do pai, juiz, quase herdou o curso de Direito, que lecionou em Lisboa, abandonando-o no último ano, depois de ter reprovado na oral de Direito das Sucessões. "O único chumbo da minha vida de estudante", haveria de confessar mais tarde.Começou então a estagiar no "Diário de Notícias". Trabalhou em vários jornais e na televisão. Para completar a volta ao Mundo, falta-lhe apenas a Austrália. É uma vedeta? Ele garante que não.

Idade 59 anos
Livro 'Equador', de Miguel Sousa Tavares, foi o último que li
Autor Hélder Macedo, Lídia Jorge, Urbano Tavares Rodrigues
Música Nos momentos muito bons ou muito maus, o concerto n.º 5 de Bach
Trabalho Entrevista a Samora Machel antes de vir pela primeira vez a Portugal Filme "O Delfim", de Fernando Lopes

Confissões
Um livro sobre a televisão portuguesa, chamado "Factos e ficções", está encravado há 20 anos no computador. Entretanto, em Novembro, a ASA reedita, 20 anos depois, o livro de fotografia "A meu ver".A segunda edição, desenhada por Armando Alves, embalada numa caixa de cartão, apresenta 50 textos inéditos de uma nova geração de autores.

"RTP é a única capaz de fazer cultura televisiva"
"Não estou abatido, estou triste. Raivosamente triste. Não me peçam para falar da RTP nos tempos mais próximos. A única coisa que pedi é que deixem a minha equipa unida, que não a chupem para o dia inexorável de uma redacção generalista. Não destruam o capital que a RTP tem, que é a única redacção capaz de fazer cultura televisiva.

"Enorme estima pelo ministro da Cultura"
"Tenho alto apreço e enorme estima pelo actual ministro da Cultura, Pedro Roseta. Quanto mais crucificado é na praça pública pelos seus piores inimigos -que estão dentro do PSD -, mais me apetece dizer e saltar para a rua e dizer que temos, de facto, um homem culto à frente do ministério. Agora, não sei se será bom ministro".

José Manuel Mendes

"Escrevo só
o que não consigo não escrever"

É, desde sempre, alguém vinculado a um imperativo de intervenção crítica pela liberdade e pela democracia. José Manuel Mendes, presidente da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS), defende o nascimento de uma outra instituição, "mais densa e mais ágil", concordando que existem hoje "formas crescentes de censura". Lidera a Associação Portuguesa de Escritores (APE) e preconiza o regresso das bolsas de criação literária. Editou profusamente, mas lamenta ter publicado o primeiro livro aos 13 anos. "Fiquei muito exposto enquanto autor em formação". Hoje, tem no computador milhares de escritos, que provavelmente apagará. Numa rara entrevista, José Manuel Mendes analisa liberdade, democracia, literatura e a sua obra.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 18 de Outubro de 2004)
Acusam-no de ser vaidoso, mas, liderando estruturas como a APE e a AACS, tornou-se cada vez mais discreto...
Não devo ser juiz em causa própria. Desde miúdo que oiço dizer que a minha marca é a arrogância. Mais tarde, a partir dos anos de Coimbra, adquiri o estatuto de aristocrata pelo comportamento, altaneiro, ufano. Haverá, provavelmente, um fundo de verdade nisso? Um certo à vontade no espaço público, um à -vontade feito de rigor e responsabilidade, bem mais do que poderá julgar-se, nunca levou a que eu prescindisse da apelatividade e do convívio a par de um efeito distanciador afeiçoado pelo actor que, em termos profissionais, nunca fui. O facto é que vamos sendo o que de nós fazem. Não vivo em estado de autodeslumbramento. Bem pelo contrário, o pensamento crítico, também em relação em mim, é o ar de que careço para viver.
Mas doseia as aparições?
Muito. Tem a ver com o modo de estar no espaço público. Não seria nunca tiranizado pela luz dos media. Escolho, de uma forma geral, os momentos de aparecer, e entendo claramente que 'less is more'. Sou o oposto de quem tem vocação permanente para se pôr perto de um microfone, diante de uma câmara de televisão ou máquina de fotografia. E, no entanto, considero que, por razões de ordem múltipla, há circunstâncias em que se justifica que eu tenha uma palavra. Sem que isto signifique qualquer pretensão de ter "a" palavra.

