quinta-feira, julho 23, 2009

Henry James: A fera na selva

São menos de 100 páginas, pouco mais do que uma hora de leitura e infinitas toneladas de prazer. "A fera na selva" é talvez o mais pequeno livro de Henry James. A contracapa diz que é o emocionante retrato de um homem, John Marcher, "homem alienado da vida e do amor, perseguido e obcecado pelos seus receios". É isso, claro. Mas é muito mais do que isso. É a história de um homem que deseja tanto apaixonar-se, encontrar o amor, que não o vê quando ele acontece.

É a história de um segredo antigo confessado há muito a uma mulher, May Bartram, que ele julgava que nunca mais iria ver. "Disse-me que tivera desde sempre, como aquilo que lhe era mais profundo, a sensação de que lhe estava reservado algo de muito invulgar e estranho, ou maravilhoso e terrível, que mais cedo ou mais tarde iria acontecer; que lhe estava entranhado nos ossos esse presságio e essa convicção, e que os seus efeitos seriam talvez avassaladores. (...) Não uma coisa necessariamente violenta. Apenas natural e, claro, acima de tudo, inconfundível. A coisa."

O segredo do amor, que de nada serve a quem não o consegue identificar quando ele acontece. Seria May a "fera pronta a dar o salto na selva"? A fera que o mataria ou estaria disposta a morrer por ele? Com ele? Reencontraram-se e isso é tudo. "Um homem e uma mulher cuja amizade se tornou um hábito diário, ou quase, e que portanto se tornou indispensável." Reeencontraram-se e não dizem alto o que os dois, quem sabe, pensaram baixo. "O mais estranho era que o passado, tendo oferecido tanto, não tivesse oferecido um pouco mais. Olhavam um para o outro com a sensação de oportunidade perdida. O tempo presente seria muito melhor se o passado, na longínqua distância, numa terra estranha, não tivesse sido tão estupidamente avaro."

quarta-feira, julho 22, 2009

Philip Roth: O fantasma sai de cena



O fantasma é o desejo de que o desejo possa ressuscitar no corpo de alguém que fez "um pacto de aliança com a monotonia", esquecendo o sexo e o sexo oposto, a tentação, a sedução, a avidez, o prazer, o incêndio, a agonia e o ciúme. E, claro, o amor. "Um grande amor quando a vida já vai longa chega ao arrepio de tudo". O fantasma é achar que se consegue regressar à vida, retomando-a no exacto momento em que ela foi deixada. Mesmo que já tenham passado onze anos. E tudo tenha mudado tanto.

O fantasma é Nathan Zucherman, que conhecemos de outros livros de Roth, aqui com 71 anos, cancro na próstata, incontinência urinária e consciência aguda de uma galopante velhice - a velhice, outra vez - no momento em que menos precisava dela. "Eis a solução dos senis: esquecer". O fantasma que sai de cena é ele, escritor conceituado, quando abandona Nova Iorque para viver longe de quem o ameaçou, também de morte, numa aldeia isolada. E é ele quando volta a sair, provavelmente para sempre, depois de ter regressado para cumprir os tratamentos de quimioterapia, na véspera da segunda eleição de George W. Bush, esse "filho transviado, malévolo e colérico", em Novembro de 2004.

Nesse não previsto regresso à civilização, Zucherman encontra Amy, antiga amante de um antigo amigo, também escritor, já morto, de nome Lonoff. Uma mulher de muitos anos, que um dia foi uma sensual menina-mulher que desfez o casamento do dito amigo. Uma mulher que ele quase cobiçou e que agora está ali, tão ou mais doente do que ele, de tumor cerebral, na recta final da vida. "Uma mulher que passou cinquenta anos a recordar quatro anos - a definição de uma vida inteira" - os quatro anos com o bom amante transformado em mau marido. "Na adversidade tudo era estranhamente arrebatador, e quando não havia obstáculos fomos profundamente infelizes."

Zucherman encontra também um jovem jornalista, Kliman, que quer escrever a biografia de Lonoff, seguro de que terá descoberto um sórdido pormenor da sua vida que lhe pode valer o bilhete para a saída do anonimato. Um jovem jornalista do qual tenta repugnada e desesperadamente ver-se livre. "O homem que tem o domínio das palavras, o homem que toda a sua vida inventa histórias, acaba, depois de morto, por ser lembrado, quando muito, por uma história inventada a seu respeito, em que a sua marca oculta de vulgaridade é descoberta e descrita com impiedosa franqueza, clareza, certeza, com solene preocupação pelas mais delicadas questões de moralidade, e com nada modesta dose de prazer".

