sexta-feira, agosto 30, 2013

Seamus Heaney [1939-2013]


Entrevistei-o em 2001, numa altura em que só sabia vagamente quem era. Nesse ano, Lobo Antunes recusara dar-me uma entrevista por não ter lido todos os seus livros. Ao contrário, Seamus Heaney, de quem tinha um só livro, acolheu na sua simplicidade uma miúda de 23 anos, acabada de chegar à profissão, e o seu terror de não entender aquele sotaque irlandês. Seamus Heaney, Nobel da Literatura em 1995, está longe de ser dos meus poetas de eleição, mas nunca mais esqueci aquele dia que ainda hoje parece-me que não aconteceu. E a morte do homem que inspirou aquele que é apontado como o melhor discurso de Bill Clinton - "Um dia a esperança irá rimar com a história" - deixa-me triste.

Um dos meus poemas preferidos:

And some time make the time to drive out west
Into County Clare, along the Flaggy Shore,
In September or October, when the wind
And the light are working off each other
So that the ocean on one side is wild
With foam and glitter, and inland among stones
The surface of a slate-grey lake is lit
By the earthed lightening of flock of swans,
Their feathers roughed and ruffling, white on white,
Their fully-grown headstrong-looking heads
Tucked or cresting or busy underwater.
Useless to think you'll park or capture it
More thoroughly. You are neither here nor there,
A hurry through which known and strange things pass
As big soft buffetings come at the car sideways
And catch the heart off guard and blow it open 
(Postscript)



quinta-feira, agosto 29, 2013

Charles Bukowski (1920-1994)


http://bukowski.net 

Os admiradores do escritor Charles Bukowski (1920-1994) dispõem agora de um site integralmente dedicado ao autor de Mulheres – http://bukowski.net –, que reúne poemas dactiloscritos, cartas, entrevistas, fotografias, desenhos e muitos outros documentos relacionados com o escritor, incluindo o seu processo nos arquivos do FBI.

O site apresenta ainda uma minuciosa bio-bibliografia de Bukowski, um mapa com todos os edifícios onde morou em Los Angeles, uma lista dos muitos empregos que teve, uma base de dados com todos os seus poemas (alguns nunca editados em livro) e um fórum de discussão online.

Vinte anos após a sua morte, o “dirty old man” (em tradução livre, “velho tarado”) já não é apenas um autor de culto entre apreciadores de literatura marginal, mas um escritor amplamente consagrado, objecto de sucessivas biografias e estudos críticos e traduzido nas principais línguas do mundo.

Embora tenda a ser associado aos autores seus contemporâneos da geraçãobeatnick, como Jack Kerouac, William Burroughs ou Allen Ginsberg, Charles Bukowski nunca conviveu com eles e a sua obra é difícil de enquadrar em qualquer movimento. A ser possível encontrar-lhe antecessores, Henry Miller ou, muito antes dele, o poeta romano Gaio Valério Catulo, autor de sátiras ousadamente obscenas, são dois candidatos aceitáveis. E Bukowski admirava John Fante, autor de Pergunta ao Pó, tendo sido o grande responsável por recuperar a sua obra do injusto esquecimento a que estava votada.

Obsceno, machista, anti-social, tanto na vida como na obra, Bukowski é um dos mais genuínos candidatos, entre os autores do século XX, ao equívoco estatuto de escritor maldito. Mas se uma parte da sua vida se resume, de facto, a empregos precários, bebedeiras e mulheres de ocasião, ele próprio parece ter deliberadamente contribuído para exagerar um tanto a sua aura de alcoólico, pobre, vagabundo, dissoluto.

O certo é que escreveu uma obra que se estende por meia centena de livros de poesia, muitos deles só editados postumamente, vários volumes de contos, seis romances, e outros escritos de mais difícil arrumação. Os livros de Bukowski editados em Portugal incluem o seu romance de estreia, Correios (Post Office, 1971) – o autor foi durante alguns anos funcionário dos Correios –, o livro de contos A Sul de Nenhum Norte (South of No North, 1973) e o já citadoMulheres (Women, 1978).

A obra e a vida de Bukowski também chegaram ao cinema. Em 1981, o cineasta italiano Marco Ferreri inspirou-se nas histórias breves de Erections, Ejaculations, Exhibitions and General Tales of Ordinary Madness (1972) para realizar os seus Contos da Loucura Normal, com Ben Gazzara. E em 1987, Barber Schroeder realizou Barfly, com argumento do próprio Bukowski e Mickey Rourke no papel do alter-ego do escritor, Henry Chinaski. Mais recentemente, em 2005, Bent Hammer adaptou o romance Factotum (1975) no filme homónimo, interpretado por Matt Dillon.

Dois anos antes, em 2003, John Dullaghan estreara o documentário Charles Bukowski: Born Into This, muito bem recebido pela crítica, e para o qual recolheu depoimentos da última mulher do escritor, Linda Lee, de Marina Louise Bukowsky, filha de Charles Bukowski e de uma sua episódica namorada, a poetisa Frances Dean Smith, e ainda de amigos e admiradores do biografado, como o actor Sean Penn ou o cantor Tom Waits.

Charles Bukowski nasceu em Andernach, na Alemanha, onde o seu pai foi colocado, como sargento, após a primeira guerra mundial. Henry Bukowski era já um americano de segunda geração, mas tinha origens polacas, e casou-se com uma alemã, Katharina Fett. Charles tinha três anos quando os pais se mudaram para os Estados Unidos.

