Há uns dias, a minha primeira melhor amiga, amiga de há 24 anos, amiga de sempre que a geografia impiedosamente separou, enviou-me um mail sobre a geração de 70, a nossa, com uma etiqueta: "Lembrei-me de ti". No fim-de-semana passado, a conversa de café com alguém de umas gerações anteriores descarrilou para o mesmo assunto: para a geração que frequentava pubs ao domingo à tarde e que, para sair à noite, "ia dormir a casa da amiga". Já ninguém vai dormir a casa da amiga; não é preciso. Mas nós passámos anos e anos a dormir uma na casa da outra. Todos os dias. Mesmo quando não queríamos "sair à noite". Ontem, um amigo recente escreveu exemplarmente sobre isso: sobre como "fomos os últimos a ir brincar «lá para baixo», que é como quem diz na rua". Fui, inevitavelmente, contaminada por essa nostalgia. Por essa sensação de termos sido diferentes e talvez mais felizes do que são as pessoas que têm hoje a idade que nós tínhamos na altura.
O mail dela fala de uma altura em que "os carros não tinham cinto de segurança, nem apoios de cabeça, nem air bag. De quando fazíamos farra no banco de trás sem ser considerado perigoso". Eu e ela faziamos pior: a cabeça estava sempre fora da janela, aos gritos. Já ninguém põe a cabeça fora da janela. As janelas têm autocolantes a avisar: "Criança a bordo". O texto dele diz que fomos os últimos "a saber de cor as letras do Zeca Afonso".
O mail dela diz que "os brinquedos eram multicolores e pintados com umas lacas duvidosas, contendo chumbo ou outro veneno qualquer". Hoje, os brinquedos têm etiquetas a assegurar que foram concebidos de acordo com as normas europeias. O texto dele fala de "uma geração equilibrada, os tais que fazem reciclagem, votam, discutem política".
O mail dela recorda que "andávamos de bicicleta sem capacete" - eu e ela numa bicicleta amarela; a minha era uma albrabada BMX chamada LBM -, "que bebíamos água da torneira ou da mangueira e não águas minerais em garrafas esterilizadas. Construíamos escorregas com sabão e aqueles que tinham a sorte de morar perto de uma rua asfaltada podiam tentar bater recordes de velocidade, e até verificar a meio do caminho que tinham economizado os travões. Alguns acidentes depois, os problemas estavam resolvidos".
O texto dele cita "as miúdas a saltar ao elástico, os rapazes a jogar ao guelas, quem tivesse o maior abafador era rei do recreio, todos a partilhar sirumba e futebol humano, escondidas, apanhada, o mata". E, no nosso caso, jogar à mosca, ao salva, ao monopólio e a uma série imensa de coisas que inventávamos só para podermos fazer batota. Sempre as duas.
O mail dela diz que "íamos brincar para a rua com a única condição de voltar para casa ao anoitecer. Não havia telemóveis e ninguém sabia onde estávamos. Incrível. Tínhamos aulas só de manhã e íamos almoçar a casa. Canadianas ou dentes partidos, ninguém se queixava disso. Todos tinham razão, menos nós". Nós éramos também, habitualmente, mordidas pelas abelhas do pai dela. E nunca ficávamos doentes por gostarmos de andar à chuva. O texto dele diz que "fomos os últimos com três disciplinas no 12º ano, a ter que levar aquelas horrorosas sapatilhas brancas para as aulas de educação física". É bem verdade.
O mail dela lembra que "comíamos doces, pão com manteiga, bebidas com açúcar, não se falava em obesidade. Brincávamos sempre na rua e éramos activos. Dividíamos uma laranjada golo a golo e nunca ninguém morreu por causa disso". O texto dele diz que crescemos "com a obsessão do objectivo de vida e mais ou menos cientes de que é preciso tomar opções, definir um rumo".
O mail dela fala ainda da ausência "de playstations, Nintendo 64, X boxes, jogos e gravadores de vídeo, satélites, dolby surround, telemóvel, computador, chats na Internet, só amigos". Diz que "a pé ou de bicicleta íamos a casa dos amigos, mesmo que morassem a quilómetros de nossa casa - e nós morávamos lado-a-lado -, "entrávamos sem bater e íamos brincar. Lá fora, nesse mundo cinzento e sem segurança! Como era possível? Jogávamos futebol com uma só baliza e mesmo que não fossemos seleccionados. Sem frustração, nem fim do mundo. Havia alunos atrasados e que reprovavam. Ninguém ia a correr a um psicólogo ou psicoterapeuta. Não se falava de dislexia, problemas de concentração, hiperactividade. Repetia-se simplesmente o ano e cada um tinha a sua hipótese. Tínhamos liberdades, insucessos, sucessos, deveres e aprendíamos a lidar com cada um deles".
A única questão, pergunta o mail dela, é: como conseguimos sobreviver? E, acima de tudo, como conseguimos desenvolver a nossa personalidade? Talvez as gerações que se seguiram respondam que tudo era "uma chatice", mas... "como éramos felizes, hein?" Éramos mesmo. Eu e ela, então, felizes ao ponto de deixar uma vila inteira comovida no dia em que ela foi morar para outro lugar. Não houve quem não tivesse chorado connosco, por nós. E ainda hoje se fala disso. Ainda há amizades assim?
A única questão, pergunta o mail dela, é: como conseguimos sobreviver? E, acima de tudo, como conseguimos desenvolver a nossa personalidade? Talvez as gerações que se seguiram respondam que tudo era "uma chatice", mas... "como éramos felizes, hein?" Éramos mesmo. Eu e ela, então, felizes ao ponto de deixar uma vila inteira comovida no dia em que ela foi morar para outro lugar. Não houve quem não tivesse chorado connosco, por nós. E ainda hoje se fala disso. Ainda há amizades assim?
Pessoalmente, sempre duvidei do dia em que aquele Spectrum entrou lá em casa. Mas até aquele sonoro "Piiiii... load aspas aspas... piii...", fez de nós uma geração diferente. Quem, hoje, aguentaria esperar 30 minutos para tentar jogar um jogo que ainda por cima podia falhar?
Que texto tão comovente!
ResponderEliminarTenho a minha infância, e também a juventude, retratadas.
Saio daqui com as lágrimas nos olhos.
Tenho falhado em não vir aqui mais vezes. Tentarei ser mais assíduo.
abraços.
e uma boa-viagem pelo México.