Essa discrição aplica-se também aos livros, que publica cada vez menos. A maturidade tem-lhe roubado a vontade de dizer coisas senão a si próprio?
É uma questão terrível. Antes de mais porque me apeteceu, em determinado contexto, o refúgio num silêncio irrevelável. Cumpri, e não tenho publicado porque não quero. Destruí imensa coisa.
Tenho no computador, provavelmente, milhares de escritos que um dia apagarei. Disso tudo há-de ficar um mínimo que ainda me apetece assumir. Mas depois, porque não é incontroversa, bem pelo contrário, a minha relação com isso a que se chama o universo literário, escrevo apenas o que não consigo não escrever. Guardo; quando é necessário publico. O Mundo não perde nada com o facto de eu continuar ausente.

Publica poesia desde os 13 anos. Já tinha noção, nessa altura, de que se tornaria escritor?
Nessas alturas nunca se pensa que se vai ser um modesto escritor, pensa-se sempre que se vai ser um grande escritor. Lia devoradoramente, e escrevia com a ideia de que um dia seria um poeta e um ficcionista de mérito. Escrevi sempre muito, desde os oito anos que durante um longo período da minha vida escrevia todos os dias. A maturidade começou muito cedo sob certos aspectos, e ainda não chegou sob muitos outros, o que é bom. Quando publiquei os meus primeiros livros, já numa fase adulta - cometi o erro de começar a editar cedíssimo, o que não se perdoa - vivíamos no tempo da ditadura e a minha voz era a de alguém vinculado a um imperativo de intervenção crítica pela liberdade e pela democracia. Daí que os livros fossem muito marcados por uma arte que não temia a emergência da História, e que passou esteticamente pelo que ainda era o movimento neo-realista e por alguns dos autores cimeiros desse movimento. Com a chegada dos anos 80, a partir sobretudo do livro "O limiar da terra", não só esteticamente, mas também de outros pontos de vista, a minha escrita mudou e aquilo que vim fazendo passou a ser muito diverso. Começo a escrever menos nos últimos cinco anos, o que tem a ver com a devastação profunda que foi e é a morte de minha mãe. E não creio que volte a essa escrita incontinente de outros anos, a não ser no espaço do meu diário íntimo, que claramente não é destinado a publicação. Mesmo que aproveite fragmentos.

Editar cedo é crescer à vista de toda a gente. Arrepende-se?
Exactamente. Sim e não. Fui muito aplaudido, estimulado, considerado, premiado, mas, simultaneamente, dada a extrema vulnerabilidade do que publiquei nesses anos, exposto, enquanto autor em formação. Resta saber se os anos da chamada maturidade corresponderam, ou não, ao que havia de, eventualmente, promissor nos primeiros sinais.

Há 25 anos fez uma crítica violentíssima à APE, acusando- a de não ter estruturas dinâmicas fora de Lisboa, de não reformar projectos. Por ironia, é agora presidente da Associação. Dissolveu o que criticava?
É muito bom que eu ouça essa crítica de viva voz. Mas creio que a realidade é distinta, seja pela realização de um programa de actividades exigente, apesar do contexto financeiro não permitir ousa- dias maiores, seja na preocupação de afeiçoar a Associação ao país, seja ainda na preocupação de manter diálogo intenso com os sócios, disponibizando-lhes uma revista de prestígio, onde podem publicar textos, ouvindo-os. Não quero com isto dizer que tenha conseguido solucionar todos os problemas que a Associação enfrenta, mas a realidade é distinta daquela que criticava há 25 anos.