O pai ficou desempregado após o crash bolsista de 1929, e, a acreditar no testemunho do escritor, era um homem violento, que espancava regularmente o filho por motivos irrisórios. Bukowski faz estudos primários e liceais, frequenta a biblioteca local a partir dos 15 anos, inicia estudos de jornalismo e literatura que nunca concluirá, e começa a escrever histórias. Tem 20 anos quando o pai, após ter lido alguns dos seus contos, atira os manuscritos e restantes pertences do filho para a rua, o que obriga Bukowski a alugar um quarto com a ajuda da mãe.

Em 1941 sai de Los Angeles e vive durante meia dúzia de anos em Nova Orleães e Filadélfia, embora mais tarde dê a entender que, nesse período, viajara e vivera por todo o país. Em 1944, é preso pelo FBI por ter recusado apresentar-se quando é chamado para cumprir o serviço militar, mas acaba por ser considerado inapto por uma junta médica, escapando à Segunda Guerra Mundial. Voltará a ser detido mais algumas vezes, mas por provocar distúrbios em estado de embriaguez e por outras acusações menores, como a de publicar textos osbcenos.

Regressa a Los Angeles em 1947 e, a partir daí, descontadas algumas viagens nos anos 70 – visita a Europa em 1978 e participa, em França, numa mítica edição do programa televisivo Apostrophes, de Bernard Pivot –, raramente deixa a cidade californiana.

A importância da sua obra só começa a ser reconhecida na segunda metade dos anos 70. Tem 59 anos quando consegue dinheiro para comprar o primeiro carro, em 1979. Em 1985, casa-se com a última das muitas mulheres da sua vida, Linda Lee. Os seus últimos anos de vida são um combate contra sucessivas doenças: cancro de pele, tuberculose e, finalmente, leucemia. Morre no dia 9 de Março de 1994.

[Hoje, no Público, Luís Miguel Queirós]

segunda-feira, agosto 26, 2013

domingo, agosto 25, 2013

António Borges 1949-2013


António Borges estreou, em 2008, uma série de entrevistas, cuja rubrica se chamava "Tropa de Elite". As entrevistas foram realizadas por Pedro Santos Guerreiro, José Maria Brandão de Brito e Jorge Marrão. O Negócios volta a publicar a entrevista ao economista este domingo, cerca de cinco anos depois. Na altura, José Sócrates era o primeiro-ministro, a crise financeira ainda não tinha estalado e a Europa dava instruções para se investir. A entrevista foi publicada a 4 de Abril.

Esta é a primeira entrevista desta iniciativa. Sabe por que razão o convidámos a si?
Não.

Porque pertence à elite. Aceita esta classificação?
Depende como define elite. Se elite é um conjunto de pessoas que tem de assumir uma responsabilidade pela condução da vida em comum, seja económica, política, cultural, então aceito.

É típico dizermos que faltam elites em Portugal. Mas também existe uma desconfiança do País face às elites que tem. Concorda?
Sim. Quando os resultados não são bons, alguém tem de assumir a responsabilidade. E a responsabilidade é justamente dessa elite, que, de facto, nos tem deixado insatisfeitos.

É a elite portuguesa que não tem qualidade ou quem tem qualidade não está disponível para o País?
Há muita gente de qualidade em Portugal, que encontramos em vários segmentos da sociedade e muitas vezes no estrangeiro. Não falta gente de qualidade.

Mas...
A razão pela qual essas pessoas ou se desinteressam ou não são eficazes é outra. No nosso País, estamos muitíssimo abaixo daquilo que é o nosso potencial. Há muita gente que acha que estamos condenados ao subdesenvolvimento e a uma inferioridade relativamente a outros povos. É falso e há inúmeras provas de que não tem de ser assim. Há em Portugal gente mais do que suficiente - a todos os níveis, não apenas nas elites - para termos outro desempenho.

E no entanto não o temos. Porquê?
O tema mais preocupante é termos um sistema extraordinariamente fechado, que vem do Dr. Salazar e que não se modificou suficientemente com a passagem para a democracia. Continua a ser um sistema muitíssimo controlado, orientado para a defesa dos interesses presentes e não dos futuros e que condiciona a actuação de muita gente, que ou participa nesse jogo e forma de funcionar ou desiste e muda de vida, o que significa um enormíssimo desperdício.

É uma "sub-elite" que se fecha para se perpetuar, é isso?
Sem dúvida. Isso é assim em todo o lado, mas quando o sistema é fechado, como o nosso, torna-se mais fácil a perpetuação na condução dos assuntos por uma elite relativamente limitada, que deixa de fora muita gente com enormíssimo potencial.

Repare: todos os períodos bons da vida portuguesa foram períodos em que a sociedade se abriu, em que apareceu gente nova, iniciativas revolucionárias e que rapidamente deram resultados extraordinários.

Por exemplo...?
Na década de 60, Portugal teve um crescimento económico fabuloso, o mais rápido do mundo logo a seguir a Taiwan. E isso teve que ver com a nossa entrada na EFTA, que fez surgir uma classe empresarial nova que revolucionou o País, criando depois tensões económicas que acabariam na Revolução.

Na década de 1985 a 1995, a seguir à entrada na União Europeia e numa altura em que estava consolidado o regime democrático, houve um novo dinamismo económico. Quase todos aqueles que são hoje os grandes empresários portugueses apareceram nessa altura com uma pujança extraordinária, com iniciativa, inovação. Ao fim desse período, o País parecia outro.

Nessa década até 1995 houve também privatizações. Os empresários tiveram oportunidades.
Sim, mas há um ponto muito importante: eram empresários novos. Ninguém conhecia o Eng.º Belmiro de Azevedo ou o Eng.º Jardim Gonçalves em 1985. O grande salto em frente dado com a União Europeia foi o aparecimento de um grande conjunto de novas iniciativas que resultaram da transformação de uma economia nacionalizada e que estava em crise, o que criou as condições... Por mais mérito que tenha o Eng.º Jardim Gonçalves ou o Dr. Artur Santos Silva, o sucesso dos bancos que criaram resulta do colapso da banca nacionalizada, que abriu espaço para novos projectos.