Zucherman encontra, finalmente, e não exactamente por esta ordem, Jamie, a mulher (sempre muito mais nova, estamos no planeta Roth) com quem iria só permutar a casa, tão aterrorizada que ela estava com o 11 de Setembro, e mais ainda com a possível reeleição de Bush, que acabaria por concretizar-se. E que se transforma, amor à primeira vista, na mulher que o faz desejar que haja caminhos de regresso ao passado, ao tempo em que a idade não trai o desejo. "A velocidade da atracção não permite resignação nem contém em si resignação alguma - só há espaço para a avidez do desejo." A mulher que o consome e com quem, na ausência da coragem que a velhice impiedosamente subtrai, vai tendo conversas imaginárias. "Mas não será o nosso coeficiente de dor suficientemente chocante sem a amplificação ficcional, sem dar às coisas uma intensidade que na vida real é efémera e por vezes até invisível?"

Não é o melhor livro de Roth, mas é Roth. É impossível não ser muito bom.

terça-feira, julho 21, 2009

Tutear

Tutear é verbo de Verão. Sabe a amor de Verão. Parece uma mistura de "tu" + "tocar". Tocar em ti. Tocar devagar. Serpentear. Com pudor. Sabe a grilos no campo, a silêncio de espanto, a noite estrelada, ao peito de quem se ama, a sonho sem sono, a desejo e a beijo. A beijo de manga a escorrer pelo queixo. A beijo vermelho, escaldado na areia. A morangos molhados em chocolate, a champagne gelado. Tutear é um cavalo a começar a correr dentro do peito, é o sangue a latejar, uma fagulha a incendiar a pradaria, é um foco de luz. Tutear é um pirilampo. É tempestade tropical que chega de mansinho pela manhã, chuva quente que arranca a roupa durante a tarde, dança nua, molhada, apertada ao crepúsculo. É verbo a correr para debaixo da primeira palmeira, verbo a arder, para fazer amor como se fosse a primeira vez, a última vez. Tutear é pulsão, vou dizer, olha para o lado, tapa os ouvidos, sexual, febril, nervosa. É os corpos nús, corpos suados, e os beijos na boca, nos olhos, nos lóbulos, nos pulsos, nos joelhos, nos pés, no umbigo, beijos nesse momento sem nome, nesse momento em por um momento se entra na terra de mel para planar, para flutuar, para depois descer lentamente à terra outra vez, corpos lado-a-lado, respiração concertada, leves carícias na pele, enquanto o coração volta ao seu ritmo normal. Tutear é adormecer transpirado num lençol de prazer. E ronronar como o gato, a adorar festas, a arquear o dorso, os olhos semicerrados, o consolo ao sol da meia-noite, o ar de que a vida toda está em paz e o mundo é o melhor sítio para se viver. É acordar durante a noite numa noite de estrelas cadentes, a rir, quase a dançar, a trocar os pés, sorriso tonto na cara, a pedir desejos, a acreditar neles. A acreditar que é para sempre o que está quase a acabar. A tentar manter aceso o que há-de apagar-se não tarda nada. Quem quer saber? Uma pequena cicatriz, uma tatuagem. Mas já não sai. Ficará eternamente. Promessas. Ícaro e asas de cera. Ariadne no labirinto do Minotauro. Tutear é euforia de miúdos sem idade. Sair para a rua aos pulos como se estivesse a chover, chuvas diluvianas mas quentes que só existem nos países tropicais. E sentir o cheiro da terra molhada. Loucamente feliz, parvamente feliz. Tutear é ir e voltar da Terra do Nunca sem sair do lugar. É não querer o Outono a chegar, o cheiro das castanhas assadas nas esquinas embrulhadas em jornal. É guardar alguém num bilhete como um tesouro. Fingir que são de açucar as lágrimas que serão de sal. E depois escrever uma carta, talvez duas, com envelope e selo e tudo. E cair numa tristeza resignada à medida que passam os dias que se jurou que nunca iriam passar.

segunda-feira, julho 20, 2009

José Eduardo Agualusa: "Barroco Tropical"


Há qualquer coisa em Agualusa que me impede de saber se a imaginação dele é realmente prodigiosa ou se tem apenas um prodigioso arquivo de lendas e histórias ouvidas, saberá ele onde, para derramar com invulgar talento nas suas próprias histórias. Seja como for, "Barroco Tropical", o seu mais recente romance - excessivo em quase tudo: no número absurdo de personagens absurdas, de micro histórias, de esoterismo (anjos também, um com asas pretas: lindo!), de surrealismo, de parêntesis -, é para ler com uma bomba-relógio no coração, em ânsias. Ânsia de chegar ao fim e desvendar porque raio aquela mulher, Núbia de Matos, "puta e pura", cai do céu para se estatelar morta no chão. E não só.

