terça-feira, fevereiro 06, 2007

Rui Rio - Um livro de estilo

Numa semana em que o país parece estar exclusivamente concentrado na discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, só Rui Rio consegue resgatar-me do tédio noticioso e envolver-me na deliciosa bruma das coisas que ainda conseguem surpreender-me.
O autarca portuense prepara-se para lançar um Livro de Estilo de jornalismo, à semelhança dos que foram, há já vários anos, editados pela TSF e pelo Público. E partilhou, no início desta semana, a pré-publicação da obra - espécie de tese de mestrado, que usa como objecto e amostra de estudo as edições dos dias 1 e 2 de Fevereiro do Jornal de Notícias, para tentar provar o "jornalismo de péssima qualidade" seguido por aquele matutino - no habitual site da autarquia. O texto, imodestamente, intitula-se: "Análise: Jornalismo de péssima qualidade para denegrir a Câmara". (Há semióticos na Câmara e ninguém nos disse nada...)
1. Os jornalistas não devem usar "verbos que simbolizam desagrado, hostilidade, manipulação de factos". A saber: revoltar, sobretudo se em causa estiver o que a edilidade supõe ser meia dúzia de pessoas "a trocar impressões" - hoje, às 16 horas, veremos quantas são as pessoas e quais as impressões que efectivamente as mobilizam; ignorar, contestar, retirar, protestar... A lista de verbos vem adicionar-se a uma lista de adjectivos já anteriormente divulgada e onde figura o famigerado "energúmeno", que levou Augusto M. Seabra a sentar-se num tribunal, acusado de abuso de liberdade de expressão.
2. Os jornalistas não podem ser factuais. Alguns exemplos: se existir um lavadouro que parece uma espécie de esgoto a céu aberto, os jornalistas não devem denunciá-lo; menos ainda ilustrá-lo com a fotografia do local sob pena de transmitir da cidade a ideia "de um cenário tipicamente rural"; se a Câmara não renovar, pela primeira vez em cinco anos, um acordo que garante a aferição da qualidade da água pública, o jornal não deve dizê-lo para não parecer que "a Câmara não tem projectos, nem cuida da cidade"; se a Câmara pedir um empréstimo (2,5 milhões de euros), os munícipes não devem sabê-lo.
3. As notícias devem ser equitativamente distribuídas pela região. Se um jornal tiver, por exemplo, um caderno local dedicado à Área Metropolitana do Porto, não deve privilegiar o noticiário daquela que é, por enquanto, e supostamente, a sua principal cidade. Ou seja, em seis páginas de suplemento dedicar-lhe metade é absolutamente inaceitável. O que acontece em Santa Maria da Feira ou na Trofa é tão importante como o que acontece no Porto. Não o encarar desta forma é uma fórmula traiçoeira para "dar uma imagem geral de contestação e revolta na cidade", sobretudo quando "todas as notícias apresentam um título negativo sobre a Câmara do Porto ou mesmo sobre o seu Presidente".
4. Títulos negativos são, obviamente, punidos com retirada de carteira profissional. Rui Rio não é insensível a nada, não ignora nada, não é culpado de nada. Quem disser o contrário, esse sim, é um energúmeno.
5. As citações que até aqui eram usadas para atestar a veracidade das notícias, deverão passar a ser usadas com parcimónia caso não sejam vantajosas para a autarquia. “Vou pagar o dobro e nem vidros tenho” ou “É o mesmo que me dizerem para não comer”; e ainda “A minha reforma só foi aumentada seis euros” serão claramente censuradas.
6. As fotografias deverão ser substituídas por pinturas de... vá lá, Monet. Sim, paisagens. Porque os repórteres fotográficos, contaminados pelo espírito malévolo dos jornalistas, tenderão a construir imagens que coloquem o leitor a ver, literalmente, o contexto da notícia. Por exemplo, o Bairro do Aleixo - um dos maiores centros de tráfico de droga do Porto - não pode fotografar-se a partir de um dos muitos vidros partidos que por lá existem. Isso é querer "montar um efeito de caos" que obviamente não existe ali.
Nas notas finais, Rui Rio conclui que "a polémica linha editorial" do JN é, como esclarece no título da obra, "de péssima qualidade", mas salvaguarda que o estilo usado para noticiar a cidade "contrasta claramente com as restantes páginas do jornal onde os assuntos positivos e negativos são noticiados com aceitável factualidade".
O Livro de Estilo ainda não tem data de publicação, mas é provável que os próximos capítulos continuem a aparecer no site da Câmara.

3 comentários:

  1. Cara Helena

    Eu acho que o melhor serviço que o JN poderia prestar aos cidadãos e à verdade, seria publicar, na íntegra e sem comentários, uma cópia das páginas do site da CMP em que enormidades como esta são publicadas.
    A verdade é que, quer "ele" queira quer não, muitos cidadãos lêem o JN, e muito poucos o site da CMP.

    Penso que se a maioria dos cidadãos tivesse acesso, via JN (como sugiro) ao corropio de disparates paranóicos que vai aparecendo (nomeadamente sobre o JN) no site da CMP, mais facilmente iam fazer uma ideia mais correcta da personalidade da "besta".

    AM

    ResponderEliminar
  2. É um tratado. E há quem diga que faltam teóricos competentes para ensinar jornalismo e Portugal...

    ResponderEliminar