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quarta-feira, agosto 27, 2014

João Pereira Coutinho: Intervalo de gelo*


No fim, João Pereira Coutinho pede para que esqueçamos este texto. Não é possível, e ele sabe. Eu peço só para que o leiam.

Meu pai morreu com esclerose lateral amiotrófica. Corrijo. Foi morrendo. Tinha 50 anos quando a doença lhe bateu à porta.

"Aos 50 anos a minha vida vai mudar", dizia ele, cansado da advocacia, vezes sem conta. Queria mais tempo para ler, escrever. Viajar. Alguém lá em cima tem um sentido de humor celestial. Mudou mesmo.

Mas o que é a esclerose lateral amiotrófica (ELA)? Deixo explicações científicas para médicos e pesquisadores. Digamos apenas isso: se eu tivesse que escolher uma doença terrível para acabar com a minha carcaça, a ELA estaria no final da lista.

Paradoxal. A ELA não dói. Nem necessita de tratamentos invasivos. Porque só ela é invasiva, imparável, silenciosa, apagando o que somos - a marcha, os gestos, as expressões, a fala - até só restar uma estátua com consciência plena. Quando a respiração se apaga (o fim clássico), a estátua apaga-se também. Finalmente.

Meu pai enfrentou o inferno com um estoicismo obsceno. Sim, ainda hoje me parece obsceno que ele nunca tenha chorado a sua sorte. Como me parece obsceno o tempo que ele viveu como se o tivessem enterrado vivo. Três anos. Uma eternidade.

E, nesses três anos, perguntava muitas vezes que pensamentos lhe habitavam a memória - porque a memória é tudo que resta a um corpo rigorosamente pétreo. Que mundo seria o dele, à noite, no escuro, quando as únicas palavras que poderiam ser proferidas eram mentais?

Pensaria na infância? Nos pais dele? Na vida que teve e, mais importante ainda, na vida que poderia ter tido?

Que orgulhos, que arrependimentos, que segredos o assombravam durante a insónia? Mesmo os condenados têm direito às últimas palavras. Que palavras seriam essas?
Silêncio. Ainda hoje formulo as mesmas perguntas contra a mesma parede de silêncio. Sei que existe um livro, "O Chalé da Memória", que o historiador Tony Judt escreveu sobre o assunto. Com conhecimento de causa: também ele morreu nesse abismo lento e conseguiu comunicar para o papel a solidão medonha que a doença traz.

É um livro que continua sobre a minha mesa de trabalho. Nunca tive a coragem suficiente para o ler. Definitivamente, em matéria de coragem, há uma diferença genética considerável. Espero que não seja a única.

E se relembro a doença é porque ela tem andado nas bocas do mundo. Ou, melhor dizendo, nas cabeças do mundo. Baldes de gelo despejados sobre celebridades, que depois desafiam outras celebridades a fazer o mesmo.

O vírus começou com um desafio de um doente com ELA, o americano Pete Frates: ou as pessoas experimentavam a experiência gélida do balde ou então doavam 100 dólares para ajudar a combater esse demónio ignoto.

Sem surpresas, o balde fez mais sucesso entre as celebridades do que a doação anónima. E talvez esse fosse o momento para que o cronista, brandindo o seu chicote e molhando a pena em ácido sulfúrico, escrevesse um longo texto sobre a vaidade das celebridades e a estupidez que fatalmente as define.

Embalado pelo cinismo e pela indignação, seria igualmente possível defender que o balde de gelo não faz justiça à doença. Emparedar as celebridades em cimento seria uma experiência mais próxima da realidade.

O texto, para além de previsível, seria inútil. E, com honestidade, seria também injusto. A brincadeira narcísica do balde foi enchendo os cofres de todas as associações que ajudam milhares de estátuas vivas.

E, com sorte, talvez a medicina consiga fundos para lidar com a mais desconhecida e brutal das doenças mundanas.

Por outras palavras, esqueça o balde e contribua. E esqueça também este texto, este intervalo, este momento de fraqueza. Gelada.
* Folha de S. Paulo

segunda-feira, junho 23, 2014

CR7


Aprendi a gostar do Cristiano Ronaldo quando ele aprendeu a falar português. Pode ser ridículo, mas é verdade. Incomoda-me que uma pessoa que ganha milhões não gaste uns tostões a aprender a falar correctamente. Ele ganhou-me aí, quando além de dominar a bola passou a dominar a língua. Às tantas, um dia destes ainda começo a achá-lo bonito. Com excepção dos abdominais, não cheguei ainda aí - haja Deus! Mas há coisas que sempre achei, mesmo quando não ia à bola com ele.

Sempre achei que a vaidade de Ronaldo, mesmo se desmedida, não é exagerada. O rapaz tinha tudo para ser um desgraçado e tornou-se num dos melhores jogadores do mundo. Não é coisa que se consiga com cunhas, com fretes, com agremiações políticas ou maçónicas, com mãos escondidas, com percursos mal amanhados (e há tanta nata neste país que não pode dizer o mesmo...). Só se consegue fazer o que ele faz com disciplina e trabalho, que nenhum dom sozinho alimenta uma carreira inteira. 

Sempre achei que a arrogância de Ronaldo é mais saudável que a esquizofrenia dos que sempre têm alguma coisa a perorar sobre ele, não raras vezes uma coisa e o seu contrário, dependendo do vento. Se o rapaz pára para dar autógrafos é egocêntrico, se não pára é mal educado. An so on, and so on...A mesma severidade de juízo aplicada aos políticos, de quem a nossa vida infelizmente depende um bocado mais, e não havia um que se salvasse. E, já agora, também esses podiam aprender a falar melhor português.

Sempre achei que toda a extravagância consumista de Ronaldo, além de objectivamente não dizer respeito se não ao próprio, é nada quando alguém partilha com alguém o que tem. Não importa se muito, se pouco. Para partilhar não é preciso ganhar milhões. Há muita gente neste país, muito conhecida, a ganhar milhares e não consta que alguma vez tenha feito um décimo. Além de não ser propriamente a mesma inspiração.

Finalmente, sempre achei que ser um dos melhores jogadores do mundo não o obriga a ser infalível, muito menos a salvar o país do marasmo. Gosto da maneira como Cristiano Ronaldo joga, como dança, como marca, como celebra, até da maneira como amua quando falha. E tenho pena que corra o risco de passar pelo Mundial do Brasil sem marcar um único golo. Não sinto que me deva alguma coisa, não fico enraivecida, fico só triste por ele. Mas isto sou eu, que acho que o FCP é futebol e o Mundial entretenimento.

sexta-feira, março 07, 2014

Novo jornalismo?

[Foto: Nuno Botelho]

Houve petardos, cantigas e insultos. Houve 15 mil polícias, alguns tinham a cara tapada, alguns subiram alguns degraus da AR, alguns derrubaram grades, todos sofreram cortes, todos (?) têm de comprar a farda que usam. Não houve mortos nem a casa arder. Restaram dez feridos para ilustrar a história e o secreto desapontamento por não ter acabado mal. 