Que peso real tem a APE para os escritores?
Isso deve ser aferido objectivamente. Alguns dos prémios literários mais relevantes que existem no país, é fácil ver como eles se repercutem junto dos leitores. Um livro que ganhe, por exemplo, o Grande Prémio de Romance e Novela multiplica as suas edições de uma forma significativa, como não acontece com nenhum outro prémio. Por outro lado, a Associação participa em numerosas iniciativas culturais, de debate, e também na composição dos júris de vários prémios. O que é, por um lado, garantia de isenção, transparência e de qualidade das pessoas para o exercício dessas funções, e, por outro lado, um sinal de que se trabalha na perspectiva de fazer, do ponto institucional da literatura, não uma fortaleza sitiada, mas um espaço aberto a toda a crítica e a um intenso dialogismo.

Está na APE desde 92. Porque é que as bolsas literárias, que sempre defendeu, foram, entretanto, suspensas?
Foram suspensas para requacionação, tendo em vista a produção de um outro regulamento. O dr. Rui Pereira, director do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, criou uma comissão, a que eu presidi, para lhe propor um articulado que ele pudesse apreciar e levar à consideração hierárquica no interior do ministério. O grupo trabalhou de forma intensa e entregou o texto final, que está para decisão, e do meu ponto de vista os resultados a que foi possível chegar apontam para a continuidade, na linha que foi aberta no tempo do ministro Carrilho.

Que memória tem do seu percurso académico, em Coimbra, em pleno Maio de 68?
Foi um tempo quase mágico, apesar da ditadura. Participei nos momentos mais intensos de uma cidade sublevada, profundamente livre. Tenho dito isto muitas vezes, sendo, muitas vezes, incompreendido. Livre no exacto sentido de que nenhuma polícia nos tolhia o pensamento, nenhum movimento era cerceável pela circunstância de estarmos o tempo que fosse necessário na cadeia. Uma cidade que saía da sua rotina e se inssuracionava em nome de um ideal de justiça, liberdade e solidariedade, com flores e balões na rua, a predicar o que viria a ser o 25 de Abril. Era a refulgência do perdurável, do definitivo nos nossos próprios percursos individuais e na história do país.

Sentia que eram uma elite?
A esta distância, a resposta só pode ser afirmativa.

Tem saudades das lutas pelas grandes causas?
Não tenho saudades porque prossigo disponível e diligente. Mas percebo que a pergunta contém um outro universo de referência, que é o deste tempo desprovido de grandes aventuras e desafios profundos poder não ser estimulante. É preciso absorver os clamores que chegam, não ser indiferente ao grito do Mundo - para usar um verso do Édouard Glissant. E não dei-xar de assumir causas pessoais e colectivas, com o que elas implicam. Ou seja, não me demitir da minha capacidade de intervir. Continuando a intervir sempre, permaneço fiel a todas as causas pelas quais me bati e pronto para as que vierem.

Jorge Sampaio sugeriu recentemente que deveria haver um órgão que substituísse a Alta Autoridade para a Comunicação Social, por via da sua alegada ineficácia. A AACC é uma estrutura sem capacidade reguladora real?
A substituição da AACS por uma nova entidade reguladora é uma opção do poder político. Não devo, na presente circunstância, comentar as razões que surgem alegadas para a extinção do órgão que existe, nem os projectos que subjazem a vários dos discursos que vamos ouvindo. Na certeza de que se não integra na ordem democrática um organismo com vocação censória ou de mera representação dos grupos de interesses, importará certamente que, sobre os escombros da AACS, se faça nascer, com reforço de meios humanos e técnicos, uma instituição que não delapide o adquirido, se revele mais densa e ágil e corresponda à necessidade de uma regulação efectiva, não sucumbida à lógica omnívora da concentração ilegítima de empresas, garanta sem hesitações nem tibiezas a liberdade de imprensa, assegure os direitos de personalidade e o reforço de institutos como o direito de resposta. A justa avaliação do que tem sido a AACS está por fazer.

