domingo, março 18, 2007

Daddy's girl

Daqui a 15 dias, o pai terá 69 anos. Vivemos separados por 40 rigorosos anos de diferença. E, no entanto, por distância nenhuma. Cresci a ouvir dizer que somos iguais por dentro, mas não é verdade - ele é melhor. É mais austero do que eu, mas também infinitamente mais altruísta. Cresci com medo de o perder. Ele só muito recentemente confessou que receava não assistir à nossa idade maior.

Na escola, fui sempre a menina do pai mais velho. E, no entanto, fui eu que assisti à morte do pai da minha melhor amiga, do pai meu melhor amigo, e do pai de mais dois amigos que não eram os melhores, mas eram igualmente importantes. De uma dessas vezes, em que a perda dos outros me paralisava durante dias inteiros, o pai pegou em mim e levou-me a passear. Pediu-me para não ficar triste, porque ele nunca haveria de morrer. "Quando fores grande, já terão inventado uma máquina que me fará viver enquanto tu viveres". Eu já não tinha idade para acreditar nessa magia, mas a promessa comove-me até hoje.

Quando tive consciência da imagem do pai, ele que havia sido intensamente ruivo, já tinha só cabelos cinzentos. Não entendia de onde vinha o meu cabelo cor de laranja. E na escola também ninguém entendia. Mas as crianças têm sempre uma teoria. Quando queriam ser más comigo, diziam que eu era adoptada. E eu ficava triste, mesmo sem saber bem o que adoptada queria dizer. Ficava triste porque queria muito ser daquele pai. Daquele pai com quem ia sempre às compras, que tinha o colo em que me sentava - e sento - sempre, que me ensinou a andar depressa, com quem jogava à Geografia e à História nos passeios domingueiros. Quando todos adormeciam, nós ficávamos a adivinhar o nome das terras. E depois ele contava-me histórias sobre elas, sobre as pessoas famosas que tinham pertencido ali: Antero de Quental, Miguel Torga... Do pai com quem aprendi a gostar de música clássica e que, apesar disso, aceitou a minha incompetência para todos os instrumentos que eram dele e agora são meus: o órgão, o cavaquinho, a viola, o trompete...

Queria ser do pai que acreditou em mim quando aos oito anos lhe disse que queria ser jornalista. Queria ser como ele, na altura correspondente de não sei quantos jornais. Foi com ele que aprendi a lê-los desde o "Cantinho do Nicolau", no Comércio do Porto. Quando estávamos sozinhos à mesa, obrigava-me a fazer exercícios que nunca desprezei. Pedia-me para descrever um garfo em 15 frases sem nunca repetir palavras e eu esmerava-me para dizer tudo o que sabia sobre garfos. Depois, pedia-me o contrário: para descrever o garfo sem ultrapassar duas frases. E extrapolava isso aos objectos todos. Aprendia-se o vocabulário e, ao mesmo tempo, o poder de síntese.

O pai sempre soube que eu queria só escrever. Mas ainda hoje fica triste por eu não arriscar a televisão. Por não gostar de aparecer em nada, nem sequer nas fotografias. Às vezes, diz que tem "um bocadinho de pena" que eu não seja mais vaidosa. Acho que não se conforma por eu não usar maquilhagem, saias, cabelo penteado, saltos altos a condizer com as carteiras e a bijuteria. Mas lida com isso da forma que sabe, a única forma, que é cega, de um pai gostar de uma filha: diz-me sempre que sou bonita de qualquer maneira.

Quando um dia, não há demasiado tempo, cheguei a casa como uma menina pequenina a dizer que me doía a barriga e que por isso não podia trabalhar nas semanas seguintes, o pai levou-me outra vez a passear. "Eu sei que não estás doente. Estás só apaixonada. Não sei por quem, mas sei que seja quem for não está apaixonado por ti. É por isso que te dói a barriga". A barriga deixou de doer nesse preciso instante. Reiterei-lhe o que sei desde sempre: "Posso apaixonar-me muitas vezes, mas não fico com ninguém que não seja como tu".

