terça-feira, setembro 30, 2014

Miguel Esteves Cardoso: Casava-me já contigo


Quando eu era pequenino e vi um cartaz do filme The Seven Year Itch, de Billy Wilder e de 1955, perguntei à minha mãe o que era. Ela respondeu: "Ao fim de sete anos a novidade do casamento começa a passar".
Ao fim de 14 anos, cada vez que eu olho para a minha mulher, cada dia que acordo ao lado dela, o que mais me comove e impressiona é precisamente a novidade de vê-la, poder amá-la, ter a sorte de ser amado por ela.
Cada coisa que fazemos é ao mesmo tempo antiquíssima – como uma cerimónia que construímos juntos só para nós os dois – e novíssima, pelo desejo e pelo entusiasmo de lá estar, naquele lugar que ela abriu para mim e ela no lugar que só é dela, que sou eu.
O casamento é só uma palavra: é verdade. Mas também pode ser a vontade de casarmos e ficarmos casados, todos os dias, com a mesma pessoa que amamos.
Cada vez nos casamos mais. As diferenças dela vão cabendo cada vez melhor nas minhas. Cada vez somos, a Maria João e eu, mais livres de sermos como somos, cada um de nós, e de sermos como somos, nós os dois.
Ela torna-se mais ela; eu torno-me mais eu, ela e eu com menos medo que o outro fuja por causa disso. Mas com medo à mesma. E ganância de viver e curiosidade em saber como é que o décimo quinto ano vai ser melhor do que este.
Mas vai ser.

"Love is a fucking bitch"

segunda-feira, setembro 29, 2014

"Os Interessantes", Meg Wolitzer



"A ironia era uma novidade para si e sabia-lhe inesperadamente bem, como uma fruta de verão até então indisponível. Em breve, ela e os outros seriam irónicos durante grande parte do tempo, incapazes de responderem a uma pergunta inocente sem carregarem as palavras com um pequeno ajuste mordaz. Passado relativamente pouco tempo, a mordacidade haveria de se atenuar, a ironia misturar-se-ia com seriedade e os anos encurtar-se-iam e voariam. Depois não faltaria muito para que todos se sentissem chocados e tristes por terem crescido por completo e chegado às pessoas adultas mais densas e finalizadas que eram, praticamente sem hipótese de se reinventarem. (...) Ninguém nos diz durante quanto tempo devemos manter-nos a fazer uma coisa antes de desistirmos para sempre. E também não queremos esperar até sermos tão velhos que ninguém nos contrate noutra área qualquer. (...) Só se tinha uma oportunidade de criar uma identidade na vida, mas a maior parte das pessoas não deixava qualquer marca. (...) Esta vida estava aqui ao meu dispor, a pulsar, a esperar, e eu não a aproveitei. Mas também sabia que não era obrigatório casar com a alma gémea, nem sequer com um "interessante". Nem sempre se precisava de ser a pessoa estonteante, o centro das atenções, aquela que fazia com que todos rebentassem a rir, ou com quem todos queriam ir para a cama, ou ser aquela que escrevia e interpretava a peça que recebia a ovação de pé. Era possível parar de se obcecar com a ideia de ser interessante. (...) Nunca ninguém prevê que a perda da ociosidade é uma das grandes perdas da vida e uma das que deixa maiores saudades."

Meg Wolitzer, Os Interessantes

[É o décimo romance de Meg Wolitzer e eu nunca tinha ouvido falar dela. Mas este livro é seguramente dos melhores que li este ano. Às vezes, aqui e ali, parece um livro para adolescentes, mas nunca poderá ser lido na adolescência. Embora comece aí, nos melhores anos da vida, o tempo dos pactos eternos, dos amigos para sempre, "intocáveis e incorrosíveis", do amor para sempre, o tempo em que tudo é ainda possível, em que ainda "não se entregou as chaves do mundo a outros", o tempo das expectativas desmedidas, em que se acredita que "o talento, essa coisa fugidia, que nos fará suportar a vida". Wolitzer acompanha seis amigos desde os 15 anos até à idade adulta, uma geração que cresceu nos anos 70, desde o período em que ainda não sabia o que seria, até ao momento em que percebe aquilo que não chegou a ser, confrontando-se com a necessidade de reinvenção, de adaptação à "distância entre a fantasia e a realidade". É um livro cáustico, irónico, muitíssimo divertido, e também triste. O NYT comparou Meg Wolitzer a Jonathan Franzen. Talvez seja excessivo. Ainda assim, é livro que nunca mais se esquece.]

sexta-feira, setembro 19, 2014

Rui Nunes: (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?



