Michel Houellebecq, 49 anos, é dos escritores franceses mais cínicos. E dos mais geniais também. Tão cínico e tão genial que não consegue deprimir, apesar da negrura, da mordacidade toda que imprime ao que escreve. Não consegue deprimir porque escreve, literalmente, como quem goza com o leitor - e com a humanidade inteira; como quem retira sórdido prazer das dúvidas que impõe, das provocações afiadas com que espicaça. E o leitor facilmente se deixará levar.
Abandonou a família e a função pública há mais de 20 anos para viver sozinho na Irlanda. Escreve sobre isso. Sobre a qualidade da relação com as vacas inversamente proporcional à relação com os humanos. Sobre o isolamento e sobre o fim de quase tudo, a começar pelo amor. "Fenómeno raro, artificial e tardio, o amor não pode desabrochar a não ser que tenha condições especiais, raramente reunidas e em todos os pontos opostas à liberdade de hábitos que caracterizam a época moderna". Escreve como quem não faz parte do mundo; como quem só observa mais e melhor do que outros e, semi-visionário, vai dando pistas, que nunca são soluções para viver, mas instrumentos para morrer. As mulheres odeiam-no; ele trata-as como criaturas mentecaptas e meramente sexuais e, mesmo assim, de usufruto duvidoso. A visão misógina não serve para cativar os homens, que vêem nele um escritor perturbado. Os críticos reduzem-lhe a ficção a sociologia de bolso.
Houellebecq deve rir-se de todos. Traduzido em mais de 40 países, com mais de um milhão de livros vendidos, tornou-se numa incontornável celebridade europeia. Escritor maldito? Ele responde que, quando muito, será uma pessoa maldita. Os seus livros são autobiográficos? Dispara a gargalhada em negação. Diverte-se a inventar factos sobre a sua vida - inventou que a mãe se suicidou só porque "as mentiras são sempre mais sedutoras e sensacionais" e porque "a imprensa não suporta a verdade" -, mas reconhece que trabalha por aproximações. "Escuto muito as pessoas. Ouço-as com atenção e cuidado, mesmo quando pensam que não estou interessado no que dizem. Com frequência, o que as pessoas dizem reaparece, tal e qual, nos meus romances. Talvez possa dizer-se que é um método de prospecção da realidade por contacto directo e informal. Chamo a isso simplesmente ouvir e aproveitar".
"Extensão do domínio da luta", o seu primeiro romance [editado em Portugal pela Quasi, em Outubro 2006], é triste, pessimista - "Só o suicídio inacessível espreita à superfície" -, e é contado pela voz de um personagem de 30 anos, para que ninguém caia na tentação de adiar a desesperança. "Nem a boa vontade pode impedir o retorno cada vez mais frequente destes momentos onde a solidão absoluta, a sensação de vacuidade universal e o pressentimento de que a existência se assemelha a um doloroso e definitivo desastre premeditam o mergulho num estado de verdadeiro sofrimento."
Anuncia com hirta convicção a extinção progressiva das relações humanas - "Tem-se a sensação de que se pode rastejar, cortar os pulsos com golpes de lâmina ou de se masturbar em pleno metro que ninguém há-de reparar; ninguém fará um gesto. Como se estivesse protegido contra o mundo através de uma película transparente, inviolável e perfeita". -, critica o imaginário das sociedades pós-modernas que tende a fingir oferecer felicidade às pessoas e discorre ironicamente sobre os efeitos do consumo. A prostituição, hierarquização do sexo pago, será uma das poucas vantagens que encontra no devir actual. "Precisamos de aventura e erotismo, porque temos necessidade de nos ouvir dizer que a vida é maravilhosa e excitante; e é muito verdade que mesmo assim chegamos a por tudo em causa".
O livro, dividido em três partes e em agonia crescente, é uma obra-prima obrigatória. Não porque ensine a viver com falência que anuncia, não porque ofereça pistas de inversão de marcha, mas porque é terrivelmente bem escrito e porque conterá verdades maiores do que aquelas em que estamos habituados a acreditar. "Se fosse preciso resumir o estado mental contemporâneo com uma só palavra, sem sombra de dúvida que escolhia: amargura".
"A Extensão do domínio da Luta" é um livro mordaz; o próprio autor é mordaz em tudo, como já disse o texto. Pensei que o fino livreto fosse leitura fácil, para uma só tacada. Demorei para termíná-lo, quase três dias, pois não suportei tanta lucidez em tão poucas páginas. Muitas das desilusões da vida moderna estão expostas como uma ferida de uma facada. Não é um livro para passatempo, com toda certeza. "a possibilidade de uma ilha", do mesmo autor, ao menos distribui o veneno por centenas de páginas; entretém bastante. A "extensão..." traz o veneno concentrado, danoso.
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