Houve directos nas televisões a engolir a programação, houve acompanhamento ao minuto em alguns sites, muitos vídeos e fotografias (não fosse aparecer alguém a querer outra vez beijar um polícia... e parece que apareceu mesmo), histeria colectiva. À falta de pão, o circo. Hoje não houve jornal que não tivesse dedicado duas páginas ao assunto.

Se alguém tiver visto ou lido em algum lado quanto custa uma farda de polícia ou a parafernália que usam e que também dizem ter de pagar, se alguém tiver visto ou lido em algum lado que outros funcionários do Estado têm também de pagar as suas tralhas, se alguém tiver visto ou lido em algum lado por que razão os cortes dos polícias são injustos e os do sector privado e da função pública são aparentemente justos, agradeço que me informem. Porque eu infelizmente não vi nem li. Não estou contra a manifestação, só contra um jornalismo viciado em mostrar muito e explicar pouco.

terça-feira, março 04, 2014

Os privilegiados


Há uns dias, esta fotografia chocou o país, coisa que francamente não consegui entender se não à luz da hipocrisia reinante. Lê-se, de uma só penada, o livro de Gustavo Sampaio, "Os privilegiados" (que devia ser de leitura obrigatória nas escolas), um trabalho inacreditável de desmantelamento do verniz dos governantes portugueses (com nomes, números, trocas, empresas, cruzamentos, enriquecimentos, tudo!) e rapidamente se percebe que nós não somos mais do que uma multidão de negros pobres armados em brancos ricos a olhar impotentes para os políticos que exibem, indiferentes e sem pudor, as suas vestes caras ao centro. A única diferença é que a Rita Pereira é muito mais bonita do que qualquer um deles.

quarta-feira, maio 08, 2013

Meia justiça é justiça?


A Universidade Lusíada que não só nunca assumiu coisa nenhuma como tentou durante doze anos (!!!) fugir e abafar o assunto foi condenada a pagar noventa mil euros (peanuts...) a uma família da qual já quase nada sobra a não ser uma Mãe Coragem. E aos alunos que mataram Diogo vai acontecer o quê? Nada?! Há nomes, há caras. Reformar a justiça neste país passa também por isto: aquela gente não pode seguir a vida como se não tivesse feito nada. Diogo teria hoje 34 anos. Foi assassinado por um bando de imbecis no quarto ano da faculdade porque tinha decidido desistir da tuna. Que razão pode haver para justificar que quem o matou siga a vida impunemente?

sábado, maio 04, 2013

Marlon Correia



É uma coisa que se aprende quando não se é do Porto mas se vem viver para o Porto: quando as coisas correm bem, quando são bonitas e honradas, é porque são "coisas à moda do Porto". Ou "pessoas à moda do Porto". Aprende-se a expressão e aprende-se a sentir orgulho nela, a amar isso no Porto.

Aqui de casa ouve-se, como todos os anos, a música da queima. São três da manhã, nunca incomodou. Excepto este ano. Este ano, a música da queima traz o embaraço de uma festa que está a acontecer apesar de um rapaz ter sido assassinado naquele recinto há pouco mais de 24 horas. Traz a tristeza de um Porto que tanto se orgulha da sua honra e da sua universidade, mas não conseguiu dar este sinal maior de dignidade: não há nada para festejar no funeral de um membro da academia. Que pena os alunos individualmente não terem percebido isto também. Que vergonha sinto pela FAP!

quinta-feira, março 07, 2013

sábado, março 02, 2013

2 de Março



Se a manifestação de 2 de Março tiver tido mais gente que a de 15 de Setembro é mais importante? E se tiver tido menos? Não vale? Se tiver tido um milhão e meio é grave? E se tiver tido menos de um milhão? Não conta? A partir de que número o sofrimento deve ser levado a sério? Querer aferir a importância da manifestação pela adição de pessoas é ridículo. A conta não é de somar, é de subtrair. Todas as pessoas que estiveram lá, estiveram porque lhes foi tirada alguma coisa. Em alguns casos, demasiadas coisas. Incluindo o direito à alternativa política, que não existe neste país, e que é a maior amputação de que se pode padecer num regime democrático. Temos democracia, temos liberdade, podemos votar, mas não temos em quem votar. Não somos um milhão assim, seremos muitos mais.

E se as elites (?) fossem sujeitas a votos, não estaríamos melhor. Já nos sugeriram que emigrássemos (por que razão nós e não eles?), já nos disseram para aguentarmos, hoje disseram-nos para limparmos matas. Nada contra o trabalho manual, mesmo se aquém das qualificações. Em teoria. Mas espanta-me a forma como se fala dos licenciados neste país. Como se os licenciados, só por serem licenciados, fossem automaticamente uns bandalhos petulantes que não querem trabalhar, só desfilar o canudo. Espanta-me ainda mais que a mesma sugestão, a da limpeza das matas, não seja feita a criaturas como Duarte Lima ou Oliveira e Costa que, sozinhos, custam mais ao país que mil licenciados juntos. 

Foi por isto, também, que fomos à manifestação. Porque não nos subtraíram só o salário, já de si estagnado há oito anos, subtraíram-nos a esperança numa classe política decente e numa elite que, no mínimo, pensa antes de falar. 

sexta-feira, dezembro 21, 2012

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Irreal social

[Alex Stoddard]

Há já algum tempo que Portugal me faz lembrar a Rússia do séc. XIX. Fazia. Até hoje. A partir de hoje, Portugal passa a ser o México dos gangues autorizados.

Uma pessoa vem na auto-estrada em direcção ao Porto, são quatro da tarde, a estrada está deserta. Somos nós e um carro da GNR. Só. Ultrapassamos. Uns quilómetros à frente, a GNR manda-nos encostar. Em plena auto-estr...ada. Paramos. O agente revista tudo, não encontra nada. E como não encontra nada, dispara:
- "Vou passar-lhe uma contra ordenação, porque quando nos ultrapassou percorreu dois quilómetros na faixa do meio antes de passar para a da direita."
- "Desculpe?! Está a brincar, não está?!"
- Não. São 60 euros. Paga já ou fica com a carta apreendida."

A multa é tão surreal que me rio, não consigo sequer irritar-me. Pergunto que parte da multa reverte para a GNR. 10%. Multas à comissão, portanto. Tento pagar com multibanco, o multibanco da GNR não funciona, não tem bateria. Entretanto, já passaram mais de vinte minutos, estamos parados na auto-estrada, onde supostamente não se deve parar. O agente, que não tinha mais de 25 anos, treme, aflito com o embaraço da maquineta multibanco. Solução: escolta policial até a estação de serviço mais próxima.

Chegamos lá, o multibanco não tem dinheiro.
- "Pode fazer o pagamento através de pagamento de serviços."
- "A máquina não tem dinheiro nem recibos."
- "Nesse caso, tem de ficar com a carta apreendida até pagar."
- "O senhor passou-me uma multa, uma multa surreal, não tem como cobrá-la e eu é que fico com a carta apreendida?!"

