domingo, março 05, 2006

Hotel do Chiado


Tem o ar das múltiplas mulheres que diz ter amado, indianas ou orientais de qualquer espécie. E acaba de chegar de Timor, onde terá hipotecado mais uma aventura. A dois imperdoáveis anos da barreira implacável dos 40, fazer uma reportagem num cenário adverso, ainda que em absoluta fase de rescaldo, parece-lhe um troféu, que teme, apesar disso, estar mascarado de prémio de consolação. Ele, que sempre se vira como um repórter de guerra, encarou os últimos meses na redacção, a vasculhar blogs e a trocar conversas inúteis no messenger, praticamente como uma sentença de morte.

Inesperadamente, apaixonou-se pelo oposto do chocolate do oriente, quando ela - mais branca, mais magra, mais baixa, mais nova do que todas as outras mulheres que lhe haviam roubado a atenção -, se encontra já na recta final do estágio no mesmo jornal onde ele se estreara, e que agora acusa de o subestimar. “Passei metade da vida a recusar propostas. Abandonei o curso de Direito, o ensino na universidade, as noites na rádio. Adiei os livros que tenho escritos na cabeça, não levei nenhum dos três casamentos a sério”. Mas, reconsidera, “que culpa tem o jornal da minha cegueira?”

Vou, sem querer, acompanhando aquela conversa, a vários andares do chão, no hotel do Chiado – para mim, escala obrigatória -, onde vestígios de caipirinhas do lado dele, reforços de saquinhos de chá do dela, e a luz de uma Lisboa inteira a ser progressivamente substituída por sombra, ajudam a denunciar há quanto tempo devem já estar ali a colar frases ao sol do fim da tarde.

Faço as contas com a injustiça que pode conter a aparência. Deve haver mais de 15 anos a separá-los. Quando ele começou a trabalhar, ela deveria ter, no máximo, oito anos, a idade de uma das filhas dele, qualquer coisa começada por V, que acaba de ligar a pedir para o pai não se esquecer de levar a bicicleta a casa da mãe, em Sintra. Ele, barba por desfazer, parece ainda mais velho, debruçado sobre a mesa, a tentar digerir, sem parecer ridículo, a ternura da voz da criança que lhe deixou estrelas nos olhos. Ela, mais insegura do que é possível descrever, a enrolar incessantemente os caracóis com a ponta de dois dedos esguios, parece incontornavelmente mais nova.

“Como sabes”, inicia ele a enésima história, “foi em 1859, com um acordo rectificado em 1904, que se estabeleceu o domínio da parte oriental de Timor por Portugal, constituindo uma excepção em todo o arquipélago asiático, que era dominado pela Holanda”. Um acordo tácito. Ela não sabe. Não faz a mais pequena ideia. Ele sabe que ela não sabe, mas insiste em começar as frases assim. Não será inocente. Há ali a intenção de abolir qualquer distância entre eles, mesmo a intelectual, mais óbvia do que a própria idade. Mas ela nem sequer parece muito incomodada com as coisas que desconhece. Limita-se, claramente rendida, a ouvir as histórias. De Timor, do Kosovo, da Guiné, da passagem de Macau para a China. E da política da cidade. E do novo presidente da República. E da vida dos músicos que coabitam com ele no carro. É, aliás, o que mais parece gostar nele. As histórias que ele, imparável, vai depositando no regaço dela.

”Nunca te agradeci por teres aparecido na minha vida”, diz-lhe, pegando-lhe na mão, perdendo o tom pedagógico. Ela sorri. Fala pouco e muito baixo. Quase não ouço o que diz. Olha-o como quem se despede. “Eu sei que posso viver sem ti, mas sou mais feliz contigo”, continua ele, desfazendo o cliché ao explicar que “as pessoas que importam são aquelas que conseguem ver para além daquilo que dizem que somos”. Ela, ao que parece, consegue. Mas o estágio dela acaba amanhã. Diz-lhe que não se imaginaria a viver em Lisboa. Ele pede-lhe para ficar. Insiste. Discorre argumentos profissionais e outros. Levanto-me antes de se separarem talvez para sempre.

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