domingo, abril 28, 2013

Vasco Pulido Valente: A nova geração

[Stefanie Schneider]
O discurso inaugural do dr. Seguro no Congresso do PS deu à coisa um tom de resignação e melancolia quase de fazer chorar. M...uito bem vestidinho e penteadinho, imberbe e respeitoso, o dr. Seguro tem o ar inescapável de um eclesiástico de fresca data. Parece um padre novo, ainda ignorante dos pecados da congregação, mas com as lições do seminário na ponta da língua. Recitou aplicadamente uma longa homilia, com uma voz monocórdica e um ou outro acesso de exaltação, destinado a entusiasmar os crentes. Só que os crentes não se entusiasmaram; responderam sempre com indiferença e umas palmas fracas para não estragar a liturgia. Sem uma vaia a Cavaco e a pequena agitação quando se falou de António Costa e Francisco de Assis, ninguém acreditava que a maioria daquela gente não estava a dormir.

O dr. Seguro, como aliás Pedro Passos Coelho, pertence a uma raça que pouco a pouco invadiu a política portuguesa e vai chegando agora aos lugares de comando. Educados pelas várias "juventudes" dos partidos, que os guardam misericordiosamente até aos 30 anos, seguem depois para lugares subalternos: nos gabinetes dos ministros ou no Parlamento e, com alguma sorte, acabam num instituto, numa fundação, numa empresa pública ou numa Secretaria de Estado sem importância. Pelo caminho, conheceram (e, à vezes, serviram) as grandes personagens da seita e os "notáveis" da província. Pelos 40 anos já passaram pela direcção nacional, já têm uma facção, que os promove e apoia nas querelas da casa, e já se tornaram intrigantes de primeiro plano. De Portugal e do mundo não sabem e não querem saber nada.

Mas no partido gostam deles, tanto como eles gostam do partido, a que, de resto, se referem com expressões de amor e adulação, com que as beatas costumavam rezar aos santinhos da sua devoção e que envergonhariam qualquer adulto com um resto de vergonha na cara. Falam, aliás, uma linguagem própria, uma espécie de mistura da "linha" do dia com um calão táctico pretensioso e repulsivo, em que tudo se "gere", mesmo "o silêncio", e a palavra "estratégia" designa manobras de colégio interno ou uma qualquer intriga de cozinha. A ascensão destas criaturas, que andam hoje pelas centenas ou milhares, e que dominam a vida pública portuguesa, é um flagelo. A insistência do Presidente num mirífico "consenso" com o PS é, no fundo, a ideia de juntar num único cesto, a troco de uma pacificação efémera, a pura substância da inconsciência, da irresponsabilidade e do carreirismo do pessoal político que desgraçadamente nos pastoreia.

Hoje, no Público

"Mulheres de rasgo"



As pessoas normais não têm nada de especial? Têm. Simone de Beauvoir ficaria escandalizada com o machismo das Caxinas? Talvez. (A resposta não é categórica se olharmos para os seus amores com Jean Paul Sartre.) Que há nas Caxinas, microcosmos ao lado de Vila do Conde? Mulheres que fazem dos seus homens os reis da casa. Mestres e mestras. A mestra Sónia Nunes é a heroína do novo filme de João Canijo, É o Amor, onde faz de si própria. A actriz Anabela Moreira faz de actriz que vai fazer um estágio nas Caxinas. Não é provável que Sónia tenha lido Beauvoir. Nem é preciso. Ela sabe o que é ser mulher. E é feliz nessa coisa chamada amor.

O que há para saber sobre a Sónia? Que tem 38 anos, que casou aos 20 com o Zé, que tem três filhos, que é mestra. Que ama, que é feliz, que tem o brilho e a força vulcânica das pessoas genuínas.

João Canijo escolheu-a como protagonista do seu novo filme, É o Amor, e propôs a Anabela Moreira que fosse viver a vida de Sónia por um mês. Nas Caxinas. Com o mar ao fundo e a música do brasileiro Zezé di Camargo a tocar na carrinha. O filme é a versão longa da curta metragem Obrigação, apresentada o ano passado no Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde.

Quando nos lerem, a Sónia já terá ido a Lisboa, para assistir à projecção do filme. Mas quando nos encontrámos para a entrevista, na sua casa, esse momento ainda não tinha acontecido e Lisboa era um nome. Não havia um especial entusiasmo pela ida à capital. A excitação era o filme, o filme, o filme, a vida como ela é. Em É o Amor, pela primeira vez, pôde ver-se de fora. Viu-se a ser Sónia. Anabela foi a agente.

A actriz já foi "estupidamente romântica", como Sónia. Se tivesse nascido nas Caxinas, provavelmente ainda seria assim. Vive em Lisboa.

Quem é que quer começar por falar do amor?
Anabela - A Sónia. Ela percebe mais do amor do que eu.

Diz no filme É o Amor: "A Sónia é mais interessante do que eu. Eu sou mais angustiada." Isto resume, numa linha, o perfil destas mulheres? Uma mais esperançada em relação à vida, a outra mais fechada e pesada.
Anabela - A Sónia existe na vida real exactamente como está no filme. Eu, não. O João Canijo quis filmar a história de uma actriz que vai fazer um estágio. O estágio não se resume a aprender as rotinas. É um processo esquizofrénico: como é que é estar naquela vida?

Como é que é estar na cabeça da Sónia?
Anabela - Acabei por encontrar na Sónia a imagem de uma pessoa que já fui. Aquela que não analisava tanto. Como actriz, penso no processo. A Sónia não tem de pensar: ela está a viver. Uma das barreiras que tive, durante o estágio: conseguir acreditar, como a Sónia acredita, que o amor pode ser eterno. Deve ser como acreditar em Deus. É um refúgio maravilhoso. Mas ou se acredita ou não se acredita.

A Sónia fez o exercício ao contrário? Pensou como é que seria ter a vida da Anabela?
Sónia - Não conseguia. A Anabela é uma pessoa muito sofrida em relação ao amor. Eu sinto-me feliz. Ainda no outro dia me romperam as lágrimas ao pensar assim: "Meu Deus, não tenho mais nada que te pedir. Só que agradecer."
Anabela - Era suposto que a minha personagem tivesse aqueles dilemas [amorosos e existenciais]. O João escreveu aquele guião. No filme, eu não sou completamente eu.
Sónia - Ela queria tudo igual. Os casaquinhos de malha [que eu usava], tudo.
Anabela - Há uma cena, na lota, em que estou super-séria. Como ela.

E usam ambas os casaquinhos de malha. A Sónia já se tinha visto de fora?
Sónia - No trabalho, mudo. Elas [as colegas de trabalho] dizem que sou muito boa pessoa. Mas regras são regras.
Anabela - Ficou chocada quando se viu.
Sónia - Quando vi o filme, disse: "Pá, sou tão mandona! Não é minha intenção ser assim, desculpai-me." Na carrinha [no percurso entre Caxinas e Aveiro] já é outro ambiente.