Portugal é isto. Do local do crime até à estação passaram uns vinte carros, todos pela faixa do meio, perguntei porque não mandou parar todos.
- "Um agente não pode cantar e assobiar ao mesmo tempo."

Está tudo dito. Cuidado quando virem um carro na GNR na estrada, são assaltantes armados, autorizados, perigosos. O agente chamava-se Matos, como o mágico. Em meia hora fez desaparecer 60 euros. Portugal é esta merda!

sábado, novembro 24, 2012

José Tolentino Mendonça


 
"(...) Um texto recente de um teólogo contemporâneo, Christoph Theobald, intitula-se “O cristianismo como estilo”. E, de facto, o cristianismo não é uma ideologia. Não é no plano ideológico que nós o encontramos. O cristianismo é um estilo no sentido em que ele é a expressão de um modo de ser, de um modo de viver. É uma decisão histórica por um determinado estilo de vida, uma determinada vivência, que depois se torna uma marca. É muito interessante reflectir sobre isso, mesmo a partir do texto bíblico.

 
Há uma parábola de Jesus em que parece que Jesus está a falar do ponto de vista dos mercados, de uma lógica da procura do lucros, que é a parábola dos talentos. Aquele senhor que sai em viagem e distribui de forma diversa talentos pelos seus colaboradores: a um dá cinco, a outro dá três, a outro dá dois, e a outro dá um. Todos vão multiplicar os talentos, vão investir, vão criar coisas novas com aquilo que receberam. Mas aquele que recebeu só um talento faz este raciocínio: eu sei que ele é um homem severo, que quer recolher onde não semeou. Por isso, o que vou fazer é enterrar este talento, conservá-lo intacto, e quando ele voltar e pedir-me o talento, vou entregar-lhe o talento que recebi.

Nós vivemos hoje, epocalmente, historicamente, um período depressivo como sociedade. Temos medo do futuro, estamos apreensivos com o presente, com o que virá. E a nossa lógica social ou pessoal é muito a de decidirmos que não nos estão a ser oferecidos cinco talentos, nem três, mas apenas um talento. E a questão é: o que é que nós fazemos com isso? De facto, a grande tentação é a de enterrarmos o talento. E porque é que o homem enterra o talento? Enterra o talento porque a representação que ele tem do seu Senhor é de alguém severo, intransigente, que não o compreende, que não o apoia e que de forma muito intrusiva acaba por querer o que ele não pode dar. Então, ele enterra simplesmente o talento e desiste. Desiste de viver, desiste de apostar.

Nós sabemos que todos os outros são elogiados pelo Senhor, mas este é repreendido. E aquele talento é-lhe retirado. Porquê? Porque o pior que nos poderia acontecer seria interiorizarmos, no tempo actual, uma representação do presente, do futuro, daquilo que é a vida, como sendo uma vida severa que nos quer tirar aquilo que não nos deu. Porque aí, nós simplesmente desistiremos de ser.
O cristianismo como estilo desenvolve-se em circunstâncias que nem sempre são as circunstâncias ditas favoráveis ou aquelas que reúnem todas as condições necessárias para nós fazermos a aposta. É Pascal quem define o cristianimo como uma aposta. Quais são as condições que cada um de nós requer para fazer da sua vida uma aposta? Uma aposta fecunda, uma aposta em vista da plenitude?

Lembro o testemunho de uma mulher, ela era judia, mas muito próxima do cristianismo, Era uma mulher que nas horas mais sombrias do século XX, aquando da invasão dos nazis, ela tinha possibilidade de fugir, tinha amigos na clandestinidade que a aconselhavam e a pressionavam a fugir, mas ela resistiu e impôs-se contra esses amigos dizendo: "este momento para o povo judeu (pena no Holocausto) é um momento de tal forma misterioso que não posso isentar-me de participar nele até ao fim, até ao fundo no seu destino." Ela recusa passar à clandestinidade. E mais: faz um gesto absolutamente insensato, insolente, ofecere-se como voluntária para o campo de concentração. Depois, é feita prisioneira, e ela também morre em Auschwitz.

Mas a história desta mulher e o caminho de descoberta que ela faz noutros momentos mais frágeis, mais duros, mais sem salvação do século XX, é uma coisa que se torna numa parábola da própria esperança. No fundo, que imagem é que nós interiozamos e que imagem é que ela interiorizou? Eu penso que também a ela só lhe foi dado um talento. E contudo ela fez daquele talento uma história de vida.

De maneira que o estilo cristão não depende dos tempos, não é apenas uma coincidência com o nosso tempo. O cristão é chamado a não coincidir com o seu tempo, o cristão estabelece ele próprio uma crise, porque o cristão é chamado a sinalizar a iminência. A iminência de uma realidade outra. O cristão é chamado a ser sentinela de uma outra realidade em todos os tempos. Em todas as circunstâncias. Se nos conformamos apenas com o tempo não seremos capazes de exercer a nossa função de fermento, de inspiração, no próprio tempo. E estes tempos que nós estamos a viver, tempos maus, tempos duros, estes tempos precisam de inspiração, precisam daquilo que João Paulo II, na profética carta que preparava a entrada no terceiro milenio, dizia ser a fantasia da caridade. Desafiar os cristãos a terem, a reinventarem, a ousarem a imaginação, a fantasia, a ousadia, a pensar aquilo que pode ser a caridade.

Para nós, esta hora não é apenas uma hora de restrição. Não é uma hora de abrandamento, é uma hora de aceleração. Não pode ser apenas a hora do medo em que enterramos o talento, mas esta é a hora para fazermos a aposta. E eu penso que no interior deste poli território social – e as redes sociais em que cada um de vós é um actor privilegiado dessa multiplicidade de expressões que a Igreja tem no campo sicial – esta é uma hora para fazer apostas. Não é hora do medo, não é hora de dúvidas. É hora da imaginação, do empreendedorismo, a hora de ousar passos novos, realidades novas, de uma forma muito testemunhal. Desde a capacidade de termos projectos em conjunto, de nos ajudarmos mais, de uma cultura muito mais de colaboração, de solidariedade, até de facto atitudes que podem surgir, este é um tempo de inovação. Este é um tempo em que a realidade se torna um laboratório para a caridade, para o amor, para a solidariedade, para aqueles valores que fazem parte do nosso ADN como cristãos,

Pensando no cristianimo como estilo, e usando as palavras de Sigmund Barth, o teólogo polaco, ele diz: "é preciso passar da cultura de consumo, da vida que se consome - e no fundo nós sabemos que estas duas últimas décadas foram do endeusamento do consumo, pensando que essa era uma fonte de felicidade, de progresso infinito, ilimitado, que no consumo é que nos realizávamos como pessoas - passarmos de uma vida que consome a um vida que não desiste de se consumar. A verdade é que nós consumimos experiências, consumimos bens, consumimos realidades, e a nossa vida fica adiada, fica por consumar.

