Assim, de repente, a quem poderia interessar o Bilhete de Identidade dissecado de Maria Filomena Mónica? Mais depressa interessaria a biografia de Isabel Figueira, sobretudo se fosse ilustrada. Aparentemente, entre a vida de uma socióloga e a vida de uma manequim venha o diabo e escolha. Mas desde que o casamento desta última fez manchete num jornal diário, tudo é possível! Adiante. Maria Filomena Mónica descreveu a história da sua vida (e, de certa forma, da vida dos outros) entre 1943 e 1976. E acompanhou-a da história de Portugal no mesmo período. Não gostando particularmente dela, não consigo ser clara em relação ao motor que me fez adquirir o livro. Talvez uma crónica de Francisco José Viegas no JN, talvez a desmultiplicação da senhora em entrevistas por todos os lados, talvez as críticas tão contraditórias. Não sei. O facto é que o comprei. Facto maior é que ao fim de três dias o havia já acabado de ler. E não devo ser a única. "Bilhete de Identidade. Memórias 1943-1976", editado pela Aletheia, em Outubro do ano passado, figura em todos os tops de venda das livrarias nacionais. Maria Filomena Mónica é loura, é bela, é sensual. Mesmo agora, com mais de cinquenta anos. E sabe-o desde quase sempre. Por isso, o seu auto-retrato é presunçoso, egocêntrico, ufano. Isso significa que o livro é mau? Não. É, isso sim, um livro fácil de atacar. Porque é descarado num país em que o pó da alma, e do resto, se esconde sempre por baixo dos panos. Porque é sincero, mesmo quando as passagens de diários escritos na adolescência poderiam fazer corar de vergonha a própria autora. Porque é despudorado - tão despudorado quanto é possível ser o relato de qualquer experiência sexual. Quanto mais de várias. É ainda mais fácil de atacar porque a liberdade a que todos se permitem nos sinais exteriores de vanguarda (geralmente circunscritos à casa, ao carro, à roupa e, vá, com alguma sorte, a duas ou três teorias intelectuais decoradas para verter na mesa de café) não é extensível à abertura com que digerem termos como menstruação, traição, fracasso, dívidas, família, ambição. O facto de não ser comum admitir-se qualquer um destes itens, não quer dizer que eles não proliferem em cada um dos nossos lares. As memórias de Filomena Mónica poderiam ser só, portanto, a história de uma menina loura que não queria ser reconhecida pelas suas qualidades estéticas (embora lhe desse prazer usufruir delas) mas pelas suas capacidades intelectuais, tarefa tanto mais difícil quanto o facto de os seus parceiros terem sido proeminentes figuras como Vasco Pulido Valente. Mas as suas memórias são mais do que isso. Não são apenas factuais, como é óbvio. Não se espera isenção de ninguém no relato da sua própria existência. São o retrato do suposto creme de la creme da Lisboa daquela altura. Estão lá os Sampaio, os Vaz Pinto, os Vasconcelos e muitos outros, hoje reconhecidos por todos. O retrato de um nicho para quem o status social determinava as regras e os direitos. E quase tudo. Insegura em relação à sua própria condição social - Adquirida ou herdada? Seria ela uma menina 'bem' como as suas amigas ou 'bem' mas não tanto como elas? -, e desconfiada, tantas vezes, da bagagem que temia não ter, Filomena Mónica partilha a escalada de uma montanha, nem sempre fácil. E partilha também as oscilações políticas, dela e do país. Partilha ainda a futilidade a que estavam votadas as mulheres de então, para quem ingressar no ensino superior (as que podiam) era visto como um capricho, e desmistifica o meio académico, ao qual, apesar de tudo, continua a pertencer. No fim, fica um travo estranho a atestado de inocência. Como se tentasse provar (aos outros ou a ela?) que tudo o que fez, fez por uma causa maior. Por um lado, seria a confessada necessidade de saber; por outro, a necessidade de um cobertor humano quentinho a atenuar-lhe as quedas. Será assim tão diferente dos outros? Também não. A única diferença é que, por mais umbiguista que seja, admitiu-o. Perante o país que a quiser ler. |
terça-feira, janeiro 10, 2006
Maria Filomena Mónica
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