Sempre quis ser jornalista porque achava que era a profissão capaz de ajudar a mudar o mundo. Acreditava mesmo que ia dar voz a quem a não tem, que ia desmascarar os maus e fazer a apologia dos bons. Nunca acreditei quando me diziam que isso havia de passar com a idade. E mesmo depois de ter percebido que a profissão é menos feita de actos de generosidade, de olhos sempre postos na necessidade do outro, e mais feita de disputas infantis, de egos que nunca estão suficientemente alimentados, de atropelamentos diários, uma espécie de selva onde ninguém salva ninguém continuei a dizer (não sei bem se continuei a pensar) que se um texto mudar a vida de uma única pessoa já valerá a pena.
Mas quando hoje te liguei para o hospital, ao fim de tanto tempo sem te ver, para veres como está mãe de uma pessoa que nem sequer é um amigo, é só um conhecido de quem gosto bastante, e tu disseste logo que sim, para eu desligar, que ias a correr, tu a tratares-me pelo diminutivo da infância, e ligaste menos de meia hora depois com o assunto já todo resolvido, com os médicos já todos alerta, a dizeres que exiges que eu não agradeça, para te ligar sempre que precisar, que estás lá para isso, percebi imediatamente que são pessoas como tu, apesar de não haver muitas pessoas como tu na tua profissão, que mudam o mundo. Todos os dias e em silêncio. Como naquele dia em que te liguei porque a namorada do irmão de um amigo tinha tentado suicidar-se e tu disseste que estavas de folga mas saltaste para o hospital em menos de nada. Quando lá cheguei tu já lá estavas, bata branca enfiada, com um séquito de enfermeiros encomendados por ti à volta da rapariga.
E lembrei-me de ti no dia em que perdeste o teu pai. O colo do pai em que te sentavas todos os dias no fim do jantar. O colo que talvez não tivesses perdido se tivesse havido uma enfermeira como tu e com o teu sentido de dever ao lado dele. Eras tão pequenina, tu e a tua franjinha, a seres enganada, escondida, deixada em casa para não assistires ao funeral. Lembro-me das mãos sem cor do teu pai e da minha mãe a vestir-me umas calças azuis de bombazina nesse dia de manhã. Esse dia que depois fez com que te fosses embora com a tua mãe, os teus irmãos e a minha melhor amiga. Cinquenta quilómetros talvez seja uma distância irrisória, mas para duas meninas, melhor, duas marias-rapazes que faziam tudo juntas, desde o acordar ao adormecer, essa distância foi uma traição.
Lembro-me de quando íamos as duas levar-te à pré-primária e ficávamos lá à tua espera deslumbradas com os carrosséis que já nem sequer eram para a nossa idade. E de quando íamos para o sótão ouvir as histórias de amor das tuas empregadas, primeiro a Mila, depois a Isa. E do que chorámos quando elas foram embora. Lembro-me de pareceres sempre uma boneca como as bonecas que guardavas na adega. E de continuarmos a brincar, separadas apenas por uma varanda, quando chegava a hora de ir para casa. E dos dias de chuva em frente à lareira e das cabanas que montávamos no terraço em dias de sol. Lembrei-me do quanto fomos felizes nessas casas que já não existem e nesse tempo em que ainda não sabíamos o que haveríamos de vir a ser. Do quanto fomos felizes mesmo quando o verão chegava ao fim e tu vinhas com a tua mãe buscar a minha melhor amiga e desatávamos todos a chorar. Eu e ela porque não suportávamos o tempo até ao verão seguinte. As nossas mães porque não conseguiam não comover-se com a nossa dor.
Há coisas que não mudam. Por dentro, tu continuas a ser a boneca do coração mais doce, e nós as duas, eu e a minha melhor amiga que até já é mãe, continuamos a ser as duas marias-rapazes que cresceram juntas e que não se deixarão trair pelo tempo como foram traídas pela distância. É por dias como o de hoje que sei que os amigos do coração estarão sempre nesse lugar que nunca ninguém nos poderá roubar. Podemos já não ter três meses de férias, podemos já não passar o verão inteiro a fazer asneiras, mas ao menor indício de contrariedade saltam cá para fora com o dedo indicador esticado a gritar "presente". A nossa infância foi um privilégio.
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