Quando se diz que mais importante que consumir é consumar, há aí de facto um desafio a fazermos escolhas muito concretas de modelos de felicidade. No fundo, esta crise também é uma crise de modelos de felicidade. O que é para nós a felicidade? A realização pessoal? Que tipo de mulher, que tipo de homem somos? Que tipo de sociedade estamos a construir? Essa é a reflexão mais funda que é necessário fazer. E, sem dúvida, há aqui um trânsito que nós temos de operar.

Outro desafio importante tem a ver com a redescoberta do dom. O Santo Padre Bento XVI tem na encíclica social uma página admirável sobre a necessidade de redescobrir o dom, a lógica do dom, a circulação do dom. E a verdade é que nós proprios desacreditamos muito no dom, na força que o dom tem, que não é apenas de somar. O dom tem uma lógica de multiplicar. Os evangelhos estão cheios disso, como a experiência do pão que se multiplica. Um pão que se reparte em princípio fica mais pequeno. No entanto, ali, pelo contrário, quando se reparte multiplica-se, acaba por sobreabundar. Essa multiplicação é uma lógica interna ao dom. A experiência que fazemos do dom é que as coisas crescem, dão para muito mais. A sua finalidade torna-se muito mais clara. É a sua capacidade de chegar a todos, que é uma coisa da qual não podemos desistir, mas torná-se uma realidade efectiva. E no dom temos que fazer perguntas.

Lembro-me de uma conversa na televisão entre Manoel de Oliveira e Judite de Sousa. Ele colocava uma questão muito curiosa: "Imaginemos uma sociedade sem dinheiro, em que o instrumento de troca era o dom, a dádiva. Se calhar, como socidade no seu todo não podemos dispensar o dinheiro, mas se calhar a nível da família, das relações mais próximas, a nivel do nosso prédio, bairro, instituição, nós podemos encontrar formas colaborativas que não precisam de dinheiro, que tenham outras fórmulas de valoração, com divisão e partilha. E o que me parece importante é a ousadia das perguntas. Ou seja, não considerar que os modelos que nos serviram até aqui são o único caminho e que sem eles não conseguimos mais viver. Isso seria um engano. A vida sobrepõe-se aos próprios modelos organizacionais. É preciso encontrar novos modelos e ter ousadia de colocá-los em prática e de chamar a atenção para eles, iluminá-los."

*Na Semana Social, no Porto

quarta-feira, novembro 14, 2012

Diogo Macedo



Diogo Macedo. O nome persegue-me desde 2008. A história também, desde que consultei o processo. Hoje, dia em que soube que a  Relação do Porto confirmou a decisão do Tribunal de Famalicão que obriga a Universidade Lusíada a indemnizar a família daquele aluno do 4º ano de Arquitectura, 22 anos, assassinado pelos ex-colegas da tuna numa praxe estúpida e extemporânea em 2001, devia ser um dia feliz. De manhã, até me pareceu que seria, mas depois a raiva pela impunidade daqueles escroques que o mataram retirou-me a sensação de redenção que a justiça-feita deveria dar.

Estive a reler a história, os apontamentos, as notas do processo. Quando a justiça demora mais de uma década a chegar, poderá ainda ser considerada justiça? O pai do Diogo já não está cá para saber. A mãe, das maiores guerreiras que conheci na vida, como só uma mãe sabe ser, foi acusada de tudo durante a luta. De estar doida também, claro. Perdeu o filho, perdeu a saúde. Ganhou a causa? Os criminosos continuam à solta, hoje provavelmente a serem tratados por doutores e engenheiros, e seguramente com a certeza de que se safaram. A Universidade pagará 90 mil euros, como se um filho valesse 90 mil euros, mas nunca assumiu a culpa, a negligência, nunca reconheceu que falhou. E em dez anos a única coisa que fez foi tentar abafar o caso, aquele dia 8 de Outubro de 2001.

terça-feira, setembro 25, 2012

Espanha, hoje.


Horrorizada. Digam o que disserem, a Europa projecto de paz acabou.

sábado, setembro 15, 2012

quinta-feira, setembro 13, 2012

Vénia II


[Francesca Woodman]
"Aqui que ninguém nos ouve", do blogue "Sinusite Crónica"
Acabei de ouvir Miguel Relvas dizer, com o seu já habitual ar de sabujo, que o apoio aos mais desfavorecidos é uma preocupação permanente deste Governo. Perante a impossibilidade de ser ouvido por esta gente, perante esta espécie de surdez desprovida de qualquer noção de civilidade no serviço prestado ao país, vou escrever como se eles não nos estivessem a ouvir.
Que país é este que aceita que um bando de filhos da puta confisque impunemente o resultado do trabalho de milhões de pessoas? Quão insensível é preciso um bando de filhos da puta ser para anunciar ao país uma redução do salário mínimo? Eu sei que muita gente sente já ter assistido a isto antes, mas este não é um bando de filhos da puta qualquer. É uma espécie refinada de filho da puta, tão perigosa pela sua ignorância quanto pela capacidade inesgotável de mandar um país inteiro para o caralho que o foda. Bem sei que é um bando de filhos da puta com maioria absoluta. Infelizmente, demasiados eleitores desconheciam, à data das eleições, que estavam a mandatar um bando de filhos da puta com tão especial vocação para foder o mexilhão. Quiseram acreditar que este não era um bando de filhos da puta. Infelizmente, jamais imaginaram que este viesse a tornar-se o maior bando de filhos da puta que o país já viu no poder, e a mais séria ameaça ao modo de vida de todos os que diplomaticamente têm aceitado a pior forma de governo, salvo todas as outras.

Está ali um bandalho dum funcionário descansado na televisão a dizer-me que as empresas são locais de cooperação entre patrões, empregados e a cona da mãe dele. Amigo: locais de cooperação o caralho que ta foda. Este pulha dum cabrão, que nunca trabalhou numa puta duma empresa na vida, assim como a maioria destes inefáveis cabrões, que eu podia alegar não terem outro nome, não fosse o facto de já os ter apresentado como filhos da puta, mas dizia eu, este filho da puta, bandalho e pulha dum cabrão, sobejamente merecedor de todos os insultos que me forem ocorrendo, diz-me que a empresa é um local de cooperação. As empresas, cabrão desumano, são locais onde as pessoas convivem de forma mais ou menos saudável com um modo de vida/ocupação de tempo que, de forma mais ou menos saudável, aceitam ao longo de parte das suas vidas. Então explica-me lá, ó javali cagado pela arca, em que é que uma empresa é um local de cooperação, e não uma desesperada forma de prisão, quando um bando de filhos da puta destrói qualquer possibilidade de as pessoas terem uma remota esperança de construir algo edificante a que possam chamar vida, esperar que esta subsista, se mantenha e evolua positivamente sem a ajuda, mas especialmente sem a constante sabotagem, de um bando de filhos da puta. Se o referido bando de filhos da puta nos estivesse a ouvir, ouvir-se-ia por esta altura um deles dizer, de forma inacreditavelmente ponderada, dotado da mais fina filha-da-putice - que este bando de filhos da puta confunde com elevação, humanidade, sentido de estado e afins – diria que eu, e vocês todos, passámos estes anos todos a viver acima das possibilidades.