Na carrinha há conversas sobre o amor. Falemos da história de amor da Sónia e do Zé, que domina o filme.
Anabela - As pessoas que viram o filme comentaram: "Ela ama daquela maneira?" Na Sónia encontrei uma pessoa que corresponde às esperanças que eu tinha aos 12 anos. "Ele vai gostar de mim? Vai gostar de mim para sempre? Vou ser feliz?"

Quando é que acreditou que podia ser feliz para sempre?
Sónia - Demorou muito. Conheci o meu marido quando tinha 16 anos.

Como é que ele era fisicamente?
Sónia - Muito bonito, mesmo. Nessa altura o barco da família dele tinha ido ao fundo. Trabalhava no armazém. Eu ia para o peixe com o barco do meu pai. Ia fazer obrigação.

O que é "fazer obrigação"?
Sónia - Fazer obrigação é: os homens vão para o mar. E nós, [mulheres], vamos buscar o peixe ao cais, botamo-lo em lota. A nossa obrigação é fazer render o peixe, vender o peixe. Eu fazia obrigação. O Zé passava por lá. Eu achava-o superlindo. Babava-me quando passava. Via-o no cais, com as mangas arregaçadas, tipo Rambo, está a ver? E sentia-me feiinha. Pediu-me namoro, começámos a namorar.

Ainda é do tempo em que se pedia namoro? (Quantos anos tem?
Sónia - Tenho 38.
E a Anabela?
Anabela - Já não posso dizer. [riso])

Todos se conheciam, então. Os seus pais já faziam o que hoje faz. Com o seu marido, a mesma coisa.
Anabela - O pai dela era considerado o melhor mestre das Caxinas.
Sónia - O meu pai era muito bom pescador. O meu sogro, também. O meu marido também é. Pediu para namorar, à antiga. No dia 15 de Dezembro. Estava tudo muito bem até que houve uma interrupção.

Porquê?
Porque tive de lhe contar umas certas coisas. De..., do..., do meu ex-namorado. O meu marido não aceitava esse tipo de coisa.
Anabela - Dizes no filme: "Coisas de homens."
Sónia - Coisas de macho man. "Namorei com tantas, fiz-me a tantas e agora tenho uma mulher..."
Anabela - Que já teve outro namorado.

Estamos a falar de já não ser virgem?
Sónia - Exacto. Vamos ser completamente abertas: quando lhe contei que não era virgem...
Anabela - Ela não quis contar isto no filme! Vou matar-te!
Sónia - O Zé não me deixou contar isto abertamente no filme. Não queria ir ao cinema e ver tudo exposto. "Quem sabe sabe, quem não sabe não sabe."

Pode contar mais detalhadamente como é que foi educada? Qual era (é) o papel de uma mulher nas Caxinas?
Sónia - A minha mãe sempre me disse que a gente tinha de casar com um homem com quem perdesse a virgindade. Para começar direitinho: tive um namorado que trabalhava no barco do meu pai. Quando a mãe dele ficou viúva, quis que fosse para fora, para governar mais a vida, uma vez que era o ganha-pão da casa.
Pediu-me, para ficar seguro (senão, eu ia namorar com outros...), que lhe desse uma prova de amor. Foi com 15 anos que isto aconteceu. Como eu gostava dele e achava que ia ser o meu marido, que ia ser o pai dos meus filhos, dei-lhe a prova. Entreguei-me a ele. Conclusão: passados três meses de isto [relação sexual] ter acontecido, recebi a notícia de que morreu afogado. Entretanto, conheci o Zé. "Eu devo estar parva! O outro morreu-me há três meses e eu já estou apaixonada por outro... Ai Senhor."

Interessou-se logo por ele?
Sónia - Acho que foi amor à primeira vista. Quando o vi, adorei-o logo. O Zé atrás de mim. E eu não queria dar parte de fraca, queria fazer-me difícil.

Interrompo o relato para perguntar à Anabela: acredita no amor à primeira vista? Alguma vez viveu uma coisa parecida com este sentimento fulminante?
Anabela - Não. Mas acredito que exista. Tenho um lado cínico em relação a mim própria. No caso da Sónia, se calhar [ela sente o que sente] porque o marido está constantemente a partir. Há na relação deles, e nas Caxinas, uma coisa muito presente: a morte. Toda a gente aqui já perdeu alguém. O ir embora e o regressar... É um misto de sensações que permite esta intensidade.

O homem está sempre a partir sob ameaça. Concorda que as relações são mais intensas por isto?
Sónia - Se vivesse com o meu marido todos os dias em casa, se calhar não era tão intenso. No domingo à noite, ele vai para o mar. Chega à sexta-feira. Só estamos dois diinhas juntos. É tão pouco... Aproveitamos para nos mimarmos. Sou sincera: adoro o meu marido. Mas aqueles calafrios na barriga, os pés a tremer quando passava por ele já não sinto. Agora é diferente. Sinto que é o meu braço-direito, o meu apoio. Admiro-o.
Anabela - Eu sempre tive relações longas. [Volta-se para Sónia] Nunca te disse isto. Uma de quatro anos, outra de sete e outra de nove. Só tive três pessoas. Quando se está todos os dias com uma pessoa, desleixamo-nos, estamos de qualquer forma e feitio. A Sónia, ao fim-de- semana..., devias contar. As mulheres das Caxinas preparam-se para eles.

Conte. Fale da preparação.
Sónia - Digo que vivo em função dele. Ao fim-de-semana, penso em limpar a casa toda, pôr tudo bonito, uns lençóis novos. Tenho necessidade de lhe dizer que sou uma mulher limpa, asseada. Para que, ao chegar a casa, se sinta bem. Que se sinta orgulhoso de mim, como eu me sinto dele. Os nossos filhos: sou mais eu que os educo. Quero que diga: "A minha mulher dá-lhes uma boa educação." Não é dizer "sim, sim, sim" aos filhos - embora hoje seja difícil dizer não. Acabamos por lhes facilitar a vida. As nossas coisinhas são devidas aos filhos. "Estás a deixar o Zé Pedro [filho mais velho, de 17 anos] sair muito. A Sofia [filha do meio, 14 anos] tirou muitas negas" - lá está, são os namoradinhos desta idade. "O Francisco [filho mais novo, de quase quatro anos] está um mimalho, um birrento."