A nossa cumplicidade, o nosso amor maior que o amor, nem sempre foi bem entendido. Na terrível adolescência, as regras eram demasiado rígidas. Quase tudo era proibido. Namorar, tirar negativas ou reprovar o ano eram proibições incontornáveis. Sair à noite, dormir fora de casa ou não cumprir horários eram proibições que beneficiavam de algumas excepções. A transgressão das regras era alvo de severa punição oral. Nunca me zangava com isso. Mas os meus amigos zangavam, diziam que ele era injusto e exagerado. Eu explicava sempre que não queria perder tempo a zangar-me com o pai. Sabia como ele era - e como ele é: meio minuto depois já se esqueceu de tudo o que disse. O meu irmão chamava-me sacristão por causa disso. Por nunca me zangar e por ser como ele: católica convicta, portista, socialista e soarista. Em quase três décadas deu-me três estalos, curiosamente todos no mesmo ano. Todos por coisas que nem sequer existiram. Eu rio-me quando falamos disso; ele quase chora.

O pai nunca, nunca esteve doente. Mas, há quatro meses, um acidente roubou-lhe a visão esquerda quase inteira. Nunca falou da dor que sentia. Perguntava-me só, vezes e vezes e repetidas, como poderia continuar a ler e a escrever se ficasse cego. Porque saber ler e escrever, continuava, é, a seguir à família, a melhor coisa que temos. E eu, sozinha com ele no hospital, tinha de falar de costas voltadas para a cama para que ele não me visse chorar. O pai sempre disse de temos de estar preparados para morrer amanhã. Isso, diz ele, significa duas coisas: "Nunca dever um tostão a ninguém e mesmo que os outros falem mal de nós, mesmo que os outros não gostem de nós por qualquer motivo, ter sempre a consciência tranquila. Temos que poder desaparecer a qualquer momento sabendo que nunca prejudicámos ninguém".

Ultimamente criámos defesas - defesas relativamente parvas - para não sofrermos um com o outro. Estamos sempre a contrariar-nos, mesmo naquilo que sabemos que defendemos da mesma forma. Se eu falo bem do Sócrates, ele fala mal. Se eu falo mal, ele fala bem. Nas últimas presidenciais, eu votei Soares; ele, até ao último dia, disse que votaria Alegre. Votou Soares. Se eu quero contar uma história qualquer sem interesse, ele diz que não tem tempo para mim. Se é ele que quer contar a história, eu mostro desinteresse. Se eu lhe mostro um texto que acho que me saiu bem, ele diz que não está nada bem, que não estou a evoluir e que X e Y escrevem muito melhor do que eu. Mas se ando desmotivada, se acho que nunca hei-de conseguir ser melhor, ele diz-me que eu ainda mal comecei e que hei-de descobrir formas de superar-me. A competição, insiste sempre, "nunca é com os outros; é contigo". Se eu digo que quero ajudar o mundo, ele diz, furioso, que eu não posso continuar a ser a Alice no país das maravilhas; se ando mais concentrada em coisas fúteis, ele lembra-me que é preciso ajudar os outros. Amuamos como crianças. Eu digo: "Tu já não gostas de mim". E ele responde: "Tu é que já não gostas de mim".

No fim, sabemos os dois como é. Só os dois. Os outros continuam a achar tudo muito estranho. Estranho que estejamos sempre a discutir quando nunca discutimos na vida. O fim-de-semana acaba, despedimo-nos sempre a correr e sem falar muito para não denunciar o nó. O nó que se solta invariavelmente depois. Eu faço cem quilómetros a chorar. Ele também. Mas para dentro. Tal e qual como no dia em que foi buscar-me à Universidade: tinha morrido uma das minhas melhores amigas e eu estava inconsolável. Chorei o caminho inteiro. Ele gritou-me o caminho inteiro. E eu sabia, e sei e soube sempre, que ele só gritava por não suportar ver-me daquela maneira. Como eu grito com ele agora por continuar a não suportar a falta diária que ele me faz.

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