Mas quais anos, meu filho da puta? E quais possibilidades? Trabalho que nem um cão há 6 anos, a tempo inteiro mais as horas todas que não me pagaram, e o número de reduções salariais que tive, impostas por este bando de filhos da puta, é já próximo do número de empregos que tive na minha ainda curta carreira. Comprei um carro em segunda mão, uma mota para poupar no que não podia gastar com o carro, e vou jantar fora e ao cinema. Comprei uns discos, uns livros, fiz meia dúzia de viagens baratas, comprei uns móveis do Ikea e, durante o processo, paguei uma renda e uma catrefada de impostos. Vá lá, tentei ser feliz sem pedir ajuda a ninguém nem ir preso. Aceitei o mais serenamente que pude as regras do jogo, isto é, trabalho, trabalho e trabalho para usufruir do resto e conservar, em doses iguais, a saúde mental e a ambição, a primeira das quais começa a desvanecer-se, como se lê. E, no final de uma semana de 60 horas de trabalho que aceitei de bom grado por considerar justa e saudável a "relação de cooperação" mantida com quem me paga, ligo a rádio e é-me anunciada, por um filho da puta de currículo construído a favores, é-me anunciada a ideia peregrina com que este bando de filhos da puta, sem critério nem humanidade, resolveu premiar um país inteiro, que na sua maioria vive em muito piores condições do que eu.

Reduzir o salário mínimo? Aumentar ainda mais a precariedade de quem trabalha a recibos verdes? Transferir uma soma obscena de dinheiro dos trabalhadores para as empresas num país com clivagens sociais e económicas absolutamente trágicas, numa esperança infundada de que isso promova emprego? Isto já não cabe na cabeça de ninguém, e há um bom motivo para existir hoje uma impensável maioria que vai de António Nogueira Leite a Bagão Félix, passando pelos 4 sem abrigo que contei de casa até ao trabalho, mais as lojas falidas. Não é simbolismo nem retórica nem injustiça poética: isto é a vida, conforme ditada por um bando de filhos da puta, a abater-se sobre um país inteiro, dia após dia, cêntimo após cêntimo, impossibilidade após impossibilidade. Haverá um pingo de decência nestas cabeças? Milhões de vozes manifestam em uníssono a vontade literal de esganar estes filhos da puta, ao mesmo tempo que consideram, infelizes, a hipótese de fugir do seu próprio país, e estes filhos da puta aparentam não sentir nada. Foda-se, reduzir o salário mínimo. Há gente que merece o pior de nós. E é assustador que aí se inclua o Governo do meu país.

Vénia I


[Francesa Woodman]

A quem quer que seja que tenha escrito este texto, a minha absolutamente sentida e grata vénia. 

"Vão-se foder"

Na adolescência usamos vernáculo porque é “fixe”. Depois deixamo-nos disso. Aos 32 sinto-me novamente no direito de usar vernáculo, quando realmente me apetece e neste momento apetece-me dizer: Vão-se foder!Trabalho há 11 anos. Sempre por conta de outrém. Comecei numa micro empresa portuguesa e mudei-me para um gigante multinacional.

Acreditei, desde sempre, que fruto do meu trabalho, esforço, dedicação e também, quando necessário, resistência à frustração alcançaria os meus objectivos. E, pasme-se, foi verdade. Aos 32 anos trabalho na minha área de formação, feliz com o que faço e com um ordenado superior à média do que será o das pessoas da minha idade.Por isso explico já, o que vou escrever tem pouco (mas tem alguma coisa) a ver comigo. Vivo bem, não sou rica. Os meus subsídios de férias e Natal servem exactamente para isso: para ir de férias e para comprar prendas de Natal. Janto fora, passo fins-de-semana com amigos, dou-me a pequenos luxos aqui e ali. Mas faço as minhas contas, controlo o meu orçamento, não faço tudo o que quero e sempre fui educada a poupar.

Vivo, com a satisfação de poder aproveitar o lado bom da vida fruto do meu trabalho e de um ordenado que batalhei para ter.Sou uma pessoa de muitas convicções, às vezes até caio nalgumas antagónicas que nem eu sei resolver muito bem. Convivo com simpatia por IDEIAS que vão da esquerda à direita. Posso “bater palmas” ao do CDS, como posso estar no dia seguinte a fazer uma vénia a comunistas num tema diferente, mas como sou pouco dado a extremismos sempre fui votando ao centro. Mas de IDEIAS senhores, estamos todos fartos. O que nós queríamos mesmo era ACÇÕES, e sobre as acções que tenho visto só tenho uma coisa a dizer: vão-se foder. Todos. De uma ponta à outra.

Desde que este pequeno, mas maravilhoso país se descobriu de corda na garganta com dívidas para a vida nunca me insurgi. Ouvi, informei-me aqui e ali. Percebi. Nunca fui a uma manifestação. Levaram-me metade do subsídio de Natal e eu não me queixei. Perante amigos e família mais indignados fiz o papel de corno conformado: “tem que ser”, “todos temos que ajudar”, “vamos levar este país para a frente”. Cheguei a considerar que certas greves eram uma verdadeira afronta a um país que precisava era de suor e esforço. Sim, eu era assim antes de 6ª feira. Agora, hoje, só tenho uma coisa para vos dizer: Vão-se foder. Matam-nos a esperança.

Onde é que estão os cortes na despesa? Porque é que o 1º Ministro nunca perdeu 30 minutos da sua vida, antes de um jogo de futebol, para nos vir explicar como é que anda a cortar nas gorduras do estado? O que é que vai fazer sobre funcionários de certas empresas que recebem subsídios diários por aparecerem no trabalho (vulgo subsídios de assiduidade)?… É permitido rir neste parte. Em quanto é que andou a cortar nos subsídios para fundações de carácter mais do que duvidoso, especialmente com a crise que atravessa o país? Quando é que páram de mamar grandes empresas à conta de PPP’s que até ao mais distraído do cidadão não passam despercebidas? Quando é que acaba com regalias insultosas para uma cambada de deputados, eleitos pelo povo crédulo, que vão sentar os seus reais rabos (quando lá aparecem) para vomitar demagogias em que já ninguém acredita?Perdoem-me a chantagem emocional senhores ministros, assessores, secretários e demais personagem eleitos ou boys desta vida, mas os pneus dos vossos BMW’s davam para alimentar as crianças do nosso país (que ainda não é em África) que chegam hoje em dia à escola sem um pedaço de pão de bucho. Por isso, se o tempo é de crise, comecem a andar de opel corsa, porque eu que trabalho há 11 anos e acho que crédito é coisa de ricos, ainda não passei dessa fasquia.