É uma mãe e uma mulher (uma esposa e amante...
Sónia - É mesmo assim que me sinto. Esposa quando se deve ser esposa. E no quarto, vale tudo. [riso])

É uma mãe e mulher diferente do que foi a sua mãe?
Sónia - Eu imito a minha mãe. Não vejo isso, mas as pessoas dizem-me: "És igualzinha à tua mãe." Na maneira de falar, no peixe, na vida. Muito trabalhadeira. A minha mãe também teve três filhos.

A relação que tem com o seu pai é muito diferente?
Sónia - É. O meu pai também andava no mar durante a semana e eu dava-me mais com a minha mãe. Dantes, dizia-se assim: "De quem gostas mais? Do pai!" O pai nunca estava em casa. Quando vinha, era Deus. A nossa mãe cascava-nos [batia-nos]. Eu não casco, mas chamo à atenção. Eles até gostam mais do pai. Nós, mulheres, chegamos a uma altura em que percebemos as mães e damos o devido valor à mãe - que não dávamos quando éramos crianças. Claro que amo muito o meu pai, mas a minha mãe é o meu ídolo.

Teve com a sua mãe uma relação de intimidade, contava-lhe as suas coisas?
Sónia - Não. Tanto é que namorei oito meses com o Zé e resolvi, antes de acontecer alguma coisa com ele, contar-lhe a verdade. A minha mãe não sabia. Foi depois [dessa revelação] que a minha relação com o meu marido começou a ter altos e baixos. Estivemos quatro meses separados, muito sofridos. Reatámos e namorámos dois anos. Depois foi para a tropa e estivemos zangados oito meses. Quer dizer: ele queria ver se me esquecia, e não conseguia.

Não conseguia lidar com o ciúme?
Sónia - Não conseguia casar com uma mulher que não fosse virgem. Há 20 e tal anos, isto era muito importante. E era um segredo meu. Quando lhe contei, toda a gente ficou a saber. A minha mãe... Tive de dizer porque é que acabei - melhor: porque é que ele acabou comigo.

Sentia, e esse era o sentimento da comunidade, que uma mulher ficava desonrada, se não chegava virgem ao casamento?
Sónia - Nesse tempo, sim. Eu sentia que aquele era um problema muito grave. Quando veio da tropa, fizemos as pazes. Disse-lhe que só acreditava que era para valer se casássemos. "Está bem. Vamos ao padre." Estava a subir as escadas do padre e nem acreditava que íamos marcar o casamento! [riso]

Coincidência: toca a sino neste instante, na igreja ao lado da sua casa.
Sónia - Vou explicar como é que me pediu em casamento. Fomos para a Senhora da Saúde, tirou um ramo de flores da mala do carro com um cartão a perguntar: "Queres casar comigo?"

O que é que aprendeu sobre o amor olhando a sua mãe? Tendemos a esquecer que o primeiro exemplo que temos do que é o amor e um casamento é o que temos em casa, com os nossos pais ou com os cônjuges dos nossos pais.
Anabela - A minha mãe, que tem 63 anos, poderia ter este discurso que ouvimos na Sónia. Na aldeia dela, no interior de Portugal, em Serpins, perto de Coimbra, se uma mulher fosse vista a dar um beijo num rapaz pressupunha-se que tinham tido sexo. Portanto este é um discurso que eu reconheço. A minha mãe só teve um namorado, o meu pai. Estão juntos até hoje. O meu pai é apaixonado pela minha mãe. Ainda hoje a abraça. Mais ele a ela do que ela a ele. Independentemente do que possa ter feito, tenho a certeza de que a ama. Tenho à minha beira (como se diz no Norte) este exemplo. O meu primeiro namorado: andávamos de mão dada. (Nem o contabilizo. Foram três, tirando esse.) O meu pai sentou-se à mesa, muito sério, a perguntar se era para casar. Tinha 16 anos.

Onde? Qual era a geografia e o contexto?
Anabela - Em Lisboa. Nasci em Lisboa mas tive uma educação parecida com a da Sónia. Conservadora. Falar sobre sexo? [para Sónia] Tu, quando casaste, ias grávida. Casar de barriga... Toda a minha vida foi controlada para evitar [casar de barriga]. Isto é uma forma de controlar a sexualidade da mulher.

Usemos as palavras que se usavam: uma mulher era uma puta ou não era uma puta se tivesse sexo antes do casamento.
Anabela - E nenhum homem queria ter uma puta. Era a mulher que tinha uma capacidade de sacrifício e não se entregava a outro. Era a maior prova de que, no casamento, era ele o pai [dos filhos que viessem a ter]. (Estudar Psicologia deu-me um bocado cabo da cabeça.

Completou o curso?
Anabela - Cheguei ao quarto ano e desisti. Sempre quis ser actriz. Na minha família ninguém achou graça. Estudei Psicologia porque achei que podia perceber melhor quem eu era, quem é que os outros eram e as personagens.) Eu tinha 21 anos e não podia sair de casa. Uma vez cheguei às nove e meia da noite e foi um drama. Tenho a capacidade de chegar às Caxinas e imprimir rapidamente o que a Sónia me está a transmitir porque vivi tão fechada dentro de mim...

Qual foi o seu primeiro grande gesto de rebeldia?
Anabela - Vivíamos numa vivenda. Abria o portão e ia ter com o meu vizinho, o Miguel. Não ia fazer nada de especial. Andávamos de bicicleta. A minha irmã gémea, que é também actriz, a Margarida, ficava na janela a olhar para mim e a abanar a cabeça. Com ar de censura. Nunca gostei de me sentir presa. Andei num colégio de freiras, [em regime de] externato. Estava fechada em casa e no colégio.

Nunca pensou fazer uma vida fora das Caxinas, do mar? As suas irmãs são uma cabeleireira, a outra esteticista.
Sónia - Aparecem as duas no filme. A Livinha e a Vânia.
Anabela - Uma está a lavar-me a cabeça. (Posso fumar aqui?
Sónia - Podes. Traz o cinzeiro.) O meu mundo é este. O meu pai sempre teve barco. Chamava-se Três Sorrisos. Desde os 15 anos que ando no peixe com a minha mãe.

Porque é que quis ir para o peixe?
Sónia - Porque adorava o que a minha mãe fazia. Quando a minha mãe teve a Vânia, que faz dez anos de diferença da Livinha (o nome dela é Maria do Alívio), teve bronquite. Com a doença, fui eu para o peixe com a minha tia Isabel. Depois conheci o meu marido, que era pescador e trabalhava no barco do pai. O meu sonho era comprar o Marta Sofia...

De onde vem o nome?
Sónia - A minha sogra mandou três nomes para baixo [Lisboa, para registar]. A Direcção-Geral das Pescas mandou dizer que tinha sido aprovado Marta Sofia (que é o nome da minha cunhada).