Bartolomeu Falcato, personagem principal do livro, também escritor, é praticamente o alterego de Agualusa. Crítico feroz de Angola, tem com ela uma relação de amor-ódio. E o país, que é seu, retribui com perseguição - à liberdade, claro! -, com um ódio que foi esmorecendo à medida que ele foi ganhando popularidade. No livro, Luanda está à frente do nosso tempo, em 2020, mas continua muito semelhante ao que dela julgamos saber hoje, o que de alguma forma denuncia a pouca fé do escritor no futuro: "Estamos no século XXI. Estamos lá muito atrás. Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome." Apesar disto, e de um ou outro apontamento, ficamos a saber menos do país do que eu inicialmente tinha imaginado.

Sendo ele, Bartololeu, o narrador, não é, no entanto, ele, o responsável pelos melhores momentos do livro. É Kianda, sua amante , "colecção de personalidades", mulher que canta "como quem morre ou como quem mata", "estrela que arde", que "vende a tristeza como os políticos vendem a prosperidade". Personagem completíssima, arrasadora, viciante, que a dada altura diz: "Acontece-me, quando estou quase a adormecer, naquele território de fronteira em que ainda sabemos quem somos, ou julgamos saber, mas em que já não conseguimos abrir os olhos, acontece-me sonhar que voltei a ser uma pessoa, e torno a experimentar sentimentos e a rir e a chorar. Sonho que amo, e que sou amada. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos. (...) Mesmo acordada ainda há momentos em que volto a ser uma pessoa. Vivo a intervalos. Amo a intervalos. Amo em clarões. Amo como quem desperta, e depois retorno à cegueira do sono." Como não querer saber o que pode acontecer a esta mulher? E ao que ela faz ao amor?

Há ainda outros personagens absolutamente deliciosos, como o Rato Mickey, homem de cara desfigurada, ou os irmãos gémeos, anões e estilistas, Jacó e Esau. O livro é tão bom que cada personagem valia um livro autónomo. E é tão bom, independentemente do fio condutor principal, que o meu "Barroco tropical" acabou todo sublinhado. Apetecia-me escrever aqui tudo o que sublinhei, mas fico pela pueril diferença entre a alegria e a felicidade.

"Há quem confunda a alegria com a felicidade. A alegria não se parece com a felicidade, a não ser na medida em que um mar agitado se parece com um mar plácido. A água é a mesma, apenas isso. A alegria resulta de um entorpecimento do espírito, a felicidade de uma iluminação momentânea. O álcool pode levar-nos à alegria - ou um cigarro de liamba, ou um novo amor - porque nos obscurece temporariamente a inteligência. A alegria pode, pois, ser burra. A felicidade é outra coisa. Não ri às gargalhadas. Não se anuncia com fogo de artifício. Não faz estremecer estádios. Raras são as vezes em que nos apercebemos da felicidade no instante em que somos felizes."

Íntima Fracção


É impossível não ser viciada nos alinhamentos de Francisco Amaral. É uma das poucas coisas que me amarra à secretária e me impede de estar sempre a levantar. Ou seja, às vezes, é a única coisa que me faz conseguir trabalhar. Como hoje.

Comboios, barcos e aviões:
Comboios, barcos e aviões são meios de transporte muito úteis. O mundo tornou-se pequeno. Eles aproximam-nos e separam-nos...
http://aeiou.expresso.pt/comboios-barcos-e-avioes=f525931

Beep beep beep:
Tocam as buzinas dos carros nas ruas. O som é sempre o mesmo, mas novinho em folha. Tal como o bater do coração, em música de cordas para a vida. Talvez uma religião : salvadora. http://clix.expresso.pt/beep-beep-beep=f521071

domingo, julho 19, 2009

Miguel Guedes

"Nunca poderia apoiar Elisa Ferreira, porque não compreendo como é possível candidatar-se simultaneamente a Bruxelas e ao Porto. Não gostaria de dizer que é uma falta de respeito pelos portuenses, porque acho que não é disso que se trata. Acho que estamos apenas a falar de uma enorme convicção que ela tem de que não vai ser eleita presidente da Câmara do Porto. Parte para esta prova de aferição já com uma enorme fraqueza, que é a falta de convicção na sua própria candidatura."

Miguel Sousa Tavares (ainda)

[Foto: Rui Moreira]
[Não me lixem: este homem é lindo de morrer!]

"O tempo mostra-nos quem foram as pessoas realmente importantes na nossa vida, mesmo que tenham estado lá pouco tempo. E quem foram as outras que esquecemos ou que teríamos feito melhor em esquecer. O tempo traz-nos essa divisão de águas em relação a tudo, é um seleccionador de escolhas."