Sempre que há aberturas, aparecem pessoas novas e projectos extraordinários. Mas depois o País volta a fechar-se num regime contido, controlado e dominado e a maior parte das pessoas boas abandona o País.

Outras vezes, quando as empresas começam a correr bem, vende-se a estrangeiros, é mais fácil do que insistir. É outra forma de desistir.
Quando não há condições porque está tudo fechado, as pessoas desistem, fecham, vão para outro país, têm um sucesso imediato e vendem, desistem. Isto não é por acaso. As pessoas são racionais e não vão continuar a insistir quando as condições não existem.

Não é uma questão cultural? 
Não, porque não é permanente.

Mas historicamente diz-se que "os portugueses são de corridas curtas", o nosso empresariado detesta percursos longos. Vem do século XIX... 
Não concordo. O nosso atraso económico começou no fim do século XVIII. Até essa altura, Portugal estava no mesmo nível dos outros países. Agora, não é verdade que os nossos empresários tenham um "handicap" em relação a outros. Há muitos casos, antigos e recentes, de criação de valor sustentada e inovadora, mesmo revolucionária, de empresários que começaram quase do nada. Agora, é natural que à medida que um empresário adquire dimensão, ele próprio começa a estar mais preocupado com manter o que tem. É preciso que nessa altura apareçam outros empresários. Na nossa história recente, há períodos de explosão económica em que depois do sucesso as próprias empresas passam a condicionar a economia e a política económica. Foi isso que se passou no tempo do regime do Dr. Salazar e é isso que se passa no regime actual.

O que é "estar fechado"? 
Temos uma política económica e um enquadramento da actividade económica extraordinariamente conservador, no sentido de manter tudo como está. A burocracia, a regulação, a Administração Pública, a política económica no seu conjunto, a forma como o Governo intervém caso a caso...

Como é que se desmonta isso? Os exemplos de abertura que deu foram ambos externos são irrepetíveis: a abertura à EFTA e à CEE.
Não, a mudança de fora cria a oportunidade. E depois a política económica ajuda. Entrámos na comunidade europeia depois de um programa muito rigoroso para reequilibrar a economia, estávamos em ponto de rebuçado para um fase de expansão. Agora, se estamos numa situação em que as grandes empresas estão instaladas e a controlar, em que a situação macroeconómica não é favorável e em que não há espaço para criar inovação, então ninguém se pode admirar que o País só cresça 1 ou 2% ao ano.

Quem tem de criar esse espaço?
Precisávamos de ter uma política económica radicalmente diferente. Há um desempenho radicalmente diferente entre as economias abertas à inovação e as mais conservadoras e orientadas para a manutenção dos interesses actuais. Se compararmos uma Itália com uma Suécia, França com Irlanda ou Japão com os Estados Unidos, a diferença principal é essa. Nas economias com grandes desempenhos, como a Suécia, a Irlanda, os Estados Unidos, há uma abertura total ao aparecimento de novos "players", em prejuízo, às vezes deliberado, das empresas existentes. Já no Japão, Itália, França encontramos uma política orientada para as empresas que existem. Isso trava o crescimento e impede a inovação. Infelizmente, Portugal está desde há muitos anos muito mais do lado da Itália ou da França do que do da Irlanda.

A inovação é uma das questões centrais, mas…
É a questão central. O primeiro-ministro que temos hoje também percebe isso e criou o Choque Tecnológico propondo-o como o grande salto inovador. Mas depois criou um regime que é completamente avesso a essa inovação. É uma contradição total.

A inovação traz o chamado dilema da Justiça e da liberdade: ela destrói emprego…
Estou em desacordo. Os projectos mais inovadores são os que criam mais empregos. Que digam que isso implica mobilidade, que as pessoas passem de uns empregos para outros, que há empresas que vão desaparecer para outras aparecerem, isso aceito. Mas essa até é uma das grandes forças do nosso País: a mobilidade do mercado de trabalho. Ao contrário do que se pensa, nós temos mobilidade do mercado de trabalho. Nos períodos em que a economia crescia, as pessoas mudavam de emprego com uma rapidez alucinante e com uma adaptação notável. Quanto mais protegermos as empresas para supostamente protegermos o emprego, mais impedimos a inovação e, portanto, mais impedimos o emprego e a possibilidade de as pessoas realizarem o seu potencial.

Não concorda que há esse dilema da Justiça? 
Há, mas ao contrário: quanto mais se protege os interesses existentes, mais se desequilibra o poder e a distribuição de rendimentos. Como aliás se tornou evidente: a distribuição de rendimentos no nosso país tem-se deteriorado de uma forma gravíssima.

A passagem de um modelo para outro geraria uma tensão fortíssima.
Vai gerar tensão política. É aqui que eu faço o paralelo com o tempo do Dr. Salazar: nós vivemos num regime político e económico em que os interesses económicos estão habituados a ter um grande peso na tomada de decisão política. E vão sempre reagir contra uma política que não os vá proteger.

Exacto: o que os obrigará então a mudar?
O que os devia obrigar a mudar é o aparecimento de novas actividades, indústrias, empresas que lhes façam concorrência naquilo que conta, que é o acesso aos recursos humanos, de capital, etc. As grandes empresas portuguesas estão habituadas a uma situação de monopólio. Hoje, um jovem licenciado vai trabalhar onde, senão nestas grandes empresas? Elas estão bem, nunca estiveram tão bem, nem parece que vivem em Portugal, porque têm um nível de rentabilidade extraordinária enquanto o País vai definhando.