Por que é que perseguia o sonho de comprar o Marta Sofia?
Sónia - Gostava de ser mestra. Pelos cinco anos de casamento, ficámos sócios dos meus sogros. Trabalhávamos tanto, nós dois... Não gastávamos dinheirinho nenhum. Ao fim-de-semana, lavava cabelos na minha irmã, botava tintas. Vendia ouro. Andava nestas coisas para angariar dinheiro.

E agora vive numa casa imensa.
Sónia - Conseguimos, graças a Deus. Com muitos sacrifícios. De há dez aninhos para cá, estou muito bem.

Explique melhor porque é que gosta de ser mestra. É um trabalho duro. E representa lidar continuamente com a possibilidade da perda.
Sónia - De Inverno, só quando o barco está atracado ao cais é que a gente dorme em sossego. Vou para a cama a pensar: "Ai o meu menino está no mar. Ai Senhor, trazei-o sempre a salvamento."

"Senhor, trazei-o sempre a salvamento" é um pedaço de uma oração?
Sónia - Sim. Quero ter pensamentos positivos, mas há sempre receios. O nosso barco, em dias de temporal, é uma casquinha de noz no mar. Rezo a Nossa Senhora, especialmente.

Nossa Senhora de Fátima ou Nossa Senhora dos Navegantes?
Sónia - Nossa Senhora de Fátima. Foi a Nossa Senhora de Fátima que me deu o meu marido. Pedia: "Concedei-me a graça de casar com este homem. Se me concederes, vou a Fátima a pé." No primeiro ano de casada, fui. Agradecer o marido. Custou muito, mas foi uma experiência lindíssima. Ele foi lá buscar-me..., nós dois amarrados... Na Páscoa, o Senhor vem às casas. Disse ao meu filho [mais novo]: "Vem o Senhor a casa, temos de ter tudo limpinho." Respondeu: "Pede antes para vir a Maria." Vê-me sempre a rezar a Nossa Senhora... E tem a imagem de Jesus com o sangue [a escorrer]. Tem medo.

Nunca teve vergonha do avental? Há um momento no filme em que uma das mulheres que trabalham consigo fala disso. A mãe ia buscá-la à escola de avental e ela envergonhava-se. A mãe respondia: "É o avental que te dá de comer."
Sónia - A mãe da Cassilda era uma senhora mais de idade. Ia de avental à escola. A minha mãe nunca foi assim. Acho que as pessoas de Lisboa têm uma imagem [errada] da peixeira. Que falam mal [dizem palavrões], discutem alto, vivem mal. Se vir aqui nas Caxinas, há muitas mestras (o [João] Canijo escolheu-me a mim, mas há muitas) que não são assim.
Anabela - Elas cuidam-se mais do que nós. Os maridos vêm e estão impecáveis.

A Sónia tira as luvas e tem sempre as unhas impecáveis.
Anabela - Uma vez vi a Paula ou a Cassilda [que trabalham com Sónia] a trabalhar sem luvas e decidi experimentar. Fiquei com as mãos todas cortadas.
Anabela - Depende do peixe. Se for polvo, não tem mal. Bem, o polvo suja as unhas...
Anabela - Elas, se não for o gelinho [aplicação de gel], não conseguem ter unhas de jeito.
Sónia - As minhas irmãs fazem questão que esteja sempre bem. Não era para mostrar para o filme. Aliás, eu não fiz um filme. Simplesmente mostrei quem sou. Só não gostava muito quando me diziam: "Conta aquela história..." Contava dez vezes.
Anabela - Nunca repetiste dez vezes. Só foi preciso repetir [por razões técnicas]. Filmámos numa semana. O João viu as gravações que fiz durante um mês [com uma pequena câmara]. Pediu-me que, em determinadas cenas, levasse a Sónia a contar novamente uma coisa.
Sónia - Repetir-me duas ou três vezes..., não saía com o mesmo entusiasmo.
Anabela - Com uma câmara à frente, as pessoas ficam nervosas.

Havia muitas mestras, disse. Sentiu-se escolhida?
Sónia - Senti. Primeiro não queria. Depois o meu marido disse: "Faz. Vais ver que te sais bem." Foi na Páscoa de há um ano. Estava tudo em arrumações.
Anabela - Fenómeno estranho no casting: a maioria das mestras, quando estavam com os maridos ao lado, não tinham hipótese de falar. Eles calcavam-nas. E elas estavam sobretudo preocupadas com a imagem que queriam dar das Caxinas. A Sónia, não.
Sónia - Ela disse: "Vou gravar a conversa, mas não te preocupes." Disse que o segredo de ser esposa é ser compreensiva. É, quando ele chega do mar, acarinhá-lo (""Mor, deixa lá, não apanhaste peixe hoje, apanhas amanhã"). Nada de estar com beiço.
Anabela - Está a ver esta generosidade? Fala da vida dela como se fosse um livro aberto. Naturalmente teve dificuldade em fazê-lo para a câmara.

A Sónia faz do marido o centro da sua vida. Ela não fala das carências dela, das dificuldades. Conforta as dele.
Anabela - Todas as outras mulheres que entrevistei têm essa atitude. Se eu não tivesse feito um estágio de um mês, vivendo com a Sónia, o João Canijo faria um filme sobre Caxinas apanhando o cliché.

No filme fazem uma caminhada junto à praia. A Anabela sugere que tomem um sumo de laranja na esplanada e a Sónia recusa, porque o marido está no mar.
Sónia - Disse-lhe: "Estás perdida? "Tadinho, está no mar. Não vou estar eu feita baronesa a passear." Posso ir ao Norte Shopping, dar uns passeios com os meus filhos, saio com as minhas irmãs à segunda-feira, quando têm folga. Não é que não possa fazer coisas. Eu é que não me sinto bem comigo própria.

Por que é que não se sente bem?
Sónia - Imagino que o rapazinho está a trabalhar.

O rapazinho que idade tem, já agora?
Sónia - O rapazinho tem 40 anos. A minha obrigação é estar em casa com os nossos filhos. Disse à Anabela: "Já viste o que é, passam aqui os meus sogros e vêem-me de perna alçada a tomar um sumo de laranja?" Não fica bem a uma mulher.
Anabela - A minha mãe diz exactamente a mesma coisa.

Não se permite ter uma vida boa, confortável, quando ele está a passar por uma provação?
Sónia - Eu tenho uma vida muito boa. O meu marido, o que ganha entrega-me. Eu é que faço a gestão da casa.