Miguel Sousa Tavares, entrevista ao JN

segunda-feira, julho 13, 2009

Quiz XII

Agualusa diz que "a saudade é um fruto vermelho". Eu também acho. Mas também acho que falta uma palavra no dicionário. Que nome se dá a alguma coisa ou a alguém de quem temos saudades, saudades como frutos vermelhos, mas que quase nunca vimos ou com quem nunca vivemos nada? Que nome se dá à falta de uma coisa que não existe?

domingo, julho 12, 2009

Francisco Assis

"Rui Rio é um homem frontal, que habitualmente diz o que faz. E mostra preocupações de rigor na gestão financeira, mas não coloca esse rigor ao serviço de um projecto de desenvolvimento para a cidade."
Francisco Assis, Farpas JN

quarta-feira, julho 08, 2009

O super-herói do PS

Com o PS a derrapar por todos os lados, era absolutamente impossível que Jorge Coelho, com a sua eterna vocação de bombeiro, não viesse dar uma mãozinha! A única coisa que surpreende é não ter aparecido mais cedo.

terça-feira, julho 07, 2009

Miguel Sousa Tavares: "No teu deserto"


Miguel Sousa Tavares (MST) é o único homem a escrever em Portugal que podia escrever mal. Se quisesse. Se não soubesse escrever bem. Podia contar histórias menos bem conseguidas desencantadas em lugares recônditos do planeta, podia plagiar escandalosamente o Hemingway, o Eliot ou o Coetzee, podia escrever 600 - ou 1600! - páginas só com episódios do século XIX, podia reincidir em erros históricos ou mesmo de ortografia, podia degladiar-se com o Vasco Pulido Valente (ou com o José Manuel Fernandes, whatever!), cada um com a sua capa e a sua espada, e perder. Tudo continuaria igual entre nós. Nada mudaria a nossa relação escritor-leitor. Eu continuaria a comprar os livros todos dele e a lê-los. E provavelmente continuaria a aguardar, impaciente, o lançamento de cada novo livro como os adolescentes aguardam a edição de mais um Harry Potter. "No teu deserto", que ele define como um quase-romance, chegou hoje ao mercado - e cá a casa.

José Saramago e António Lobo Antunes não podiam escrever mal. Têm que escrever bem, mesmo muito, muito bem. São obrigados a isso. Caso contrário, como seria possível amá-los com aquela selvagem planta de arrogância que alimentam com o mesmo vigor com que MST - e bem, há que dizê-lo -, deixou crescer a barba? Um leitor não precisa só de respeitar o escritor que lê; precisa de o amar - eu preciso, pelo menos. A José Luís Peixoto também não seria permitido escrever mal. Com aquele ar de vocalista de banda gótica, mesmo que o lêssemos - e lemos sempre -, no conservador meio literário, ninguém o levaria a sério. E um escritor precisa de ser levado a sério. Caso contrário, o "Morreste-me", inicialmente publicado numa edição de autor, nunca nos chegaria às mãos. E sem esse, não viriam os outros. E teríamos ficado todos a perder. Rodrigo Guedes de Carvalho, que também devoramos a cada nova publicação, não tem só que escrever bem, tem que escrever superiormente bem. Primeiro, para provar que não copia Lobo Antunes, que Lobo Antunes até poderá ser uma inspiração, mas que não é mais do que isso. Segundo, para que possamos esquecer-nos do Rodrigo Guedes de Carvalho, pivot de televisão, que nos faz sentir que está quase sempre zangado com o mundo. Nos livros, é o exacto oposto.

Podia desbobinar aqui uma série de autores portugueses - da velha guarda, da nova geração, escritores-escritores, escritores-jornalistas, etc - que por uma ou outra razão não poderiam escrever mal. Mas não me apetece. MST podia escrever mal. É assim. É o único. Porque tem aquele irresistível mau feitio que funciona mais como íman do que como repelente. Porque não é um alinhado, sem ser um desses insuportáveis desalinhados freaks. Porque ama absolutamente o Alentejo e quem não se rende de forma absoluta ao Alentejo não merece saber que o Alentejo existe. Porque é filho de Sophia de Mello Breyner e a poesia é, só pode ser, uma virtude que vem amarrada ao sangue. Porque odeia o facebook e o twitter. Porque e porque e porque. E porque - não há eufemismo para isto - é terrivelmente bonito. E se há casos em que é possível abstrairmo-nos da beleza, este não é definitivamente um desses casos. De qualquer forma, MST não escreve mal. Au contraire. Escreve como quem fala, mas não escreve como fala quando fala na televisão. Escreve como fala em alturas que porventura nunca o ouvimos falar. E leva-nos nessa forma escrita de falar, nessa estória, seja que estória for - do romance, da crónica ou da reportagem - e não nos larga, não nos perde, não nos deixa cair. Ou fugir.