"Eis uma história que não sabe continuar. Ou não pode. Porque a dor, mesmo quando acaba, anuncia: o erguer da pedra, da lança, do machado. O dedo no gatilho, pequeno aconchego da morte. E nada rompe esta certeza. Os seus mecanismos primitivos.

O sol de súbito. A cegueira oblíqua atravessa a casa. E tudo fica transparente. Como no mar a morte, os corpos que nunca chegarão.
Morrer e viver. Duas portas.
Abertas ou fechadas não passarão de portas.
E sabe-se: qualquer porta é uma mentira.

(...) Somos todos uma vez na vida o peso das nossas
mãos.
Uma vez. Pelo menos.

(...) Já não se anuncia, nem anuncia: está aqui. Abro os olhos e vejo-o. E estou sempre a abrir os olhos. Fecho-os e abro-os de seguida. Está aqui. Eis a minha paz. Está aqui e espera como alguém que sabe de um encontro. Não consola. Não dói. A cada abrir de olhos há uma casa que não me reconhece."

(250 exemplares, 33 páginas, sete euros, um título emprestado de um poema de Nuno Guimarães, uma relíquia como todas as de Rui Nunes, que já várias vezes anunciou o último livro. E agora outra vez. Esperemos que ainda não.)

domingo, setembro 14, 2014

Anne Teresa De Keersmaeker: "Mozart Concert Arias – Un Moto di Gioia"



Nos últimos anos adicionámos Guimarães à nossa agenda. Foi muito antes de Guimarães ser capital da cultura, mas muito depois de Rui Rio ter amputado o Teatro Rivoli ao Porto (o que dá um intervalo de alguns anos de jejum). Foi quando a cidade berço encetou o Guidance. Saíamos do trabalho a correr, fazíamos cinquenta quilómetros em menos de trinta minutos, agradecíamos os espectáculos marcados para as 22 horas (suspeitando que o horário tinha em consideração os órfãos como nós) e mergulhávamos na filigrana do programa de dança contemporânea do Centro Cultural Vila Flor com indizível orgulho por haver auditório sempre cheio e, ao mesmo tempo, com embaraçosa inveja por aquilo não ser na nossa cidade. 

Das muitas coisas maravilhosas que vimos ali ao lado, surgem logo, sem pestanejar, três nomes inesquecíveis: Peeping Tom, Garry Stewart e Jefta van Dhinter. Não incluiria Anne Teresa De Keersmaeker no melhor do que o Guidance nos deu quando nos acolheu, mas ontem, a apresentação, pela Companhia Nacional de Bailado, de "Mozart Concert Arias – Un Moto di Gioia", num Rivoli lotado pelo segundo dia consecutivo, foi quase comovente. Não sei se pela peça, se pelo regresso a casa, se pela casa cheia, se pelo que me parece a libertação de um refém, se por tudo isso. Isto não se explica, mas é comovente voltar a entrar no Rivoli e é sobretudo uma enorme felicidade.

domingo, setembro 07, 2014

Feira do livro



Desde que Passos Coelho me ensinou a não viver acima das minhas possibilidades, fui aprendendo a controlar a fúria de estar sempre a comprar livros novos e passei a ler os que já tinha. Foi assim que me decidi a ler o tempo perdido de Proust, um daqueles livros que achamos que podemos adiar a vida inteira sem perceber o erro terrível que é adiá-lo. Maravilhoso, maravilhoso livro! Obrigada Passos Coelho.

Mas por estes dias abriu a feira do livro no Porto, ou como bem classificou Paulo Cunha e Silva, o festival literário do Porto, e lá voltei a perder a cabeça outra vez, coisa que era cada vez mais difícil perder naquelas feiras da APEL (que cobrava 75 mil euros por feira à autarquia), em que nem novidades nem raridades nem preços do outro mundo. Esta edição da feira do livro, a primeira organizada pela câmara, está cheia de preciosidades (o que só é possível porque as editoras já não têm de pagar dois mil euros para estarem presentes), tem um programa paralelo notável e, ainda por cima, é nos jardins do palácio de cristal. É tão bom viver numa cidade que num domingo à tarde inunda um jardim para vasculhar livros.