Regresso ao Bairro do Leal. É fim de tarde e o sol benze as casas com cheiro a jantar na mesa. Ainda há comadres à porta a por a última conversa em dia. Há mulheres de bata vestida, ainda coradas da praia de Matosinhos onde todos os dias levam os netos, que o dinheiro não lhes permite "alugar uma barraca mais longe". E mulheres a guardar outras mulheres, mais velhas, em casa. Para comer a sopa. A dona Teresinha, de oitenta e tantos anos, está a ser comida pela cegueira. Já não faz seja o que for sozinha. Trata a vizinha por mãe e diz que a praia "são muitas horas". Ainda parecem todos uma família, apesar de serem cada vez menos. E eu, que só lá estive uma vez, sou recebida como se fosse um deles - um familiar de longe que vem cumprir uma visita. Com direito ao inexplicável calor de um abraço, de um beijo que não pede nada em troca. Só dois dedos de conversa. De atenção. Recebo mais do que dou.
Aquela senhora mais velha, a da casa da esquina, a dona Claudina, que vive sozinha há tantos anos, depois de ter enviuvado precocemente e, mesmo assim, ter criado seis filhos, já não sai de casa. Está cansada. "Cansada das pernas e de ter medo". Fala através das grades da porta. "Não é por falta de respeito; é por não me ajeitar com a bengala". Também está cansada da cabeça, diz baixinho para não ser mal interpretada. "Ainda sei bem o que digo - e sabe -, mas estou muito cansada. Tão cansada", repete, com as lágrimas a quererem saltar-lhe dos olhos e ela a não permitir. Faz 87 anos para o mês que vem. Está "cansada de não dormir durante a noite". Vive no meio do restolho, cercada por dois casulos em ruínas, onde os rapazes vão drogar-se e fazer "outras porcarias" de que diz nem saber o nome. Só sabe que levam um rádio de música a "dar alto", que dizem muitos palavrões e que, de manhã cedo, quando acorda, os vê ainda "erguer as calças".
No bairro do Leal ninguém parece ter a idade que tem. Dona Irene, "quis Deus tivesse jeitinho de mãos" para fazer arranjos e com isso governar a vida, brinca com a dela. Sabe que parece mais nova do que os seus 59 anos. E diz que é por estar no céu. "Tu estás no céu", diz-lhe a irmã a aludir ao bem por ela praticado. E ela repete. "Só queria que não me tirassem daqui, que a minha casinha é pequenina, mas muito asseada". Se ganhasse o totoloto comprava o terreno inteiro para "cada pessoa poder ficar no seu cantinho". Mas ela nem sequer joga. Gastou 80 cêntimos no outro dia pela primeira vez e a meias com a irmã. Foram 80 cêntimos perdidos
As pessoas do Bairro do Leal já foram felizes. Nos tempos em que ali passavam carros de bois e compravam um quarto de litro de azeite ao azeiteiro - "azeiteiro, era mesmo assim que se chamava" -, um litro de leite ao leiteiro e por aí fora. O senhor Fernando, de olhos verdes como o filho mais novo, tem 52 anos. Nasceu ali e sabe bem do que fala. Não tem saudades do tempo que não volta; tem saudades dos tempos em que diziam que o bairro ia abaixo sem nunca ir. "Tinha a idade do meu mais novo e já ouvia isso". Quase aprendeu a desvalorizar. Foi fazendo obras na casa que é do senhorio, colocando azulejos à medida que ia podendo. Até fez umas escadas por dentro para ter acesso à adega onde guarda as suas coisas e a garrafeira. Mas isso foi nos tempos em que ainda tinha emprego. Tempos em que ainda acreditava que ia morrer no sítio onde nasceu. Ele e a sua Maria Virgínia.
Rui Rio, presidente da Câmara do Porto, destruiu-lhe a pretensão. A dele e de todos os outros, mais velhos, cansados, doentes, que depositou, como cacos velhos, longe de tudo, nos terceiros e quartos andares de bairros que, até serem o deles, não sabiam que existiam. Acelerou-lhes a idade. Condenou-os à morte. "E isso não tem perdão", diz a dona Tininha da casa entaipada de chapa amarela para não cair. "Não tem".
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