A crítica do DN a "No teu Deserto" publicada anteontem, acaba a dizer que o livro, umas magras 125 páginas, será um "maná para a legião de fãs femininas" de MST. A etiqueta é um bocadinho irritante. É como se gostar de alguém eliminasse automaticamente a capacidade de o avaliar. Ou como se, por causa disso, desse gostar, a ausência de crítica destrutiva fosse batota. Ou como se, por ser uma história de amor (o que era Equador se não, também, uma história de amor?), as histórias de amor fossem terreno exclusivo do mulherio. Exclusivo e movediço, onde os homens não ousam colocar os pés, quanto mais os olhos.

Li "No teu deserto" com a mesma sofreguidão com que li "O animal Moribundo" de Philip Roth - de uma penada só. E também, de alguma forma, justa ou injustamente, com essa história na cabeça. A diferença de idades entre o homem e a mulher (mais de 30 em Roth; 15 em MST), a separação tácita entre quem ensina e quem aprende, entre quem fala e quem cala, a carga erótica (mais em Roth, é óbvio), o silêncio, o prenúncio de morte, o final. Há frases de um que poderiam estar no livro do outro. ("A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos antes de sabermos alguma coisa acerca da outra pessoa", disse Roth - podia estar neste livro de MST. "O tom de menina habituada a ser bem tratada com que pedia «dás-me lume?», ou me levavam ao engano ou à felicidade, que as duas são coisas que andam frequentemente confundidas", disse MST - podia estar no livro de Roth) Mas li-o também com "Romeu e Julieta" de Shakespeare na cabeça: a saber, desde o início, que Julieta (Cláudia para MST) morre, mas a desejar que por um qualquer insondável milagre, a última frase se altere e ela não tenha mesmo morrido.

E se o livro é realmente um romance, ou quase, o melhor romance é aquele que nos põe lá dentro - e este põe. Que faz doer, se é para doer. E faz rir quando é para rir. Se é um livro de viagens, o melhor livro de viagens é aquele que nos leva na viagem. E este leva. Deixa-nos com areia nos olhos, com pó no corpo, com os ouvidos tapados das alturas, extenuados das horas a fio dentro de um jeep, com fome, com frio, com medo. Com um nó. Deixa-nos especados a olhar para as estrelas. E depois, com a terrível sensação de que acabou muito depressa.

"No teu deserto" é uma carta a quatro mãos, a duas vozes, uma carta sobre o que se não disse numa viagem de 40 dias ao deserto, porque em 1987, ano daquela história, vingava a ideia de que "se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer". Como não disseram, escreveram. Vinte anos depois. Mas Claudia entretanto morreu, e como 20 anos é muito tempo, as cartas, dele e dela, chegaram tarde demais. Talvez nem tivesse havido livro, se não tivesse sido tarde. E não, não se trata de uma compilação de cartas na verdadeira acepção da correspondência, com princípio, meio e fim. São cartas-pedaços, cartas-coisas que se sentiram e ainda sentem. É a carta que testemunha e viagem da qual ele "nunca mais regressará". Nem ela.

E é quase tudo novo neste livro de MST. Pela primeira vez, ele arrisca ser a voz feminina de alguém. Pela primeira vez, escreve um livro autobiográfico - todo ou em parte. Pela primeira vez, está ali a escrever sem medir e sem pesar as palavras. Pela primeira vez, não é preciso separar a voz do narrador da do autor, porque ela é a mesma. "No teu deserto" é absurdamente simples, tão simples que dificilmente podia ser mais bonito. Eu, claro, chorei no fim.

SIC na Ronaldomania

Saíram as conclusões da comissão de inquérito ao BPN. Cavaco Silva vetou mais uma lei, a sexta, desta vez do segredo de Estado. Os casos de gripe A continuam a aumentar em Portugal, mas ainda ninguém fez a pré-reserva da vacina. O funeral de Michael Jackson, estrela irrepetível à escala mundialíssima, é hoje. Obama está na Rússia a assinar acordos de cooperação militar. Na China morreram 150 pessoas. E a SIC decide abrir o noticiário com quê? Com o Cristiano Ronaldo, pois claro! O rapaz a sair de Lisboa, a chegar a Madrid, a entrar na clínica para fazer exames médicos, a sair da clínica, os fãs, a música dos Xutos, o Tim a falar da música, os passarinhos, as pedras do chão, as camisolas a 85 euros, a composição - pasme-se!!!! - da camisola, tudo com direito a muitos directos, que o asssunto não era de última hora, mas até parecia. E até parecia importante. Aliás, para a SIC devia ser, porque o assunto não só abriu o noticiário, como o ocupou durante 25 - 25!!!!! - minutos. E como se isso não bastasse, como se não fosse tempo de sobra, ainda voltou ao assunto na segunda parte! Brilhante!