E para terminar, um “par” de considerações sobre o vosso anúncio de 6ª feira.Estou na dúvida se o fizeram por real lata ou por um desconhecimento profundo do país que governam.
Aumenta-me em mais de 60% a minha contribuição para a segurança social, não é? No meu caso isso equivale a subsídio e meio e não “a um subsído”. Esse dinheiro vai para onde que ninguém me explicou? Para a puta de uma reforma que eu nunca vou receber? Ou para pagar o salário dos administradores da CGD?Baixam a TSU das empresas. Clap, clap, clap… Uma vénia!

Vocês, que sentam o já acima mencionado real rabo nesses gabinetes, sabem o que se passa no neste país? Mas acham que as empresas estão a crescer e desesperadas por dinheiro para criar postos de trabalho? A sério? Vão-se foder.As pequenas empresas vão poder respirar com essa medida. E não despedir mais um ou dois.

As grandes, as dos milhões? Essas vão agarrar no relatório e contas pôr lá um proveito inesperado e distribuir mais dividendos aos accionistas. Ou no vosso mundo as empresas privadas são a Santa Casa da Misericórdia e vão já já a correr criar postos de trabalho só porque o Estado considera a actual taxa de desemprego um flagelo? Que o é.A sério… Em que país vivem? Vão-se foder.

Mas querem o benefício da dúvida? Eu dou-vos:1º Provem-me que os meus 7% vão para a minha reforma. Se quiserem até o guardo eu no meu PPR.
2º Criem quotas para novos postos de trabalho que as empresas vão criar com esta medida. E olhem, até vos dou esta ideia de graça: as empresas que não cumprirem tem que devolver os mais de 5% que vai poupar. Vai ser uma belo negócio para o Estado… Digo-vos eu que estou no mundo real de onde vocês parecem, infelizmente, tão longe.Termino dizendo que me sinto pela primeira vez profundamente triste. Por isso vos digo que até a mim, resistente, realista, lutadora, compreensiva… Até a mim me mataram a esperança.

Talvez me vá embora. Talvez pondere com imensa pena e uma enorme dor no coração deixar para trás o país onde tanto gosto de viver, o trabalho que tanto gosto de fazer, a família que amo, os amigos que me acompanham, onde pensava brevemente ter filhos, mas olhem… Contas feitas, aqui neste t2 onde vivemos, levaram-nos o dinheiro de um infantário.Talvez vá. E levo comigo os meus impostos e uma pena imensa por quem tem que cá ficar.

Por isso, do alto dos meus 32 anos digo: Vão-se foder"

terça-feira, maio 01, 2012

Valeu tudo. Que triste.


Valeu tudo. Por um desconto de 50% em compras superiores a cem euros nos supermercados da cadeia Pingo Doce, houve tiros e feridos, histeria e agressões, houve polícia e famílias organizadas para poderem comprar a dobrar o que estava sujeito regras - o bacalhau, por exemplo, estava limitado a dez quilos por cada consumidor. Houve quem alugasse táxis para a deslocação ou carrinhos de compras por dez euros. "Vale tudo, porque compensa", dizia-se nas filas de espera. Compensa esperar para entrar, esperar para pagar, esperar para sair." Lutar para não ficar de fora.

O grupo Jerónimo Martins lançou esta terça-feira, mais ou menos em segredo, uma promoção inédita: pague metade de tudo o que levar. A informação espalhou-se de manhã e, ao início da tarde, a maioria das prateleiras ficou vazia: azeite, leite, arroz, açúcar e massas foram os primeiros bens a esgotar. Fraldas e enlatados, também. Os bens perecíveis, fruta, legumes e iogurtes não tiveram saída. Em tempo de crise, os portugueses fizeram uma escolha: encher a despensa com o que não se estraga. A quase totalidade das lojas do grande Porto fechou muito antes das 18 horas, hora oficial de encerramento, por ruptura de stock ou por intervenção policial motivada por desacatos na corrida aos saldos na alimentação.



Depois de uma tentativa gorada para entrar na loja do Padrão da Légua, em Matosinhos, uma das primeiras a fechar por "falta de segurança", o casal Azevedo, Armando e Lurdes, seguiu para a Senhora da Hora. Entrou perto das 13 horas, saiu mais de quatro horas depois. Com eles levavam a intenção de gastar cem euros - gastaram 600. Ou melhor, 300. "Reconheço que comprei muitos produtos supérfluos, sobretudo detergentes e vinhos, algumas reservas que há muito tinha deixado de beber", admitiu o empresário de metalomecânica, distribuindo as compras pela mala do carro enquanto trocava um sorriso com a mulher: estavam "cansados", mas "felizes" por terem conseguido entrar. Àquela hora, à porta da loja, menos afortunada, uma pequena multidão gritava, reclamava, exigia falar com o segurança, com o gerente, pedia o livro de reclamações que aparentemente ninguém viu. Lá dentro, conta Armando, "a desorganização foi total.

A loja do Pingo Doce de Coimbrões, em Gaia, foi a única em que o JN conseguiu entrar e a única que, pouco antes das 18 horas, ainda aceitava clientes. Mas entrar para comprar exigia doses extra de coragem. As filas para pagar desenhavam um comboio pelo interior da loja, um círculo sem intervalo entre o início e o fim, as prateleiras quase todas vazias, o chão maltratado por embalagens perdidas, clientes aos encontrões, funcionários exaltados, muita gente a respirar em pouco espaço. À porta, um desistente desabafava: "Escrevam sobre isto, digam que é o fim do mundo, porque o fim do mundo não deve ser diferente."

Não havia carrinhos para toda a gente, as pessoas arrastavam as compras pelo chão, disputavam as caixas de fruta para as transportar, acotovelavam-se pela última embalagem de papel higiénico." O casal não chegou a tempo para comprar massa ou arroz, mas conseguiu organizar-se para comprar bacalhau. "Cada pessoa só podia comprar dez quilos. Por isso, pagámos como se tivéssemos vindo separados." Valeu a pena, claro.

O cenário de tensão, evidente em várias lojas em Matosinhos, não foi diferente do que encontrámos em várias lojas no Porto. Na da Avenida da Boavista, a meio da tarde, foi dada uma ordem: quem sair não volta a entrar. "Nem para vir buscar ajuda?", perguntou uma senhora. "Para nada", respondeu o segurança. Buscar ajuda significava resgatar o familiar ou amigo que entretanto saíra para levar sacos ou caixas para acomodar as compras.
O anúncio precipitou a confusão. Também ali foi solicitada a presença da polícia, e pouco depois soou a declaração mais temida pela fila: a loja vai fechar durante duas horas e poderá não voltar a abrir. Uma nuvem de desalento desceu sobre o rosto de Sónia Cerqueira. Ela até sabia do segredo desde domingo à noite, fuga de informação partilhada pelo amigo de um amigo, a irmã fizera calmamente compras durante a manhã, naquele mesmo local, ela deixara-se ficar para a tarde - e agora era tarde de mais. Queria sobretudo comprar fraldas para a filha e "mais dois ou três pacotes dos produtos" que já costuma comprar.