Outro cliché das Caxinas: que as mulheres é que controlam o dinheiro.
Sónia - Somos nós que comandamos a casa. Orgulho-me de vender bem o peixe. Ele liga-me, sei a pesca. Ligo para um comprador, para outro. Quem der mais 50 cêntimos, mais um euro... Em 500 quilos, são 500 euros. "Zé, fizemos tanto. Esta marezinha rendeu muito."
Anabela - Elas permitem que eles sejam os machos de antigamente.
Sónia - Já não é tanto.
Anabela - Mas ela é que o serve. Também são só dois dias por semana, e não custa nada, não é?
Sónia - Se forem quatro ou cinco, são servidos da mesma forma. O tempo não tem deixado os pescadores andar toda a semana no mar. Desde Outubro. Dão duas ou três marés por semana e vêm embora. E tenho sempre uma sobremesinha, um bilhetinho, um elogio.
Anabela - São os reis da casa.
Sónia - Tínhamos uma casa, mudámos de casa. Ele só quis entrar nesta quando tinha tudo pronto. Não escolheu nada. Móveis, televisões. Sou um bocadinho gananciosa. Tenho uma coisa e quero ter outra.

Por que é que é assim?
Sónia - A minha mãe ensinou-me a ser assim. O meu marido quer ter o dinheiro todo para comprar uma casa. Acanha-se. Eu, tendo metade, já quero a casa. A minha mãe diz: "Anda, que a mãe ajuda. Bota-te."

Seria possível ter um rei em casa? Ter o motor da sua vida fora de si?
Anabela - Hum. Os maridos, antigamente, devolviam as mulheres à casa dos pais quando elas não sabiam cozinhar. "Ensine-a, que ela vem mal ensinada." Tenho aversão a cozinhar, coser, a tudo o que é associado ao papel da mulher. Somos escravas disso! "Por que é que sou eu que tenho de cozinhar, coser? Não tens cinco dedos nas mãos?"
Sónia - Sabes porquê? Porque tu não amas. Quando tu amas, fazes isso tudo com gosto, com satisfação.
Anabela - Mas eu já amei. Ele é que cozinhava. Cozinhava muito melhor do que eu.

É isto que Caxinas tem de bonito e ela não percebe porque não se vê de fora.
(Sónia - Nunca saí das Caxinas. Só fui ao Algarve duas vezes. E a Benidorm. Quando estou de férias, estou cheia de saudades das Caxinas. Faz-me falta aquele sistema de vida: vou para o peixe, venho do peixe.)
Anabela - Caxinas é uma comunidade fechada sobre si própria, apesar de ter o porto perto. O chão onde põem os pés é consistente. A dúvida não se instala. A Sónia é feliz a vender peixe. Entrevistei uma que era muito deprimida, porque o marido não era bom mestre. A Sónia teve estas sortes todas.
Sónia - O meu marido entrega-me o peixe e confia em mim. Detesto quando diz: "Não rendeu nada a maré, "nina"."

Em resumo, o barco vem todos os dias a terra, e todos os dias a Sónia tem de vender o que ele pescou.
Sónia - Vem se tiver peixe. Pelo menos quatro vezes [por semana] a Aveiro vamos. Se as pesquinhas forem boas, vamos todos os dias. Ele telefona. Vem dar-me um beijinho à lota e bota-se a descansar, para sair outra vez às oito, nove da noite.

Descansa em casa?
Sónia - Não. Descansa no barco.

Tem medo que alguma coisa corra mal? Parece tão confiante...
Sónia - [voz muito séria] Tenho. O meu maior medo é perder o meu marido. [voz embargada] Nem quero pensar nisso. Pensamento sempre positivo! À entrada e à saída da barra, liga-me sempre. Benze-se. "Até amanhã se Deus quiser." No mar não tem rede nem rádios. A gente já viu aqui grandes naufrágios. Aparece um corpo - tudo a correr para a praia. Passado um dia ou dois, aparece outro. O enterro: as mestras aos gritos. Nas capelas: os camaradas. A gente vive aquilo. Mesmo horrível.
Anabela - A morte está muito presente nas Caxinas. Nos cafés há sempre fotografias de pessoas que morreram.
Sónia - Caxinas é falada quando há naufrágios.

Outro tipo de medo: que ele se apaixone por outra. Tem? Que a Sónia se apaixone por outro?
Sónia - Eu, não. Acho que vou ser sempre feliz. Mas tenho medo que ele se apaixone por outra ou que me deixe. Na minha família houve um caso. A minha irmã era casada há 15 anos, eram superfelizes e, de repente, ele arranjou outra e deixou-a ficar. O meu maior desejo, neste momento, é ver a minha irmã feliz. Somos as três muito unidas, não somos, Anabela?

Não identificou, à cabeça, medos relacionados com os seus filhos.
Sónia - Drogas e isso: tenho medo.

E da ruína?
Sónia - Não. Dantes vendíamos o polvo a cinco euros o quilo. Agora vendemos a dois euros. Em Espanha está tudo um caos. (Espanha, normalmente, é que nos levanta o peixe.) Tenho medo de que ninguém nos levante o peixe. Mas o meu maior medo é o que possa acontecer ao meu marido.

Alguma vez foi ao mar com ele? Para ver como é.
Sónia - Nunca. As mulheres só vão de uma barra para a outra. Para andar um bocadinho de barco. Mesmo assim, nunca quis. O meu filho tem quase 18 anos e está a tirar a carta de mestre, mas não quero que vá para o mar. Pai chega! Os pés, lá, não são seguros. Ai.
Anabela - Tudo o que depende dela - não tem medo. O mar - não pode controlar. Do que tem medo é da morte.

Pressupõe uma grande confiança nela própria. Com quem é que aprendeu a ser assim?
Sónia - É de mim. A minha mãe sempre viu o lado positivo das coisas. Apesar dos acidentes. O nosso barco já foi à praia, já teve atrasos. Nem quero saber o que as outras pessoas dizem. Conto com o apoio do meu marido. Não me pode ver triste. Este ano, nos meus anos, estava feita chorona. Não sei o que se passou comigo. Mandou-me flores. Nem achei as flores bonitas. Parecia mais uma coroa que se dá aos mortos. Se digo: "Estou gorda" - esse tipo de coisa da mulher - responde: "Estás tão linda!" Se ele morresse, não tinha ninguém que me quisesse. Ele bota-me sempre no auge.

Anabela, falemos dos seus medos. No filme, a olhar para uma pequena câmara, como quem anota num diário, fala das suas inseguranças. Mostra-se vulnerável.
Anabela - Aquilo não é exactamente o que sinto. Mas quisemos, [o João Canijo e eu], trabalhar a questão da segurança, da confiança em mim própria. No fundo, não somos tão diferentes assim, a Sónia e eu. O meu maior medo é a morte. Não minha, mas das pessoas que amo. Nem tenho grande medo de falhar como actriz - é inevitável que aconteça.