Na sexta-feira passada, a SIC Notícias já tinha feito um brilharete semelhante. O Expresso da Meia-Noite, que é em directo, e que habitualmente dura quase uma hora, não durou mais do que 30 minutos. Porquê? Porque foi sucessivamente interrompido por ligações directas ao Estádio da Luz, onde o palhaço do Vieira estava a tomar posse de uma eleição que acabara de ganhar. Claro que a novela da SIC, em canal aberto, cujo episódio podia ser transmitido naquele dia ou daqui a três meses, não foi tocada. Genial!

domingo, julho 05, 2009

Grande Miguel Sousa Tavares II

[Foto: Orlando Almeida]
"Odeio o Facebook, odeio o Twitter. Ali, todos têm umas teses extraordinárias. São todos cultíssimos, leves, frescos, trendy, sei lá... O Facebook é a maior ameaça próxima para a história da humanidade. Veio subverter todo o tipo de relações humanas. As pessoas deixam de se encontrar, de se conhecer, queimam as etapas todas, deixam de se olhar, mesmo. Tudo se torna fácil, vão para ali para arranjar namorados, para expor as suas vidas. E ainda por cima é uma perversão total da intimidade! E está tudo radiante a expor as suas vidas privadas no Facebook, contentíssimos, porque têm um feedback instantâneo, julgam que assim não estão solitários. E está tudo fechado em casa, diante do computador!"
Miguel Sousa Tavares, hoje, em entrevista ao Diário de Notícias

José Lello

"Manuel Pinho até podia ter feito como Zé Povinho, que também ficou célebre por um gesto especial. Não o fez, porque é mais sofisticado. Mas respondeu como todos os portugueses, para quem o gesto é tudo, responderiam quando ficam feridos na sua dignidade."

sábado, julho 04, 2009

Benfica

Graças a Deus, sou do FCP desde que me conheço! O que se passou com o Benfica, ontem, foi pior do que o meu venenoso imaginário seria capaz de conseguir prever.

Manuel Pinho num país de cínicos


Manuel Pinho vai ser a piada deste Verão e há-de recordado durante anos a fio, sempre que a comunicação social quiser recapitular as gaffes dos políticos. Alguns directores de jornais, seminaristas de vão de escada, estão radiantes com o episódio (o JN, ao contrário, publicou ontem um editorial lúcido e notável). A maioria dos comentadores está em delírio (de notar que Pacheco Pereira e Lobo Xavier, insuspeitíssimos, não sobrevalorizaram o gesto). O twitter, esse recreio Playmobil para adultos, empacotou com os insultos ao que considerou ser um insulto. E os deputados devem ter tido orgasmos múltiplos. O PSD, há muitos anos que não sabia o que era cheirar o poder (embora não saiba claramente que conteúdo dar a essa hipótese poder). E o PC, se tivesse vergonha, obrigava Bernardino Soares a dizer qualquer coisa. Já não digo pedir desculpa, mas dizer qualquer coisa. E, finalmente, Cavaco Silva está com uma espécie de incontinência verbal (alguém lhe dê um bolo rei, por favor!)

O país moralista surfa assim a onda de hipocrisia, feliz e certo dos seus inabaláveis princípios, abrigando-se à sombra de Sartre: ah, o inferno! O inferno são sempre os outros! Virgens pudicas, sacerdotes, criaturas Omo-branco-mais-branco-não-há, uniram-se assim contra o mais deseducado dos seres, esse homem que não sabe comportar-se na impoluta câmara de todas as decisões, esse ministro malvado que ousa - Pasme-se! Parem as máquinas! - erguer dois dedos indicadores em sinal de protesto, de indignação, de seja o que for. Dois dedos que todos interpretaram como dois chifres, dois cornos (Rápido, rápido, fotografem, distribuam a prova!). Não faz sentido. Para mim, aquilo eram duas orelhas. Duas orelhas de burro para Bernardino. É menos grave? Não é. Mas se há imagem que não vale por mil palavras, aquela é essa imagem. E não vale, porque o deslize em nada é inferior aos piores deslizes verbais que ali se ouvem sempre. De todos os deputados.