Ao lado, Abel Raeiro, reformado, discursava. "Não aceito que nos considerem inferiores, não aceito ser tratado como cidadão do terceiro mundo, exijo falar com o seu patrão", dizia, dedo em riste, virado ao funcionário incumbido de dizer que o stock quebrara. A sua revolta não se deveu à promoção, mesmo questionando-se sobre ela, porque "ninguém dá nada a ninguém", mas sobre a organização. Na fila, sem carro de compras e já sem a expectativa de entrar, perguntava: "como é possível oferecer uma coisa destas sem prever que iria dar nisto?" Isto é a exaltação fruto de "oferecer metade das compras só a metade das pessoas". A metade beneficiada entupiu o parque, o alarme de CO2 manifestou-se durante toda a tarde, todos reclamaram da falta de segurança.

terça-feira, março 13, 2012

Universidade pés descalços


Bunker Roy | Aprendendo com os ''pés descalços'' 

"Primeiro eles ignoram-te, depois, riem-se de ti, depois, combatem-te e depois tu vences." 
Mahatma Gandhi

quinta-feira, janeiro 26, 2012

David Pontes: Orion morreu, mas continua a brilhar


Com o avançar dos anos, o Facebook já não nos traz só as datas de aniversários dos amigos, às vezes vem interromper a paspalhice digital com notícias como a que recebi esta semana. O António Júlio morreu.

Num instante, as imagens percorreram o meu cérebro na busca da memória. Um Cadillac dourado, de cobertura branca descendo a Avenida dos Aliados, uma Harley-Davidson à porta de um bar e sempre a figura esguia do António Júlio, sorrindo, pleno de energia, acabado de chegar de Amesterdão.

Foram as festas góticas, os concertos, em bares e no Sá da Bandeira, a loja no Stop repleta de peças em segunda mão e, ainda não há muito, um Palacete Pinto Leite a transbordar com a excentricidade de “Moscow-Porto-Arte-Express”. E, claro, as imagens do castelo que estava a construir num local do interior que esqueci, onde marcamos encontros que nunca cumprimos.

O António Júlio, que também gostava que lhe chamassem Orion, era daquelas personalidades que dão sentido às cidades. Irreverente, insaciável na sua vontade de congregar vontades, levantar projetos, de se juntar a gente nova em que corresse essa energia tão própria do rock’n’roll. E sempre, apesar das suas vestes negras, do seu gosto pelo clã gótico, o sorriso, uma ânsia bem-disposta, um encontro de amigos.

Sendo único e irrepetível, o António Júlio tinha essa capacidade de saltar gerações, de ir contra a norma, de insistir, de criar diversidade tornando os nossos percursos urbanos mais surpreendentes. É a soma de vidas como esta, nas mais diferentes áreas, que fazem a riqueza das cidades.

Respondi ao Facebook com “I see a darkness”, de Bonnie “Prince” Billy. Fui ouvir a tua filha despedir-se de ti ao som de “Fascinação”: “Os sonhos mais lindos sonhei/ De quimeras mil um castelo ergui/ E no teu olhar, tonto de emoção,/ Com sofreguidão mil venturas previ.” Há bem pouco tempo ligaste-me. Deverias querer despedir-te. Ocupado, não te atendi à espera que voltasses a ligar, como normalmente fazias para me falar da última aventura. É horrivel saber que essa chamada não vai chegar.
[Hoje, no Porto 24]


[É uma felicidade quando na vida nos acontecem pessoas grandes. O António Júlio - para mim, Orion, herói e constelação -, era uma dessas pessoas enormes, únicas, dessas que andam na vida só para sonhar, e à força de tanto sonharem transformam mesmo o pó em ouro, o lixo em arte, os maus em bons. Que grande tristeza quando isto acaba. Obrigada, David. É por causa de pessoas como tu que, de vez em quando, é possível conhecer pessoas como ele.]

terça-feira, dezembro 20, 2011

Carta a Passos Coelho (Um murro no estômago)

Exmo. Senhor Primeiro Ministro,

Começo por me apresentar, uma vez que estou certa que nunca ouviu falar de mim. Chamo-me Myriam. Myriam Zaluar é o meu nome "de guerra". Basilio é o apelido pelo qual me conhecem os meus amigos mais antigos e também os que, não sendo amigos, se lembram de mim em anos mais recuados. Nasci em França, porque o meu pai teve de deixar o seu país aos 20 e poucos anos. Fê-lo porque se recusou a combater numa guerra contra a qual se erguia. Fê-lo porque se recusou a continuar num país onde não havia liberdade de dizer, de fazer, de pensar, de crescer. Estou feliz por o meu pai ter emigrado, porque se não o tivesse feito, eu não estaria aqui. Nasci em França, porque a minha mãe teve de deixar o seu país aos 19 anos. Fê-lo porque não tinha hipóteses de estudar e desenvolver o seu potencial no país onde nasceu. Foi para França estudar e trabalhar e estou feliz por tê-lo feito, pois se assim não fosse eu não estaria aqui. Estou feliz por os meus pais terem emigrado, caso contrário nunca se teriam conhecido e eu não estaria aqui. Não tenho porém a ingenuidade de pensar que foi fácil para eles sair do país onde nasceram. Durante anos o meu pai não pôde entrar no seu país, pois se o fizesse seria preso. A minha mãe não pôde despedir-se de pessoas que amava porque viveu sempre longe delas. Mais tarde, o 25 de Abril abriu as portas ao regresso do meu pai e viemos todos para o país que era o dele e que passou a ser o nosso. Viemos para viver, sonhar e crescer.

Cresci. Na escola, distingui-me dos demais. Fui rebelde e nem sempre uma menina exemplar mas entrei na faculdade com 17 anos e com a melhor média daquele ano: 17,6. Naquela altura, só havia três cursos em Portugal onde era mais dificil entrar do que no meu. Não quero com isto dizer que era uma super-estudante, longe disso. Baldei-me a algumas aulas, deixei cadeiras para trás, saí, curti, namorei, vivi intensamente, mas mesmo assim licenciei-me com 23 anos. Durante a licenciatura dei explicações, fiz traduções, escrevi textos para rádio, coleccionei estágios, desperdicei algumas oportunidades, aproveitei outras, aprendi muito, esqueci-me de muito do que tinha aprendido. Cresci. Conquistei o meu primeiro emprego sozinha. Trabalhei. Ganhei a vida. Despedi-me. Conquistei outro emprego, mais uma vez sem ajudas. Trabalhei mais. Saí de casa dos meus pais. Paguei o meu primeiro carro, a minha primeira viagem, a minha primeira renda. Fiquei efectiva. Tornei-me personna non grata no meu local de trabalho. "És provavelmente aquela que melhor escreve e que mais produz aqui dentro." - disseram-me - "Mas tenho de te mandar embora porque te ris demasiado alto na redacção". Fiquei. Aos 27 anos conheci a prateleira. Tive o meu primeiro filho. Aos 28 anos conheci o desemprego. "Não há-de ser nada, pensei. Sou jovem, tenho um bom curriculo, arranjarei trabalho num instante". Não arranjei. Aos 29 anos conheci a precariedade.