Como é que isso se explica?
Facilmente: temos uma política económica orientada nesse sentido. Consciente ou inconscientemente? Dou o benefício da dúvida. O grande problema económico português hoje é o dualismo; é haver dois países: um que são as grandes empresas cotadas em Bolsa, extraordinariamente rentáveis, que medem forças até em competência e capacidade de gestão com empresas estrangeiras, que estão muito bem e cujo grande problema é não saberem o que fazer ao dinheiro, onde hão-de investir os lucros que vão gerando; e depois a outra metade do País, que luta pela sobrevivência, que não consegue olhar mais do que quinze dias à frente porque não sabe se há dinheiro. Este dualismo tem uma dimensão regional brutal, há Lisboa e há o resto do País. Até o Porto e a região Norte estão num declínio gravíssimo. A distribuição de rendimentos tem-se deteriorado gravemente por força deste dualismo económico.

Essas grandes empresas que nem sabem o que fazer aos lucros são as mesmas que sempre que são ameaçadas invocam o instinto de protecção e sempre com o mesmo argumento, que aliás colhe popularidade: estão num mercado global, precisam de se agigantar no seu País para não serem engolidas por um estrangeiro.
Esse argumento é exactamente o mesmo que se ouve em Itália, em França e nos países em que a política económica é proteccionista e defensiva. Os resultados estão à vista…

A Europa está a enfileirar nesse discurso proteccionista e não apenas em Itália e em França…
Uma parte da Europa está. Mas é uma parte felizmente minoritária, há países com posição oposta. O grande fiel na balança vai ser a Alemanha, que vive nesse dilema.

Somos obcecados com Espanha. Mas a verdade é que Espanha também é proteccionista das suas empresas, também é fechada. Estamos a comparar-nos com o país errado?
Espanha não é uma economia fechada e tem uma grande vantagem em relação a nós: há um conjunto de empresas espanholas que se habituou a concorrer fora de Espanha e a aceitar as regras de uma concorrência sem quartel, o que introduz uma disciplina e uma exigência de desempenho que não depende da protecção do Estado. Embora a protecção do Estado exista em Espanha e seja relativamente forte, não tem sido suficiente para imunizar a Espanha dos ventos de concorrência que existem à escala europeia.

Portugal precisa de uma economia de mercado mais transparente, é isso?
Nós não temos mercado. O mercado não existe em Portugal. As empresas prósperas e que remuneram bem os seus accionistas não trabalham no mercado. Têm situações instaladas, ou por força da regulação, ou porque estão em sectores naturalmente protegidos da concorrência estrangeira. Há uma grande cumplicidade entre os governos e essas empresas para manterem uma situação confortável e uma regulação favorável. As outras empresas, do sector transaccionável que, essas sim, estão no mercado, coitadas, sofrem as consequências e vão desaparecendo. 

Veja-se o caso das farmácias: é um sector muito protegido. Elas souberam muito inteligentemente utilizar essa protecção para serem um sector bem gerido, eficiente, muito melhor do que o é, por exemplo, em Inglaterra. Entra--se numa farmácia portuguesa e fica-se surpreendido com a informática, com a gestão de "stocks"… Na base disso está uma regulamentação favorável que cria prosperidade. Mas se formos falar na indústria exportadora, não é nada disto. É gente que luta pela sobrevivência, com uma dificuldade permanente para saber se no dia seguinte ainda está viva, não tem nenhuma protecção. Esse é outro ponto que ninguém percebe: quando protegemos metade da economia, estamos a discriminar a outra metade. Quando damos à EDP condições de rentabilidade extremamente favoráveis, estamos a obrigar toda a gente a pagar energia mais cara.

Os Governos receiam que o mercado funcione?
Pois claro, porque quanto mais força tem o mercado, menos poder tem o Governo. O Estado está muito presente na economia e está-o cada vez mais também porque os nossos governantes são habilidosos em reforçar esse peso do Estado.

O Estado tem de ter menos força?
Eu gostava que o Estado tivesse muita força naquilo em que é indispensável: na Justiça, na diplomacia, na defesa, nos sectores sociais, na Segurança Social, Saúde, Educação. Aí é que eu gostava que o Estado fosse poderoso, eficaz, moderno, inovador. Mas não: o Estado está mais preocupado em manter este sistema de controlo e que é opressivo do que executar bem as suas funções.

Nos países como a Irlanda ou a Finlândia, que cita, o Estado também está muito presente.
Eu defendo o papel do Estado como ele existe na Finlândia, na Suécia ou na Noruega. Um Estado com um respeito extremo pelo mercado e com uma reacção visceral contra os interesses instituídos e uma abertura à inovação; um Estado que faz aquilo que só o Estado pode fazer, bem feito. Se é mais Estado social ou menos Estado social, isso é uma questão de preferência do eleitorado, se quer pagar mais impostos ou menos impostos. Mas a questão essencial é saber se queremos um Estado condicionador e limitador como é em Portugal ou aberto e a favorecer a inovação.

O que é um Estado que desenvolva o país? 
Uma política diferente devia reconhecer duas coisas: primeiro, que Portugal é um pequeno país e para ter sucesso tem de utilizar o resto do Mundo como quadro de referência e não estar a pensar apenas na realidade concreta portuguesa; segundo, que há um grande potencial de realização e que esse é que pode ser o grande factor de mudança e portanto orientar a actuação política nesse sentido. O que fazemos é o exacto oposto.