Manuel Pinho sai dramatica e injustamente pela mais pequena das portas no dia em que o debate da nação correu particularmente mal à Oposição. Quatro anos e meio de legislatura, tão bela oportunidade para fazer perguntas e ninguém tinha uma única pergunta verdadeiramente importante para fazer, e sobretudo nenhuma que tenha ficado sem resposta. Paulo Portas queria a descida do IVA. Ah, mas só valia se tivesse sido em Março, agora já não vale! Paulo Rangel, incomodado com as "palmas soviéticas" do PS (estaria surdo quando a sua bancada urrou?!), preocupado com os 3D que assolam o país - Desemprego, Défice, Dívida externa - acusou Sócrates de ser o primeiro-ministro dos anúncios. Pois, bom-bom era que não tivesse nada para anunciar. Pena é que Manuela Ferreira Leite, querendo constituir Governo, não tenha ainda anunciado nada. Ah! Vai mudar tudo, "rasgar" tudo, mas para fazer o quê? Alguém sabe? Ela própria saberá? E depois, o PSD disse a 7 de Junho, dia das eleições europeias, que o Governo acabara de entrar em gestão; mas agora já é o descalabro Teixeira dos Santos acumular duas pastas nos menos de três meses que sobram.
Compreendo perfeitamente Manuel Pinho, a sua indignação e a sua tão terrena perda de controlo. Não fiquei envergonhada com o gesto, tenha ele significado chifres, orelhas de burro ou simplesmente, vai para o diabo! Fiquei envergonhada com o cinismo de todos os que se indignaram a seguir.

Acho que foi, mas não tenho a certeza, João Pereira Coutinho que escreveu uma vez que em Portugal os eleitores estão ao nível dos políticos, ou talvez até alguns níveis abaixo. Se o PSD ganhar as próximas eleições, isto não podia ser mais verdade. Os portugueses não querem políticos-pessoas; querem santos, mas os santinhos estão no altar, têm pés de barro e também se partem.

sexta-feira, julho 03, 2009

As perguntas que nunca lerei

[Henrique Monteiro, director do Expresso]
[José Manuel Fernandes, director do Público]
Daqui a nada, os jornais vão começar a massacrar-nos com inquéritos de Verão, com perguntas parvas e inúteis, que até poderiam ser interessantes, ou pelo menos ter graça, se quem lhes responde as soubesse usar com inteligência, o que raras vezes acontece. Mas para a coisa ter mesmo piada, as perguntas teriam de ser outras. Depositarei aqui as perguntas que nunca lerei. Com pena.

- Acha que José Manuel Fernandes e Henrique Monteiro vão continuar a twittar quando estiverem na praia?

Grande Miguel Sousa Tavares!

"Hoje em dia, as coisas chegaram a um ponto em que quem diga que acha que José Sócrates é inocente [no caso Freeport], passa a ser suspeito de estar ao serviço do Governo. A suspeição inverteu-se: se não alinho no bota-abaixo do Sócrates, sou suspeito de estar a servir interesses."
Miguel Sousa Tavares, numa belíssima entrevista à Visão.

Boaventura de Sousa Santos

A propósito dos dois manifestos - o dos 28 e o dos 52 -, a crónica de Boaventura Sousa Santos, na Visão, terminava com este tão, mas tão acertado parágrafo:
"Anoto, sem surpresa que, apesar de vários jornais de referência terem dado voz equilibrada aos dois manifestos, o mesmo não sucedeu com o Público, cujo director nos brindou com um comentário ideológico e autodesqualificante contra o manifesto dos 52. Este proselitismo conservador tem muitos antecedentes - quem não se lembra da grosseira apologia da invasão do Iraque e da demonização de todos os que se opunham? - e talvez por isso este jornal tenha os dias contados enquanto jornal de referência."

quarta-feira, julho 01, 2009

Dias Loureiro é arguido


"Fui constituído arguido no caso BPN antes de ser ouvido. Tenho uma grande luta pela frente, mas vou provar que não cometo nenhuma ilegalidade."
Dias Loureiro dixit.
Ah, o PSD da verdade e da candura!

Pedro Burmester

[Foto: Nelson Garrido]

Gosto do Pedro Burmester. De todas as pessoas que entrevistei nos últimos anos - e, bem ou mal, são algumas centenas -, ele é talvez aquela que mais gostei de entrevistar. Não porque, ao contrário do que acontece noutros casos, a conversa se tenha prolongado para lá do stop no gravador, não porque as perguntas lhe tenham roubado respostas particularmente palpitantes, nem porque do texto final tenha resultado um orgulho especial. Mas porque é talvez a única pessoa que entrevistei que em nenhum milésimo de segundo foi aquilo que não é. É honesto do princípio ao fim, de tal forma honesto, que não deixa sequer margem para que por um raro minuto se possa duvidar do que está a dizer. É daquele tipo de pessoas, raras, em que a nobreza de carácter lhe sai por todos os poros.