Que leitura lhe merece a crescente dependência dos media face aos grupos económicos, à luz do caso Marcelo?
Existem, de facto, formas de censura há muito rastreadas e hoje crescentes. A um tal fenómeno, urge responder, nos planos legislativo e do sancionamento já preconizado por normas concretas, de modo clarividente. Estou de inteiro acordo com as observações a este respeito produzidas por Jorge Sampaio. O "caso Marcelo", sobre o qual me não pronunciarei em concreto por motivos que radicam nas funções que desempenho, tornou inadiáveis algumas actuações.

Apesar de ter sido um deputado activo nos anos 80, recusa sempre a falar sobre política. Que ideologia defenderia para a criação de um novo partido?
Não vou criar qualquer partido. Se o fizesse, partindo de uma ideia de que se acham exauridos os que hoje existem, seria necessariamente um que se não colasse a uma estratégia em torno da mera morigeração dos efeitos mais nefastos do capitalismo selvagem e buscasse, sob o primado da liberdade e da democracia sem emasculações, uma alternativa global, consistente, eficaz, deveras nova - na análise, nos conteúdos e nas formas da sua intervenção.

Testemunhou o Maio de 68, o Abril de 74... Recorda-se de alguma vez o país ter atravessado semelhante desnorte?
Não. Desde o período da revolução, não. Há mais do que mil razões para se viver com alguma inquietação diante do quotidiano avolumado de sinais de degradação da democracia, seja por uma diminuição da sua dimensão participativa, seja por um esbater do modelo representativo, seja sobretudo por todos os sinais que nos dão conta de um evidente desacerto institucional que só pode deixar a sociedade perplexa, indignada, uma vez que a indiferença será sempre o pior de todos os meios de reacção. Não apenas a ausência de horizontes fagueiros, no que se prende com a vida social, com a organização do quotidiano das pessoas. Também o descalabro a que se chegou nos diferentes domínios: a justiça, a saúde, a escola...

E na Comunicação Social...
O panorama não é alentador. Suponho que chegou o momento do 'turning point' e, para isso, é indispensável que não haja sobreposição de nenhuma lógica de compromissos corporativos, seja em relação ao vigor dos princípios e à clarividência dos métodos de intervenção, seja no abandono de princípios nucleares de defesa da liberdade de imprensa, hoje tão ameaçada.
Perfil
Nunca mais voltou a Luanda, "a cidade quase imemorial, de acasos irrepetíveis" onde nasceu em 1948, e que deixou aos 11 anos." A morte do pai fez com que atravessássemos o Atlântico". Estaciona em Braga. Coimbra vem depois, com a Universidade, onde escolhe Direito. José Manuel Mendes é um poeta. Impenetrável. "Dizem que sou arrogante". Desvaloriza. Os ideais apresentam-lhe o Partido Comunista, pelo qual é deputado à Assembleia da República, na década de 80. Mário Soares reconhece-lhe nobreza. Em 95, distingue-o como Grande Oficial da Ordem de Mérito. Publica mais de 30 livros; está traduzido em vários países. A insuperável morte da mãe abranda-lhe o ritmo. "Escrevo apenas o que não consigo não escrever". Só ele sabe o que deposita todos os dias no diário "e que não se destina a publicação".
Idade 56 anos
Livro "Blood Meridien", Cormac McCarthy
Filme "Casque d'or", de Jacques Bécker e "A eternidade e um dia", de Theo Angelopoulos
Qualidade O que de mim procuro deixar em quanto faço
Defeito A minha obstinada teimosia
Cidade Paris, Londres, Madrid, Praga, Roma, Barcelona. E não sei quantas mais.
Saudade Minha mãe. E Serge Reggiani.
Paixão Memória e acontecer
Desgosto Ter perdido demasiado do miúdo e do jovem que fui.