As questões resumem-se a: sou amada, não sou amada; sou competente, não sou competente; sou reconhecida, não sou reconhecida. No filme, vendo continuamente o valor da Sónia, interroga-se: "O que é que eu valho?"
Anabela - Para me tornar na Sónia, no filme, para me tornar uma "mulher de rasgo", que era o nome que a Sónia propunha...
Sónia - É o Amor é por causa da música do Zezé di Camargo. Nas gravações das comunhões dos meus filhos, baptizados, uso o É o Amor. [canta] A Anabela achou isso tão fofinho que também quis pôr no filme.
Anabela - Esta é uma história amor. O amor do João Canijo que estava aqui sem ganhar um tostão. Por amor a nós, ao filme, à profissão. A história de uma actriz que tem trabalhado no duro, a tratar de vacas, porcos [Mal Nascida], a trabalhar numa casa de alterne [Noite Escura], a viver no bairro Padre Cruz, a trabalhar num cabeleireiro [Sangue do Meu Sangue]. É o amor desta mulher pelo homem e pelos filhos, pela profissão.
Sónia - Eu achava mais bonito [o título] Mulheres de Rasgo. Nós de avental. Rasgo quer dizer habilidade. Sem medo. Mas em inglês não dava.

Falaram sobre o amor de maneira aberta. Não falaram de sexo. E pouco de tristeza.
Anabela - Não estava à espera que ela fosse contar o que sofre com a separação da irmã. É uma anormalidade, aqui. De sexo, fala abertamente. As mulheres, em Caxinas, deitam-se com os maridos domingo à tarde. Para que eles vão de barriga cheia.
Sónia - Ao domingo não passeamos. Ao domingo, o meu dia é: levantamo-nos, vamos tomar o pequeno-almoço à padaria, depois vamos à missa (às vezes com filhos, outras vezes sem); almoçamos fora. Três horas, três e meia, cama! Sinto-me na obrigação de o satisfazer. E ele a mim!, pelo amor de Deus. Mas mesmo que não me apeteça... Às vezes não apetece. Nem gosto muito dessas coisas.
Anabela ? Ela não é muito sexual.
Sónia ? Tenho de ser. Isso é muito importante no casal.

Está a dizer isso porque uma mulher honesta não gosta "dessas coisas"?
Sónia - Não é por aí. Mas às vezes não me apetece. Ele vai para o mar, coitadinho. Tenho de fazer o meu papel.

Nunca falou de sexo com a sua mãe?
Anabela - Não.
E do amor, fala com ela?
Anabela - Também não. Falamos de todas as banalidades possíveis e imaginárias. Não forço conversas que sei que vão mexer com ela. Se calhar sou um bocado solitária.

Dêem-me uma definição de amor. A primeira que vos ocorrer.
Anabela - Não consigo encontrar. Na poesia, é quase sempre sofrimento. Na vida, não tem de ser sofrimento, não é? Ela sabe explicar porque é mais resolvida do que eu.
Sónia - Amor é respeito mútuo. Coração a palpitar. Corar quando se vê a pessoa que se ama. Sacrifícios, sem dúvida. Agradar-lhe em tudo ou em quase tudo. É fazer o melhor possível.
Anabela - Gostava que alguém me dissesse o que é.

Por Anabela Mota Ribeiro, hoje, no Público

quarta-feira, abril 24, 2013

segunda-feira, abril 22, 2013

domingo, abril 21, 2013

Miguel Esteves Cardoso e Maria João Pinheiro. O meu amor.


Achava que ia chorar. Tinha chorado tantas vezes a ler crónicas do MEC para a Maria João, pela Maria João. Tinha dado comigo tantas vezes, como tantos, a torcer pelo amor deles, pela vida dela. Achava que ia chorar. Só me ri. Porque o amor, quando é, é alegre. Mesmo se depois comove. Acabei de ler a entrevista terrivelmente comovida. O amor, quando é, comove. Tanto.

Casaram-se em 2000 e dizem que se tornaram no casal Schmoopy do Seinfeld, um casal ultra-irritante, em que um termina as frases do outroNo princípio era o verbo e ele escreveu-lhe uma carta "desonesta", a convidá-la para fazer a locução de uma série de peças radiofónicas de Samuel Beckett. Ela viu-o uma vez na televisão e soube que queria casar-se com ele.


MEC já escreveu que O Amor É Fodido. Vivia em Lisboa, em sofrimento, à beira de uma síncope. Tinha graça, juventude, hordas de seguidores. Agora está na fase de achar Como É Linda a Puta da Vida (novo livro que colige crónicas dos últimos anos). Este é o tempo da Maria João, da vida em Colares, de achar que nesta puta (que é a vida) cabem os pássaros e os cães que se ouviram durante a entrevista. E o sol que incomodava os seus olhos claros. Ela sempre foi quem é. Radiosa. Um dia, disse-lhe que ele podia estar calado

A história desta entrevista tem um ano.

Eu queria entrevistar o MEC com a Maria João. Se eles não topassem, podia ser só com o MEC (ele falaria da Maria João). Mas com a Maria João é que era. Porque ela é a vida da vida dele. O retrato seria outro. Então veio o cancro. No cérebro. Depois do da mama. E quando se suspirou de alívio, ele pediu-me que lhes desse tempo para estar. Tempo para estar era uma coisa que o MEC não se permitia antes da Maria João. E cujo sentido aprendeu. Passaram umas aves, umas ervas de cheiro, reflexões sobre a escolha, a liberdade, o tempo (tudo com letra maiúscula), os livros que lê, o neto António, as gémeas Sara e Tristana. Passaram muitos dias de um Inverno danado e já fazia sol quando nos encontrámos em Colares, para a entrevista.

[Miguel Esteves Cardoso (1955) vive "tão feliz da vida" com Maria João Pinheiro (1968) que não parece ser preciso mais nada. Casaram em 2000. Os dois explicam aos cínicos como é que isso é possível. Falam uma fala deles (além de falarem em português, a língua dos dois, e de o Miguel falar em inglês, a língua da mãe). Como se fosse uma música só deles.]

A Maria João é para si dream come true [sonho tornado realidade]...
Miguel Esteves Cardoso - É.
... ou é true come dream [realidade tornada sonho]?
É dream come true. Só que eu nunca sonhei que existisse uma pessoa como ela. Não é uma coisa que se consiga sonhar. Uma pessoa só consegue sonhar com aquilo que mais ou menos conhece, com os elementos de imaginação [de que dispõe]. A Maria João é real. É bom ela ser real.
Por isso perguntei se era true come dream.
MEC - Pois. Essa pergunta é boa. Eu sonho com ela, mas é sempre melhor quando acordo. É verdade.
Elabore sobre isso. Para perceber os movimentos, do sonho e da realidade.
MEC - Muitas vezes, quando uma pessoa sonha, ou tem um pesadelo, acorda e é um alívio estar na nossa cama. Muitas noites, muitas manhãs, acontece-me sonhar..., aqueles sonhos estúpidos ou menos bons. Acordo, e a Maria João está ao meu lado.
Na canção, os The Platters cantam: You"re my dream come true, my one and only you. A variação, o true come dream, faz que se olhe para a realidade com olhos de magia. Mas isso não é imediato.
MEC - Não, não é. Ela tem os olhos mágicos.
Maria João - Tu é que tens os olhos mágicos.
MEC - O amor é isso: é ver que a pessoa que a pessoa quer e gosta é real. É real, é verdadeira, é humana. Passado tanto, tanto tempo... Sempre senti que a conhecia. Mas ela nunca me surpreendeu.