Este domingo, deu uma entrevista a Sérgio Costa Andrade, na Pública do Público. Raro vê-lo por aí a dar entrevistas, esta foi, se não estou em erro, talvez a primeira desde que saiu da Casa da Música. Fala dela, da Casa que criou, "sem tabus". E do piano, e do futuro, e de Rui Rio, e do Porto clube e do Porto cidade. E honra a palavra, mantendo a coerência: com as sondagens a darem maioria absoluta ao presidente da Câmara, ele não deverá tocar na cidade antes de 2013.

Mas quem acompanhou minimamente as notícias que saíram nos últimos anos sobre o atabalhoadíssimo parto da Casa da Música, não pode deixar de sentir algum desconforto com esta entrevista. Burmester diz que está pacificado, que encerrou um capítulo, que cumpriu a missão, admite até o que sempre se soube, que engoliu sapos, que calou as críticas a Rui Rio só para não prejudicar o projecto. E claro que nem todas as pessoas que fazem alguma coisa bem feita precisam de ter uma estátua plantada numa qualquer praça da cidade ou o mundo a ajoelhar-se-lhe eternamente aos pés. Mas, caramba, algum dia esta cidade (este país?) irá agradecer realmente a Casa da Música que ele, literalmente, pariu? E algum dia esta cidade (este país?) saberá reconhecer o quanto essa mesma Casa da Música teria sido, ainda hoje, sobretudo hoje, tão diferente se não lhe tivessem dado a meio da gravidez uma injecção, que não a matou, mas enfraqueceu para sempre?

Hoje, Pedro Burmester volta ao palco, num recital a solo, no Festival de Música de Sintra.

Afinal, quem vendeu a rede fixa à PT?


Manuela Ferreira Leite desmentiu Henrique Granadeiro e o PS desmentiu Manuela Ferreira Leite. O assunto é sempre o mesmo: aparentemente, ninguém quer assumir a responsabilidade pela venda da rede fixa à Portugal Telecom (PT).

O presidente do conselho de administração da PT, Henrique Granadeiro, em entrevista publicada ontem no jornal I, afirmou que “ainda está na memória de toda a gente a venda pelo Estado à PT da rede fixa como forma de conter o défice público nos limites impostos por Bruxelas, sendo Manuela Ferreira Leite ministra das Finanças”.

A afirmação era ainda uma reacção às declarações que Manuela Ferreira Leite proferira, há cerca de uma semana, numa entrevista à Sic Notícias, quando criticou o eventual negócio entre a PT e a Prisa. “Fiquei muito surpreendido. Primeiro, com a sua preocupação com os accionistas da PT, ponto em causa o interesse de um negócio que não se fez e cujos termos não conhecia. Depois, pelo receio de a PT poder vir a intervir na autonomia editorial de um grupo de comunicação social”, afirmou Granadeiro, sem se inibir de recordar “as tentativas de intervenção do governo do PSD na Lusomundo Media, em 2004” – intervenções que, afirma, acabariam mesmo por conduzir à sua demissão.

Confrontada pelos jornalistas, a líder do PSD, que ontem à tarde esteva reunida numa das sessões do Fórum “Portugal de Verdade do PSD”, negou tudo. “A decisão política dessa matéria não é minha; é do Governo socialista do engenheiro Guterres. Quando cheguei ao Ministério das Finanças a decisão política estava tomada”, esclareceu Ferreira Leite.

No entanto, tornadas públicas as suas declarações, foi o PS que, através do seu novo porta-voz, João Tiago Silveira, veio desmentir o desmentido da líder social democrata, acusando-a de “faltar à verdade”, e assegurando ter provas disso mesmo. “Foi o Governo PSD/CDS-PP que aprovou a venda da rede fixa à PT, quando a drª Ferreira Leite desempenhava funções de ministra de Estado e das Finanças, através da resolução do Conselho de Ministros 147/2002 de 11 de Dezembro de 2002. Esta resolução do Conselho de Ministros foi aprovada oito meses depois de o Governo de Manuela Ferreira Leite estar em funções”, contrapôs o socialista.

Com o detalhe do calendário, Tiago Silveira pretendia demonstrar uma única coisa: que Manuela Ferreira Leite “podia perfeitamente não ter vendido a rede fixa à PT, mas quis fazê-lo”. A líder do PSD ainda não desmentiu o desmentido do PS.

Alguém está a mentir. Quem será?