sexta-feira, março 23, 2007

Lição número cem

Na Primavera começava a contagem decrescente. Os cadernos pretos encadernados com a arte que à altura admirávamos já quase não tinham páginas brancas, mas sabíamos que não tínhamos que comprar cadernos novos. Juntavam-se umas folhas A4 emprestadas e serviam perfeitamente para apontar uns sumários aos quais já não daríamos grande importância. Como se o sol fosse a fronteira que ditava a matéria que já não sairia nos testes. Os livros, já todos amarrotados, serviam-nos de almofadas nos intervalos. E os intervalos eram cada vez maiores porque descobríamos o prazer de chegar depois do segundo toque, de sentar na última fila, de não esticar o dedo para responder às perguntas só porque não - o sabor de quem sabe que está no fim da linha. De quem tem os pés na sala e a cabeça onde a voz do professor não chega.

Experimentávamos, com a excitação dos rituais clandestinos, os primeiros cigarros atrás dos pavilhões; alguns trocavam os primeiros beijos. Os contínuos, com os olhos dentro dos bolsos das batas, fingiam não ver. Sorriam discretamente, não como guardiães daquele segredo; mas como se só eles soubessem que nenhum amor sobreviveria às férias grandes. Havia sempre só um rapaz desejado - o mais marginal e tendencialmente o mais velho; sempre só uma rapariga - a mais bonita. Ninguém ficava triste com isso. Era assim. No ano seguinte, talvez os eleitos fossem outros. Eram outros. Trocavam-se bilhetes, promessas enigmáticas escritas a giz nos postes pretos dos corredores. E sonhos, que não eram de Verão, mas do próximo campeonato lectivo. E tudo batia sempre certo. Como nos filmes. Nenhuma história capotava.

Um dia, saíamos de casa para a escola sabendo que não teríamos escola. A lição número cem de cada disciplina era comemorada com pic-nic e gazeta. E euforia. Não era só o ano lectivo que estava quase a acabar. Eram esses amores, protelados durante três períodos, que floresciam, finalmente. Eram as frases silenciadas que ganhavam forma. Era a súbita confiança com os professores e a argumentação que os convencia a esticar um quatro para um cinco - ou um dois para um três. E eles cediam, certamente convictos de que inflacionar notas na aldeia não haveria de corromper o mundo. Era o contraditório desejo de que não acabasse já ali a maratona das aulas. Embora se faltasse cada vez mais às aulas. Embora ser expulso delas se tornasse num improvável momento de glória. Os inquilinos das cadeiras dispostas atrás das mesas em forma de U mudavam nas últimas semanas: as equipas sexistas eram substituídas por casais.

Íamos para o rio na recta final do percurso. E ninguém se sepultava primeiro dentro de um solário por temer exibir a brancura epidérmica. Ser mais ou menos gordo também não era obstáculo para vestir os biquinis da época anterior. Não era relevante. Não se falava disso. Falava-se de tudo o que se calou durante um programa curricular inteiro. Partilhavam-se ideais, caminhos de futuro. E antecipava-se a viagem anual, onde mais paixões haveriam de surgir. Viagens ali, ao virar da esquina, que nos deslumbravam como cruzeiros. Havia sempre alguém, geralmente o rapaz marginal cobiçado, que saltava da ponte mais alta. E sempre alguém que levava um rádio de pilhas com os hits do momento.

Depois, os viciados como eu, iam jogar Tetris até não haver mais moedas no raio de cinquenta metros. Nem os empregados do café eram poupados ao peditório. Tudo em nome de um novo recorde. Bebia-se café com natas. Aguardava-se o baile de fim de tarde, derradeiro momento para angariação de fundos e slows suados dançados às escuras. O concerto nocturno das bandas de garagem da terra encerraria um capítulo que todos sabiam que haveriam de contar vezes e vezes sem conta pela vida fora.

Voltávamos no ano seguinte. E nunca voltávamos iguais. Voltavam os enérgicos debates para a eleição da associação de estudantes. Vitórias emolduradas. Devagar, talvez com maior vagar do que nos sítios onde viviam as pessoas que conhecíamos Verão-após-Verão, crescíamos mais um bocadinho. Mas continuávamos a acreditar, tão cândidos como no início, que nunca haveríamos de nos separar. No fim dos anos lectivos todos, doze seguidos, candidatámo-nos, os seis do núcleo duro, à mesma cidade. Lisboa era a mais conveniente para um, para o que queria Comunicação Social; logo, a mais conveniente para todos. Donos do nosso pequeno pódio transmontano, não estávamos habituados a ser driblados pela ideia de que há mais mundo além do nosso. Ficámos todos separados.
["Amizade fresca, assim, aos 30 anos, é coisa rara!", disse-me poucas semanas depois de o ter conhecido. Eu senti que foi amor à primeira vista. À primeira vista, o amor dispensa universos comuns. Mas nós até temos alguma identidade nos universos. E, ainda assim, não é isso que é relevante. Redescobri o Porto com ele, que é de Lisboa. Fui feliz durante uma semana como já não me lembrava de ser. E quase adoeci de saudade quando foi embora - ele e o parceiro com nome de whisky. Se houvesse desejos garantidos dentro de lâmpadas mágicas, pedia para morarmos na mesma rua. Como não há, vou respeitando os acasos. Pediu-me um post para pendurar na janela do Arranha-Céus onde vive; partilhei este, insegura. Eu escrevo como calha; ele escreve de forma inatacável: directo, certeiro, ao fundo. E não só na América. Um dia, ouvi alguém dizer que é a alegria que distingue as pessoas que vivem no céu das que vivem na terra. Ele, claro, está no céu. "Amizade fresca, assim, aos 30 anos, é coisa rara", concordo, certa de que o que ainda não partilhámos será maior do que o que já vivemos. O Ricky é amizade sem carapaça.]

1 comentário:

  1. Obrigado, bela, e idem. É uma honra ter a tua janela no meu arranha-céus. Estamos juntos, amizade sem carapaça.

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