Desde então nunca deixei de trabalhar mas nunca mais conheci outra coisa que não fosse a precariedade. Aos 37 anos, idade com que o senhor se licenciou, tinha eu dois filhos, 15 anos de licenciatura, 15 de carteira profissional de jornalista e carreira 'congelada'. Tinha também 18 anos de experiência profissional como jornalista, tradutora e professora, vários cursos, um CAP caducado, domínio total de três línguas, duas das quais como "nativa". Tinha como ordenado 'fixo' 485 euros x 7 meses por ano. Tinha iniciado um mestrado que tive depois de suspender pois foi preciso escolher entre trabalhar para pagar as contas ou para completar o curso. O meu dia, senhor primeiro ministro, só tinha 24 horas... Cresci mais. Aos 38 anos conheci o mobbying. Conheci as insónias noites a fio. Conheci o medo do amanhã. Conheci, pela vigésima vez, a passagem de bestial a besta. Conheci o desespero. Conheci - felizmente! - também outras pessoas que partilhavam comigo a revolta. Percebi que não estava só. Percebi que a culpa não era minha. Cresci. Conheci-me melhor. Percebi que tinha valor. Senhor primeiro-ministro, vou poupá-lo a mais pormenores sobre a minha vida.

Tenho a dizer-lhe o seguinte: faço hoje 42 anos. Sou doutoranda e investigadora da Universidade do Minho. Os meus pais, que deviam estar a reformar-se, depois de uma vida dedicada à investigação, ao ensino, ao crescimento deste país e das suas filhas e netos, os meus pais, que deviam estar a comprar uma casinha na praia para conhecerem algum descanso e descontracção, continuam a trabalhar e estão a assegurar aos meus filhos aquilo que eu não posso. Material escolar. Roupa. Sapatos. Dinheiro de bolso. Lazeres. Actividades extra-escolares. Quanto a mim, tenho actualmente como ordenado fixo 405 euros X 7 meses por ano. Sim, leu bem, senhor primeiro-ministro. A universidade na qual lecciono há 16 anos conseguiu mais uma vez reduzir-me o ordenado. Todo o trabalho que arranjo é extra e a recibos verdes. Não sou independente, senhor primeiro ministro. Sempre que tenho extras tenho de contar com apoios familiares para que os meus filhos não fiquem sozinhos em casa. Tenho uma dívida de mais de cinco anos à Segurança Social que, por sua vez, deveria ter fornecido um dossier ao Tribunal de Família e Menores há mais de três a fim que os meus filhos possam receber a pensão de alimentos a que têm direito pois sou mãe solteira. Até hoje, não o fez.

Tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: nunca fui administradora de coisa nenhuma e o salário mais elevado que auferi até hoje não chegava aos mil euros. Isto foi ainda no tempo dos escudos, na altura em que eu enchia o depósito do meu renault clio com cinco contos e ia jantar fora e acampar todos os fins-de-semana. Talvez isso fosse viver acima das minhas possibilidades. Talvez as duas viagens que fiz a Cabo-Verde e ao Brasil e que paguei com o dinheiro que ganhei com o meu trabalho tivessem sido luxos. Talvez o carro de 12 anos que conduzo e que me custou 2 mil euros a pronto pagamento seja um excesso, mas sabe, senhor primeiro-ministro, por mais que faça e refaça as contas, e por mais que a gasolina teime em aumentar, continua a sair-me mais em conta andar neste carro do que de transportes públicos. Talvez a casa que comprei e que devo ao banco tenha sido uma inconsciência mas na altura saía mais barato do que arrendar uma, sabe, senhor primeiro-ministro. Mesmo assim nunca me passou pela cabeça emigrar... Mas hoje, senhor primeiro-ministro, hoje passa. Hoje faço 42 anos e tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: Tenho mais habilitações literárias que o senhor. Tenho mais experiência profissional que o senhor. Escrevo e falo português melhor do que o senhor. Falo inglês melhor que o senhor. Francês então nem se fale. Não falo alemão mas duvido que o senhor fale e também não vejo, sinceramente, a utilidade de saber tal língua. Em compensação falo castelhano melhor do que o senhor. Mas como o senhor é o primeiro-ministro e dá tão bons conselhos aos seus governados, quero pedir-lhe um conselho, apesar de não ter votado em si.

Agora que penso emigrar, que me aconselha a fazer em relação aos meus dois filhos, que nasceram em Portugal e têm cá todas as suas referências? Devo arrancá-los do seu país, separá-los da família, dos amigos, de tudo aquilo que conhecem e amam? E, já agora, que lhes devo dizer? Que devo responder ao meu filho de 14 anos quando me pergunta que caminho seguir nos estudos? Que vale a pena seguir os seus interesses e aptidões, como os meus pais me disseram a mim? Ou que mais vale enveredar já por outra via (já agora diga-me qual, senhor primeiro-ministro) para que não se torne também ele um excedentário no seu próprio país? Ou, ainda, que venha comigo para Angola ou para o Brasil por que ali será com certeza muito mais valorizado e feliz do que no seu país, um país que deveria dar-lhe as melhores condições para crescer pois ele é um dos seus melhores - e cada vez mais raros - valores: um ser humano em formação.

Bom, esta carta que, estou praticamente certa, o senhor não irá ler já vai longa. Quero apenas dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: aos 42 anos já dei muito mais a este país do que o senhor. Já trabalhei mais, esforcei-me mais, lutei mais e não tenho qualquer dúvida de que sofri muito mais. Ganhei, claro, infinitamente menos. Para ser mais exacta o meu IRS do ano passado foi de 4 mil euros. Sim, leu bem, senhor primeiro-ministro. No ano passado ganhei 4 mil euros. Deve ser das minhas baixas qualificações. Da minha preguiça. Da minha incapacidade. Do meu excedentarismo. Portanto, é o seguinte, senhor primeiro-ministro: emigre você, senhor primeiro-ministro. E leve consigo os seus ministros. O da mota. O da fala lenta. O que veio do estrangeiro. E o resto da maralha. Leve-os, senhor primeiro-ministro, para longe. Olhe, leve-os para o Deserto do Sahara. Pode ser que os outros dois aprendam alguma coisa sobre acordos de pesca. Com o mais elevado desprezo e desconsideração, desejo-lhe, ainda assim, feliz natal ou feliz ano novo à sua escolha, senhor primeiro-ministro e como eu sou aqui sem dúvida o elo mais fraco, adeus.