O conceito dos PIN é o melhor exemplo do que estou a dizer: o Estado cria um sistema de controlo opressivo e asfixiante, com um peso brutal da burocracia, que impede os empresários de fazer seja o que for. Depois, aqueles que o Estado escolhe e selecciona, designa como sendo de interesse nacional e cria um regime especial. É uma receita fantástica para dizer: "queremos projectos novos mas controlados por nós, decididos por nós e nós é que dizemos quem é e quem não é". É o regime soviético modernizado.

Apesar dos Simplex.
Isso é tudo fachada. Fale com qualquer pequeno empresário que tenha 50 ou 100 empregados e fale-lhe do Simplex, ele atira--se pela janela. O Simplex não é para eles. Na Administração Pública, o ponto não é o Simplex ou os supranumerários, é entrar-se num serviço qualquer ou numa repartição e perceber que o modelo de gestão e de funcionamento é o mesmo do tempo do Dr. Salazar.

Outro dualismo que está a ser criado pela globalização é entre o capital e trabalho, em benefício do capital.
Mas é também uma questão do País. Temos tido uma política macroeconómica favorável ao capital e prejudicial ao trabalho.

Estamos a falar de quê? Do choque ao ver uma empresa anunciar congelamento salarial porque só vai lucrar 800 milhões de euros este ano?
A questão não é essa. A questão é: porque é que a empresa diz que vai congelar os ordenados e os seus empregados não se vão embora? Porque não há outras oportunidades, porque o emprego não cresce, porque não há procura de gente qualificada. Esse é que é o drama. Se não há projectos novos, não há procura de trabalho, os salários baixam. O facto de os salários estarem a perder poder de compra e da má repartição de rendimentos é consequência do funcionamento do mercado, adverso a quem trabalha.

Uma das coisas mais interessantes do nosso País é termos uma taxa de investimento muito alta. Mas para onde vai esse investimento? Vai quase todo para o sector não transaccionável, o sector próspero, que está protegido. O sector transaccionável, aquele onde está a grande maioria do potencial de crescimento de emprego, não vê um tostão.

O capitalismo triunfou, não houve outro sistema que o vencesse. Mas o capitalismo é amoral, traz desigualdade. É isso?
Discordo. Não há um capitalismo, há vários capitalismos. A ideia central do capitalismo é a ideia do mérito, quem tem mais qualidade é quem deve singrar. Mas no mundo inteiro, e em Portugal, isso é muito evidente, não são sempre os melhores que singram; é quem tem mais poder, é quem tem mais força para controlar a política económica e a organização política.

Lá está: o capitalismo está a trazer desigualdade. 
O bom capitalismo não aparece espontaneamente. É preciso que haja quem regule a concorrência, quem imponha boas regras de "governance" nas empresas, se não o capitalismo descamba.

Diz que a política económica deve assumir que Portugal precisa de olhar à escala global. Mas que recursos temos que nos diferenciem?
Nesta perspectiva, o facto de sermos um país pequeno é uma vantagem. Nós temos facilidade em acompanhar a inovação de base tecnológica e científica. Temos uma qualidade que pouca gente tem: a qualidade de vida. Se quisermos perceber porque é que a Califórnia tem a riqueza que tem é por uma razão simples: qualidade de vida. Todas as empresas que precisam de gente altamente qualificada têm vantagem em colocar-se na Califórnia, para onde toda a gente quer ir. Nós só estamos a tirar proveito disso no sector do turismo, o que é insuficiente.

Veja-se o caso da Siemens: instala em Portugal um centro de investigação e tecnologia com 1.500 engenheiros. Porquê? Primeiro, porque há bons engenheiros em Portugal; segundo, porque é muito fácil trazer engenheiros estrangeiros, eles gostam de viver cá; terceiro, porque a partir daqui se pode facilmente montar uma unidade de negócios para o Mundo inteiro, pois gostamos da interacção com o estrangeiro. Este é um exemplo evidente do que é uma estratégia que tira proveito dos nossos trunfos e da realidade de que somos um país pequeno.

Silva Lopes dizia há algumas semanas que Portugal é uma sociedade de direitos adquiridos e que foi por isso que se fez a Revolução Francesa. Mas a questão dos direitos adquiridos é também corporativa e, nesse sentido, não parte do Governo.
Não acho. Os nossos políticos têm apresentado muito habilmente este problema dos direitos adquiridos como sendo um problema dos sindicatos, dos trabalhadores, dos professores. Mas o problema principal dos direitos adquiridos é dos patrões. Aí é que estão os direitos adquiridos.

No final desta conversa, apetece concluir que recomenda que seja criado uma entidade reguladora para o Governo...
A entidade existe, é o povo. É isso que é suposto a democracia fazer.

sábado, agosto 24, 2013

Only god forgives by Nicolas Winding Refn *



Com a quantidade de filmes execráveis que este rapaz tem feito, compreende-se perfeitamente por que razão diz que se fartou dele próprio e decidiu afastar-se...

sexta-feira, agosto 23, 2013

The bling ring by Sofia Coppola *



Há-de ser problema meu, que tenho tolerância zero para os americanos e total aversão a miúdos que acham normal contornar o tédio a roubar e a matar, mas este é dos piores filmes que já vi e seguramente o pior filme de Sofia Coppola. A história sobre a amoralidade vigente até era boa [Ver reportagem da Vanity Fair que a inspirou: http://www.vanityfair.com/culture/features/2010/03/billionaire-girls-201003], mas o resultado do guião dificilmente conseguiria ser pior. Nem provocador, nem crítico, nem satírico, nada. 

quinta-feira, agosto 22, 2013

Álvaro Cunhal por José Saramago


Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas.

As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar.

E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las.

Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido, por muitos anos, contínua e quase única referência. Quer no plano nacional quer no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal viveu ainda. Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. 

Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado tarde. O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso. E compreendo, garanto que compreendo, o que um dia Graham Green disse a Eduardo Lourenço:  : "O meu sonho, no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal." O grande escritor britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta. 

[Diário de Notícias, 31 julho 2009]

quarta-feira, agosto 21, 2013

Lovelace by Rob Epstein **

We bumped and crashed in dirty snow




You’re not there for the stay
When I will wish you could
Wish that you were there

You could
You’re dying in here
You could be here soon
You stumble on a river

terça-feira, agosto 20, 2013

Urbano Tavares Rodrigues: A estação dourada


"Hei-de dizer-te, agora sem o pudor das palavras que tanta vez me reteve, como me comovia o som da tua voz, quando me lias alto, na cama, os artigos dos jornais estrangeiros que de antemão sabias poderem interessar-me. Quantas vezes me apeteceu interromper uma conversa séria ou um almoço rápido e quase silencioso para ir beijar um reflexo de luz nesse teu nariz muito levemente aquilino, de que tu não gostas, ou as tuas mãos finíssimas e hábeis em todos os momentos, a compor uma mesa, a desenhar com humor ou a consertar utensílios escangalhados. Porque tu és uma fada morena e discreta que não sabe que o é. 

Quando, o que é raro, te tornas exuberante, fico sempre muito feliz, até porque o teu riso canta e a tua boca se entreabre como uma flor húmida, vermelha de alegria. Já te amava, Matilde, antes de te conhecer.

(...) A redução do meu horizonte de vida, a própria degradação do meu corpo fragilizado (ando cheio de manchas na pele, devido aos derrames) tornam-me mais egoísta (...) Todos os dias enceno a nossa festa a três. (...) Mas há intervalos, há a inevitável solidão de todo o ser humano, por muito que me esforce para lhe fugir. Vou morrer ciente de que morro, dialogando também dia a dia com a minha morte, medindo-a, antecipando-a, imaginando no antes e no depois, isto é, na remota hipótese de eu ser mais alguma coisa do que um fio transmissor, uma irrisória partícula deste grande ser colectivo, contínuo e incessantemente renovado que é a Humanidade."

domingo, agosto 18, 2013

José Miguel Gaspar: Coura, ilusões e despenhamentos

Phosphorescent

"Para mim o festival não precisava de ser salvo. Já levo os Iceage no coração, vão lá ficar, empedernidos, levo a ruidosa aurora de novo shoegaze dos Toy e das suas malhas secretas de azul MBV (e como dançavam a tocar, obscuros), levo a Brittany dos Alabama e a desproporção da sua grandeza soul e o momento em que ela voltou a ver o 'Heartbreaker' e nos disse antes de cantar com blues da língua que ele era uma lição, que aquilo não era uma canção triste, levo até debaixo do braço ou entre dentes Jagwar Ma (eles asfixiam e depois pulverizam Madchester, pareceram-me quase tão bons como os Doldrums) e levo ainda (vou, irei sempre com ele, fiquei até ao fim da cavalgada e do encore) Bombino, não é possível esquecer Omara Bombino e o seu enxame de psicoblues. Para mim o festival não precisava de ser salvo. Mas para quantos, a maioria de quantos dos 5 dias da encosta de Coura, 2013, a quantos ainda lhes faltava um big moment, nem que fosse breve mas que tivesse estrondo, que fosse aquele instante que fosforesce e que queima tudo à volta, aquele instante decisivo que vamos partilhar, que nos faz sempre suster e respirar para dentro. Acho que os Palma Violets, ainda que brevemente, criaram e tiveram hoje na mão esse magnífico instante."

José Miguel Gaspar: Coura, dia 5

Palma Violets

"Só vi metade dos Palma Violets porque fiquei para trás como quem fica até tarde na praia, na tenda dos Ducktails, havia sol e surf e electricidade e uma brisa com vista para pop psicadélico e por isso fiquei até ao fim. Quando saí, ainda ensolarado por aquele som pop horizontal que jorrava da guitarra de Matt Mondanile, assim que comecei a andar e deixei para trás o piso pedrado da tenda Vodafone FM, deu-me imediatamente vontade de correr e ver o que era aquilo, Palma Violets, era muito ALTO. 

Assim que assomei a meio da encosta e do chão fofo estaquei. E foi como se visse um só clarão. Mas um clarão com todas as cores. Quando dei por mim tinha furado até à boca daquilo, no fundo da encosta, 
e estava no ringue onde se agitam e se alteram os espectadores de ferro, onde dançam os índios, convulsos, onde se estremece, onde o pânico se confunde com a alegria e as roupas parecem dançar sozinhas no ar em cores esticadas debaixo da poeira.



Foi nesse pó, dourado, que vi nadar Chilli Jesson, nadou de costas nas palmas das nossas mãos e prolongou indefinidamente o sol da goldenhour, que se punha nas cabeças da encosta de capim. Foi lá no fundo que tremi ri empurrado empurrei com ímpeto as roupas das caras que voavam, estonteado filmei Chilli a flutuar, flashado pelas mãos que o elevavam, ele a passar como se fosse deitado numa cruz. No fim ninguém me perguntou se tinha 16 anos, se lhe tinha conseguido tocar ou quando é que ia tirar a pulseira. 