Como assim?
MJ - É porque sou previsível.
MEC - Ela é sempre maravilhosa. Vivia muito desconfiado nos, sei lá, nos primeiros meses e anos. Desconfiava de que ela tivesse uma Maria João verdadeira que não fosse assim mágica. Que fosse prática e muito diferente. Que houvesse - há sempre - uma pessoa escondida dentro dela. Mas não. Não há.
Para si, o Miguel começou por ser um dream come true? E foi sempre este Miguel?
MJ - O Miguel é uma pessoa. Uma pessoa maravilhosa. Um tesouro.
Isto está a ficar conversa cor-de-rosa.
MEC - Os casais que se zangam e as pessoas sozinhas vão achar isto muito irritante.
MJ - Ficam furiosas.
MEC - Tornámo-nos no casal Schmoopy do Seinfeld [na série, os dois elementos do casal estão sempre a chamar Schmoopy um ao outro]. O casal ultra-irritante, em que um termina as frases do outro.

Maria João, conte como foi para si.
MJ - Foi conhecer a pessoa mais generosa, perfeita, bondosa. A alma mais pura.
MEC - Devíamos dar mais entrevistas. Eu nunca ouço isto. Estou inchado. Se achavas isso antes, por que é que não disseste?
MJ - Desculpa! [gargalhada]
MEC - Se eu soubesse que era tido em tão alta conta...

Comecemos do princípio. Quando é que o conheceu? Quando é reparou nele? Quando é que o quis?
MEC - Escrevi-lhe uma carta. Uma carta desonesta.
MJ - Eu já o conhecia.
MEC - Uma carta a convidá-la...
MJ - Já o conhecia, não o conhecendo.
MEC - A convidá-la para fazer a locução de uma série de peças radiofónicas do [Samuel] Beckett. Em português. Ela era terapeuta da fala e tinha uma voz óptima.
Como é que era a carta?
MEC - Fiz muitos rascunhos, muitos rascunhos. E não sei quê. Tudo no computador. Depois revi tudo muito cuidadosamente e escrevi a carta à mão.
MJ - A carta era linda.
MEC - Copiei à mão. E se me enganava ia buscar outra folha. Num papel muito impressionante. Um papel americano que mandei fazer de propósito.
Por que é que quis que ela dissesse os textos de Beckett?
MEC - Não, eu queria era conhecê-la. [riso]
MJ - Era um truque.
Costumava vê-la na televisão (Maria João apresentava a meteorologia na SIC)?
MEC - Só na televisão.
MJ - E viste-me uma vez a dançar, não foi?
MEC - Sim. E fiquei como nunca fiquei antes. Fiquei assim toinggg. Parecia extremamente feliz. E eu: "Ah!!" E luminosa. Risonha. Como se fosse um prémio. Sabe?, um prémio. "Aqui está a tua sorte." Senti uma ausência de dúvida. Eh pá. Só queria que fosse minha.
MJ - Mas não me falou.

Uma ausência de dúvida. Que ela ia ser sua? Que era ela?
MEC - Não. Que era ela que eu queria. Nunca sonhei que pudesse tê-la.
Está a fazer género. Já era "o" MEC. Podia ter todas as mulheres que quisesse.
MJ - Exacto.
MEC - Não. Eu escrevi a carta o melhor que podia escrever. Depois vim a saber que ela também tinha desígnios sobre mim.
MJ - Pois tinha. Uma vez estava a ouvi-lo na televisão e disse: "Eu vou casar-me com ele. Eu tenho de me casar com ele." Não fiz nada para me casar com ele. Mas casámos.
Era casar. Não era namorar ou ter um caso.
MJ - Não. Eu - princesa - vou casar-me com ele.
Coisa definitiva? Princesa que encontra o seu príncipe?
MJ - Foi mesmo assim!
MEC - É assim todos os dias. É disgusting [nojento].
O pretexto do Beckett...
MEC - Foi o mais crível que encontrei (por ela ser terapeuta da fala e ter boa voz). E porque o Beckett tem-me ajudado muito nestes anos. E é o maior escritor de sempre. Gostei muito de traduzi-lo. Ele ajudou-me a traduzi-lo. Era um projecto interessante, de qualquer maneira.
MJ - Podíamos fazer, ainda.
Tinha escrito a Beckett e ele tinha respondido.
MEC - Sobre o trabalho. Entretanto, sei (estou a ler as cartas dele) que respondia a todas as cartas que recebia. Todas, todas, todas.
MJ - Como Freud. Em 24 horas, estavam no correio.
MEC - Já viu? Os grandes, grandes homens, e as grandes, grandes mulheres, a Virginia Woolf, respondiam a todas as cartas.
Vocês respondem a cartas?
MEC - Eu não.
MJ - Infelizmente.
MEC - O Beckett, mesmo quando estava a ficar cego, respondia. A mim respondeu-me muitas vezes. Tenho cartas de todas as moradas para onde ele ia.
Quando respondeu a primeira vez...
MEC - Eu estava na universidade, em Inglaterra. Não estava nada à espera que respondesse.
Como é que era a letra dele?
MEC - Pequenina. Muito incerta. Depois mostro-lhe. Escrevia em cartões onde estava impresso Samuel Beckett, em cima. Muito cordial. A agradecer o interesse no trabalho dele. Atencioso. Muito prático.
A sua letra é como? Como era a letra da carta que mandou à Maria João?
MJ - Bonita. Muito bonita.
MEC - Era uma letra de antes do computador. Nesse tempo escrevia à mão. [mostra a letra num Moleskine]
É uma letra muito bem desenhada. Perceptível.
MJ - Esta é uma letra descontraída.
MEC - Quando eu quero, faço mesmo bem.

Retomando a pergunta: jogava com Beckett, o seu autor mais precioso, como se fosse um amuleto? E ele tinha-lhe respondido, no passado.
MEC - Isso não disse. Não usei isso. Seria um bocado... Também só soube há pouco tempo, há duas ou três horas, que ela tinha guardado a carta.
MJ - Tenho as cartas todas.
À antiga.
MEC - Pensava que ela se tinha esquecido.
MJ - Há muitos bilhetes, muitas coisas que estão espalhadas pela casa. Mas essas cartas estão juntas.