Raquel Freire

"Lei do cinema insulta
o povo português"


"Gostava que o Mundo fosse melhor, e quando filmo, isso está lá". Seja na contestação da hermética academia de Coimbra, na forma conservadora de olhar a gravidez ou na condenação das mulheres que praticam aborto. Raquel Freire, cineasta, 30 anos, fala com os olhos a arder. Como a vida sobre a qual escreve e realiza. Ela é os filmes dela. E não tem medo de o assumir. "A minha intenção nunca é não chocar", avisa, em entrevista, ao JN a realizadora que trocou o curso de Direito pela paixão do cinema.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 8 de Agosto de 2004)


Está na véspera de ir a Amsterdão realizar um documentário sobre o aborto em Portugal. Porquê filmar na Holanda uma realidade portuguesa?
Há muito tempo que queria trabalhar esse tema; nunca pensei fazê-lo já. Aconteceu conhecer a Rebecca Gomperts - médica e fundadora da organização 'Womens on Waves', famosa mundialmente como o 'barco do aborto' -, e tornou-se um imperativo. Ela estava em Setúbal a assistir ao julgamento de mulheres julgadas pela prática de aborto. Houve uma empatia e decidimos, eu e a Dina Campos, avançar imediatamente para um documentário. Vamos a Amesterdão filmar a Rebecca em acção. Ela é a grande heroína, a nível internacional, a fazer alguma coisa. Quando voltarmos, vamos filmar as mulheres portuguesas.

A 'Women on Waves" apresentou queixa contra o Estado português?
Claro. Tem vários advogados que representam as mulheres portuguesas em tribunais internacionais. Há quatro países que condenam o aborto: Portugal, Irlanda, Polónia e Malta. Portugal é o único que leva mulheres a tribunal e as condena. Nos outros, a lei existe, mas não é aplicada.

A Raquel também já assinou petições a favor do aborto...
Sou pela legalização do aborto e pela não criminalização das mulheres. A cada cinco minutos morre uma mulher no Mundo vítima de aborto clandestino. Nos últimos anos, em Portugal, morreram 100 mulheres. Pode parecer uma realidade distante, mas não é. Está à nossa volta. É só abrir os olhos. É um preconceito burguês pensar que qualquer pessoa tem 500 euros para ir a Espanha. Não só não tem, como tem o direito de o fazer no seu país.

A sua estreia aconteceu em 1999, com "Rio Vermelho" (acaba de sair em DVD), justamente sobre a maternidade.
Todas as pessoas têm obsessões. Uma das minhas angústias era a gravidez. Fiz essa curta e dois anos depois tive o meu filho.

Mostra mulheres grávidas de uma forma pouco comum...
Em Portugal, continuamos com a visão judaico-cristã de que há a Maria e a Madalena. A Maria que é santa, virgem, assexuada; a Madalena é pecadora, sexual. Enquanto não conseguirmos ver a mulher como um ser total, enquanto as mulheres não se convencerem que não têm que responder a modelos pré-estabelecidos e que podem ser que elas quiserem, estarão presas. Quis mostrar mulheres livres. E associar a maternidade ao prazer sexual, à beleza, à feminilidade e não à quase obrigação que há de que a mulher grávida é casta, sendo-lhe negado o prazer.

Apesar de viver em Lisboa filma recorrentemente no Porto. Qual a relação que mantém com a cidade que deixou aos 18 anos?
A minha relação com tudo o que filmo parte sempre da intuição, da emoção e da afectividade. As minhas memórias afectivas são no Porto e em Gaia. Nas duas margens do rio onde cresci. Só este ano consegui escrever um argumento para uma longa metragem em Lisboa. Mesmo assim vim filmar 15 dias ao Porto.

Escreve todos filmes que realiza, e fá-lo desde pequena...
Comecei a inventar histórias quando ainda não sabia escrever. Os meus pais obrigavam-me a ir para a cama às nove e meia, e não conseguia dormir. Ficava na cama às escuras a inventar histórias que continuavam durante meses. Quando terminavam ficava triste e começava outra. Ainda hoje faço isso. Há um lado muito grande de solidão nisto.