Chilli, que anda na roda dos 20 anos, como os outros do quarteto Palma Violets, veio do bairro de Lambeth, fervedouro da Great London, e trouxe algo novo para mim: flowerpunk, música que tem aquela imparável negrura do feedback discordante de todas as cores, festa Clash, patina psicadélica, riffs empolgantes de hardcore hipster, a música é ALTA, Chilli rosna como os cães às cobras e às mãos, toca o baixo comprido, bramido como se fosse uma lança, e os outros três, Samuel, Peter, William, guitarra, teclas, bateria, parece que estão numa pega ente os Bad Seeds e os Doors dentro do Gun Club (não estão todos: o teclista Peter não perde a pose, fleumaticamente posto no seu sítio, paciente, como se visse aquele motim todos os dias). O seu rock de '180' (‘Johnny Bagga Donuts’, ‘Rattlesnake Highway’, ‘All the Garden Birds’ ou 'Best of friends', um single infeccioso e felino, é a única canção que me parece feminina), é música tesa, é atirada à nossa cara, Chilli cospe no chão, e no entanto é romântica, como se para eles também fosse a primeira vez. A mim, todo aquele lume de suspensão e enlevo foi-me directo ao coração. Foi o meu concerto de Coura 2013."

sábado, agosto 17, 2013

José Miguel Gaspar: Coura, dia 4

Cold Cave

"Quando acabei de ver Iceage tinha o coração aos saltos. Não saberei dizer porquê. Se isto é o festival do amor, então Elias Bender Rønnenfelt, e Elias Bender Rønnenfelt tem 23 anos, chegou e cravou uma picareta no coração do festival. E depois rugiu. Foi o número mais poderoso do dia de Horrors e de errors: Simian Mobile é um erro low cost e de casting, paralítico e monolítico; Echo foi desoladamente fraco, como se Ian McCulloch fosse uma cover de si mesmo, entorpecido e fotocopiado, a assassinar ao vivo a 'Killing moon' , que só me pareceu uma versão piano-bar na bruma. É post-punk em rigor mortis, já não traz estrago ou urgência e saí sem querer pensar na desilusão. 

Fiquei o resto da noite com Elias Bender Rønnenfelt na cabeça e com o coração de pedra Iceage (mesmo quando já estava nos Delorean, subitamente a saltar por haver ali instrumentos e músicos vivos no fim da noite). Iceage cerca como uma parede de som de filigrana e de cascalho, é simultaneamente rude e requintado. Punk, muito punk, noise e hardcore, canções curtas que soam como um vespeiro e um voo de pedras em fricção. Elias é o centro daquilo e caminha como se o chão desmoronasse ou como se tivesse membros de pesos diferentes, debaixo da chuva metálica do baixo, guitarra e bateria, o fio do microfone a subir-lhe pelas costas da camisa negra como uma corda e ele pendura-a à volta do pescoço quando canta e quando nos fita e vocifera. Transido, Elias, é mudo entre as canções e sai sem falar, mas olha-nos. Ruge e depois fica a olhar para nós, lívido e dinamarquês, com supremo desinteresse ou a fingir supremo ar de desinteresse por nós, a olhar-nos como se fosse uma cobra que cambaleia, a caminhar entre as colunas negras e para ele lunares, e ruge novamente durante 2, 3 minutos, o tempo das canções. Houve mosh, fez-se o anel da luta nos da frente e muitos surfaram debaixo da luz amarela negra (e mais do que os de Omaro), a voar nas mãos, as pernas despenhadas entre os braços, a nuvem de luz e o pó. Aquilo é abrasivo, parece perigoso, é perigoso. Saí de coração aos saltos."

sexta-feira, agosto 16, 2013

José Miguel Gaspar: Coura, dia 3

The Vaccines


Everything Everything.
Pop polifónico de fim de tarde, agudo, cheio de claridade e falsetto, demasiado inofensivo ou demasiado vegetariano. Quando o vocalista dizia thank you parecia estar a dizer fuck you - não era ironia, era só sotaque brit, e era sensaborão. 

Veronica Falls.

Fiquei sempre à espera que acontecesse alguma coisa que não chegou. Às vezes parecia que aí vinha um pequeno apocalipse noise, um abismo gótico ou um impulso desenfreado para enfrentar de guitarra o horror, mas não, não houve oásis, só um vago aborrecimento de indie brit pop. Deu-me saudade de ver dois fantasmas vivos e de uma coisa que nunca aconteceu: Morrissey amarrado, esticado a cantar numa corda puxada pelos Jesus and Mary Chain. 

Hot Chip.

Há quem seja adepto do cientismo de Alexis Taylor e da sua cientologia pop, mas a mim parece-me como Dan Brown ou a literatura plana e de demasiada claridade, literatura calculada escrita com embalos de sossego, sem armadilhas ou reais ciladas ou ardor. Às vezes aquilo é galvanizante e a encosta desata de braços no ar (não toda, a metade maior, da mesa de som até ao cimo, está sentada), quando se lança nas pequenas épicas de crescendum da indietrónica . Mas no fim aquilo parece-me música que não está a evoluir, música para ouvir em salões de casacos demasiado brancos ou demasiado grandes e grandes barcos de água estacada, música para desaguar em casinos cansados. 

The Knife
Aos géneros synthpop, dark disco, ambiental, minimal, e techno teatral experimental, os The Knife têm que acrescentar outro agora: exclusivamente-coreográfico-se-tocado-ao-vivo. Com formação em octeto, a banda sueca fez uma coisa inédita e extraordinária ao vivo: chegou a ter os oito elementos em palco e estar longamente em playback total, vocal e instrumental. Perante isto, só sobrava vermos a única coisa que havia ao vivo: a voz de Karin Dreijer Andersson, voz aguda, angulosa e de cristal, mas que ali esteve sempre encapuzada numa ausência espectral. Projectados para enfeitiçar ou enfurecer o público, provocaram coisa infinitamente pior: deixaram tudo na bruma da indiferença, sem paciência para a ironia de collants, a coreografia e o coordenado liceal, sequer da sua aeróbica Trekkie espacial. As réplicas deste pequenino trémolo equivocado para prato principal hão-de prejudicar o futuro do festival. 