"Filme sem câmara", que acabou de rodar no Porto, reflecte essa solidão?
Mudei-lhe o nome para "A vida queima". É sobre uma mulher, realizadora, que vive sozinha. Tem um filho e enfrenta as dificuldades diárias das mulheres de 30 anos que neste país tentam concretizar os seus sonhos não segundo as regras impostas pela sociedade, mas segundo as suas próprias regras. Faz imensas asneiras, queima-se muitas vezes, mas tem uma sede insaciável de viver. É uma personagem um bocadinho suicida porque tem a ilusão que um dia há-se conseguir fazer um filme que vai realmente mudar o Mundo. Tem um lado ingénuo também. Ela já teve o amor da vida dela e já o perdeu. Há um lado por vezes desesperado, porque a vida não é o que ela estava à espera. E há um lado excessivo em tudo. Isso vai queimá-la, porque a vida queima.

Essa mulher é a Raquel?
Essa personagem foi criada com sangue, suor e lágrimas. É a mais confessional que escrevi até hoje. As semelhanças são óbvias. Vai ser chocante, sobretudo para quem me conhece. O filme foi feito sem dinheiro, sem produtor, com uma equipa muito generosa, que dedicou três meses da sua vida a realizar este sonho. Não é o meu filme, é o nosso filme. Tem um lado muito íntimo. Foi o meu projecto mais doloroso. Um milagre.

Solicitou figurantes na Internet. Qual foi a resposta?
Uma surpresa. Recebi dezenas de emails e telefonemas de pessoas que não conheço a oferecerem-se. Foi espantoso.

Foi a primeira vez que arriscou fazer um filme sem nada?
Depois de estar dois anos à procura de financiamento para filmar uma trilogia e não conseguir, decidi que não podia esperar mais. Não conseguia conti- nuar calada e a única forma que tenho de falar é filmando. Então, imaginei um projecto que pudesse ser feito sem dinheiro, sem produtor. Quando toda a gente disse que era impossível, eu disse é possível. E se fosse impossível iria filmar essa impossibilidade. Toda a gente trabalhou de graça e algumas pessoas pagaram para trabalhar. O câmara e director de fotografia, que é um jovem realizador brasileiro, Tomás Resende, pagou a viagem dele do Brasil para cá. Agora preciso de dinheiro para o montar e não tenho. Mas nunca deixei nenhum filme incompleto, não há-de ser este.

Reclama uma linguagem própria no cinema, mas nunca o estudou. Sente que agora lhe faz falta?
O cinema aprende-se fazendo. Não quero que me digam quais são os caminhos; sou eu que faço e descubro. E a minha forma de filmar é a minha, e ninguém me pode dizer qual é, sou eu. Isto tem um lado completamente arrogante, claro. Para ser realizador de cinema é preciso esta arrogância no sentido em que se acredita que se tem alguma coisa nova para dizer ao Mundo, ou que se tem uma forma nova de se dizer.

A sua produtora, Terra Filmes, continua em actividade?
Infelizmente, tive que a suspender por impossibilidades económicas.
A Porto 2001 continua a dever-me 5000 contos. Já a meti em tribunal, mas é uma entidade sem rosto. Estão sempre a mudar de advogados, mas na-da me fará parar. Só a morte.

O que a fez desaprovar a nova lei do cinema?
Mistura produção audiovisual com cinema. Faz falta ficção de qualidade em Portugal - não me revejo nos produtos de ficção nacionais -, mas isso não pode tirar financiamento ao cinema.
Neste projecto de lei as coisas estão misturadas. E não se resolveu o problema da distribuição. Em todos os países da Europa e no Brasil, os distribuidores têm de passar cinema na- cional. Em Portugal desceu para 60% a taxa de exibição. É um contra-senso. E um insulto ao povo português.

O novo Governo representa alguma espécie de esperança?
Não conheço a nova ministra, mas gostava que me recebesse. Preocupa-me que o programa da Cultura do Governo tenha uma visão ultrapassada do que é a Cultura. A Cultura são os museus, o património e as obras literárias escritas pelo menos há 300 anos. A Cultura não é isso: é viva, somos nós que a fazemos todos os dias. Não apoiar os criadores é um suicídio nacional. O Estado demite-se desse papel, e ainda por cima ridiculariza os seus criadores.

A verdade é que o público não adere ao cinema português. De quem é a culpa?
É um problema de distribuição e promoção. O "Rasganço" foi o filme de que o Paulo Branco fez mais cópias. Estreou no país todo e, nesse ano, foi o segundo filme português mais visto, com apenas três semanas de exibição. O seguinte teve 11 semanas e, apenas, mais mil espectadores. O 'Rasganço' saiu para entrar o 'Harry Potter' e o 'Senhor dos anéis'.

Vive do cinema?
Não sei viver de outra forma; tenho sempre projectos. Se não estou a filmar estou a escrever. E quando me dizem que é difícil filmar sem dinheiro, respondo que difícil foi para a minha avó sobreviver à morte de quatro filhos e continuar a sorrir. Não faço a mínima ideia de como vou sobreviver até Janeiro. Mas sei que hei-de conseguir.

"Precisava filmar esse rasganço"
Inconformada, Raquel Freire usa o cinema para falar. Desta vez sobre o aborto em Portugal. Inventava histórias quando ainda não sabia escrever.

Continua muito associada ao polémico "Rasganço". Aquela controvérsia foi pensada?
A minha intenção nunca é não chocar; é pôr em causa a realidade. Gostava que o mundo fosse melhor, e quando filmo isso está lá. Criei sobre um universo que conhecia profundamente, que é Coimbra, onde vivi cinco anos. Coimbra, que é aquela espécie de estufa onde criam as elites governamentais. É um meio fechado, pequeno e pouco progressista. Os jovens estão lá para poder sonhar que podem ser tudo o que quiserem. E eu precisava filmar esse rasganço, essa perda da inocência. Chocou-me a falta de visão das pessoas ao criticarem o filme. Não perceberam que aquilo era um objecto artístico.

Como foi a sua vida académica? Era conhecida como a 'generala vermelha'...
Vestia-me de vermelho, era muito nova, e tinha pertencido até aos 17 anos à Juventude Comunista.Tinha posições de Esquerda em pleno cavaquismo. Os meus pais estudaram em Coimbra, participaram nas lutas académicas de 69. Tinha uma imagem de Coimbra de grande liberdade, rebeldia, intervencionismo político. De ser um espaço privilegiado para os jovens poderem crescer.

Sente que cumpriu a sua missão em Coimbra?
Lutei por tudo aquilo em que acreditava. Digo isto de consciência tranquila porque nenhum de nós tirou dividendos políticos daí. Não queríamos poder. Não era para isso que lá estávamos. Tínhamos a ingenuidade dos verdes anos. Quando terminou, um amigo ofereceu-nos um livro do 25 de Abril a dizer "Não tivemos cravos mas também fizemos a revolução". Hoje, quando vejo o grande atraso no Ensino Superior, não tenho a sensação de falhanço. Conseguimos mudar muita coisa, e não foi só termos deitado três ministros abaixo.

Confissão
Queria seguir Belas Artes. Mas aos 14 anos anos disseram-me que não seria o Picasso. E desisti. Fiz dança, fotografia. Escolhi Direito para entender as regras do Mundo. A cama é o meu olho sobre o Mundo. Os meus filmes são os meus sonhos e os das pessoas que estão à minha volta.
Quando filmo uma curta-metragem, é porque é isso que quero fazer. Há músicas das quais gosto muito que têm apenas três minutos. E são perfeitas assim.