Little Boots
Discoteque eurotrash com a vontade de um arrastão a andar para trás em direcção ao strob de 1980. É música óptima para a pequena alienação, enquanto se está ali, debaixo daquela batida protectora de cores e do caleidoscópio discopop, nada de mal pode acontecer, parece que estamos protegidos do mundo. Mas insistido e visto ao perto, vemos que Victoria Christina, a Little Boots de Blackpool, loira com uma capa que quer esvoaçar, está ali como podia estar no quarto dela, a cantar para o espelho, a acreditar no seu secador e no vento da fama e da eterna juventude. 

Echo and the Bunnymen.
O post-punk chegou aqui como um cadáver hirto e exumado. 'Lips like sugar' já não é uma mulher fogosa que foge, já não é um cisne, já não flutua, é só uma boneca balofa insuflada, com menos vida que a Gina, a boneca escachada que se passeia nua e labial nas encostas e no rio e num grupo folgazão do festival. 

quinta-feira, agosto 15, 2013

José Miguel Gaspar: Coura, Dia 2

Alabama Shakes
Alabama Shakes

"- Se fechares os olhos quando ela canta o que é que ela te parece?

- A mim parece-me um homem. Mas um homem mais baixo. 

Não sabíamos que Brittany Howard era tão gorda e tão grande como uma cama (eu pelo menos não sabia, sou dos antigos, continuo a consumir só os áudios, não vejo os vídeos), nem que o baixista Zac é um sósia de Zack Galifianakis, mas um Zack imenso e sério e petrificado que só mexe dois dedos debaixo da túnica e da barba inamovível. À quinta canção, já eles tinham tocado 'Hang loose' e 'Hold on', lenta e linda que nos pôs a dançar e a dizer que sim com o torso, como se fossemos salomónicos que dançam sem cabeça e sem membros, e ela já estava a dizer que gostava muito de nós (mas disse-o enrolado, na sua língua americana cheia de sul). Ao sexto tema, com a tenda Vodafone FM atulhada e cinco vezes mais gente que transbordava até às escotilhas, ela parou e disse isto: 'Esta canção não é uma canção triste. Esta canção é sobre aprender a lição'. E atacou, com lentidão encorpada e dulcíssimos golpes (atacou: a canção faz estremecer e ter frio), e entrou-nos com aquela voz grave e de agudos estrídulos, como uma catana pelo coração adentro com 'Heartbreaker', a canção fulminante dos amores prostrados: 'Why, why did you have to slice so wide baby/How was I supposed to know you was a heartbreaker'. Aquilo, e aquilo foi o concerto da noite, é Alabama Shakes, é soul do sul: três acordes, blues e raízes gospel, doe quando é lento, arde e rosna quando é rápido. Os mais exagerados, os do meio e da frente, os que saíram a ressumbrar, falavam na qualidade confluente de vários espíritos, três mortos e um vivo, que ela, Brittany Howard, incorpora, como se ela fosse duas mulheres e dois homens: Winehouse e Simone, Ottis e Prince, nem menos. No fim ela parecia uma cama suada, feliz e desgrenhada.


U.M.O.


Ao vivo, a pop psicadélica da Unknown Mortal Orchestra (trio, EUA) é uma coisa fuzzy emaranhada cheia de wah wahs. Em disco não, mas ao vivo sim, parece-me música para ancas tortas ou para lagartos que levam choques eléctricos e ouvem excessivamente Tame Impala. Ali, na tenda preta que é sempre pequena para tanta gente (e que tem um chão demasiado duro), a voz do vocalista Ruban Nielson parece batida pelo vento, sai fatiada como as vozes de certos desenhos animados agudos, e ele toca a guitarra como se fosse um cossaco ou como se estivesse sempre prestes a perder o chão. Os da frente, os surrealistas e os desesperados, os que estão no vórtice do som, gostaram muito e guincharam, mas não foi grande pistola. 

Bombino

Omara Bombino não é nenhum Omar Souleyman (Souleyman é só uma cassete e uns Ray Ban de kaffyeh com pernas curtas) e já tem pelo menos três recordes de Coura 2013: é campeão do salto em comprimento lento (tem mantras de 21 minutos que são faraónicas cavalgadas eléctricas); foi o único a fazer encore (nos festivais de agora o poder legislativo do improviso foi absorvido pelo poder executivo do patrocinador e da sua ditadura da pontualidade); e foi o que teve mais e melhor crowdsurfing (o único concerto onde se nadou licenciosamente e sem peias, com pernas pelo ar e mergulhos de bruços no mar de braços do povo). Bombino, um tuareg do Niger que se dedicava à desértica contemplação e à pastorícia, salta agora com o robe dourado de Cassius Clay, como se fosse um boxer invicto que luta de guitarra. Parece aprendeu a tocá-la a decalcar riffs de vídeos de Jimi Hendrix e de Mark Knopfler (mas também podia ter aprendido no Air Guitar, o jogo dos guitarristas imaginários). Graças a Deus e a Alá, aprendeu mais com os 15 minutos psicoeléctricos do 'Voodoo child' do que com toda a discografia do sultão serôdio do swing.

O seu jogo é hábil: 

canções construídas em torno de riffs resistentes (são enganosamente simples mas estão em movimento perpétuo de justaposição e overdub), polinização cruzada de rock, blues e deserto, e aquele transe inacabável do trance que garante as alienações e os arroubos de espírito. O seu baixista, o único inteiramente enrolado no tagelmust branco , é o meu cromo favorito, um baixista de ferro que bamboleia sem nunca despegar os pés, como se tocasse atado a camelo que vai num trote interminável."