O Miguel tinha um protagonismo social, e sobretudo mediático, diferente do seu (ainda que também aparecesse na televisão). Como é que olhava para ele? Uma coisa é idolatrar uma pessoa, que tem muita graça, que é um génio, que revolucionou o uso da língua portuguesa - todas as coisas que se dizem do MEC. Outra coisa é ser o true de que falávamos no começo da entrevista. Ser uma pessoa de verdade.
MJ - Eu achava-lhe muita graça como escritor. Mas desde o primeiro momento estive com ele como se está com uma pessoa. Nunca como ídolo.
Ele não teve de descer do pedestal?
MEC - Ela nunca teve medo nenhum de mim. Ou respeito ou coisa assim. Nunca pensou: "Se calhar estou a dizer asneiras."
MJ - Nunca. Eu vejo a alma dele.
Nessa altura, o Miguel ainda achava que a inteligência, a graça espirituosa eram os atributos mais atraentes numa pessoa?
MJ - Quando me encontrou? Já tinha desistido [disso].
Tem fama de ser sobredotado. É interessante perceber o que é que uma pessoa tão inteligente procura nos outros.
MJ - O que é que ele viu em mim?
Pode também pôr assim.
MEC - É a mulher mais bonita que alguma vez vi. Era linda de morrer e podia ser uma víbora. Era uma mulher linda, linda, linda e isso já era suficiente.
Era suficiente?
MEC - É suficiente. É uma beleza bem-disposta. Não sei explicar.
Foi o sentido da alegria o que mais aprendeu com a Maria João?
MEC - Não é uma beleza frígida ou distante. Ou fechada. Não é uma beleza indesejada. É vaidosa. É uma beleza que sabe que é bonita.
MJ - Achas?
MEC - Acho. E isso combinado com ser uma giraça. (Já não se usa esta palavra.) Ela enche a vista. Apela a todas as coisas que existem em mim enquanto homem.
Não respondeu à questão da inteligência.
MEC - Fiquei muito surpreendido quando vi que ela era muito inteligente. Não é justo, mas ela tem um sentido de humor fabuloso, terrível, até, mais perverso do que o meu.
Tenho de prestar atenção. Ela gosta de ser cortejada. Se sente que não é... Aí é que vem a fera. Aí é facas.
O que é que achava que ele via em si?
MJ - Amor. Amor. Era a coisa que lhe faltava e que ele encontrou em mim, e eu nele.
MEC - Foi amor desde o princípio. Amor e encantamento. É muito, muito fun [divertido], isto. O tempo era sempre pouco, como é pouco ainda. Não temos tempo, embora estejamos quase sempre juntos.
Como é que não sentem fastio? - perguntam-se certos casais, neste momento de língua de fora.
MEC - Não sei. Há casais que se fartam um do outro. Mas se calhar, esses, nunca gostaram um do outro. Nós mantemos a fasquia... (Eh pá, este termo é horrível. Nunca o usei na minha vida.
MJ - Não uses.)
MEC - Nós, à mínima coisa, ou se ela estiver a olhar para outra coisa, fico cheio de ciúmes. Faço uma cena. Também é preciso ter atenção a qualquer desvio ou decadência. Dizemos muito: "Tu dantes rias-te mais comigo. Tu dantes perguntavas mais o que é que eu pensava. Tu dantes falavas mais de ti." Todos os dias temos isto. Todos os dias há coisas de ciúme, de comparação com o passado, reconciliações (depois de eu quase ter tido um ataque cardíaco).
É um fiteiro, não é?
MEC - Não, não sou.
Isso do ataque cardíaco não é fita?
MEC - Não. Dói-me mesmo.
MJ - Espero que seja fita.
MEC - Há uma componente de fita, claro.
Têm sempre uma vigilância sobre a relação? Vigilância também não é uma boa palavra.
MEC - Mas é vigilância. [riso] As pessoas vão vomitar quando lerem isto.

Antes que as pessoas vomitem, vamos falar de quem eram antes de se encontrarem. Ficou outra pessoa, Maria João? Quase tudo o que sabemos de si, resulta das crónicas do Miguel. Aparece como musa e criatura dele.
MEC - Ela não mudou nada.
MJ - Ele também me inspira.
Dê-me coordenadas. O que é que é preciso saber de si?
MJ - Nunca pensei nisso assim. Era eu. Era uma pessoa que gostava de viver e de divertir-se e de aprender.
O que é que foi importante na sua vida? O sítio onde nasceu?, os pais que teve?
MJ - Os pais, a família, os amigos.
MEC - Ela tem uma coisa de azar. Antes das doenças [o cancro], teve outras doenças. E de cada vez que gosta de uma coisa, essa coisa deixa de ser fabricada.
MJ - Desaparece.
MEC - Está sempre à espera do pior.
MJ - Sou o beijo da morte.

"Sou o beijo da morte" parece um título de Nelson Rodrigues. Que já me ocorreu há pouco. Outro título do escritor brasileiro: "Pouco amor não é amor".
MEC - É mesmo. Quando as coisas acontecem, ela não está surpreendida. E daí vem o sentido de humor. Um humor muito, muito negro. Eu próprio fico chocado. Há nela uma aceitação, um venha lá, pronto.
Dêem um exemplo. Um pouco de negrume, aqui. Senão isto fica muito cor-de-rosa.
MEC - Mas o cor-de-rosa também é uma cor. [Esse humor negro] é sempre uma coisa do momento. Ela não se reprime. É uma pessoa muito liberta, até pelas circunstâncias da sua vida. De ter sido pequenina, mais nova do que as irmãs. Muito criativa. De ter brincado sozinha. Com a autorização dos pais, via os filmes todos que queria. Uma grande liberdade. E por isso diz tudo. É desconcertante.
Sempre teve confiança em si? Falemos das coisas que importam.
MJ - É mais uma liberdade, e depois logo se vê, do que uma grande confiança em mim. Também tenho inseguranças.
MEC - Acho que não. Que não tens muitas inseguranças.
MJ - Achas? Está bem.
MEC - Ela queria ser ainda mais... Não sei. Ainda mais ela. É aquela coisa narcísica.
MJ - Qual?
MEC - Aquela: tu gostavas de ser ainda mais tu.
MJ - Mas eu sou eu.
MEC - Gostavas de ser ainda mais um bocadinho.
Expliquem lá isso.
MJ - Ele está a dizer que eu gosto de quem sou e que queria ser ainda mais eu. Também não temos muita escolha, não é? Temos de ser nós.
MEC - Eu não era eu. Ela ensinou-me isso. Ensinou-me muito bem a estar à vontade. Eu estava sempre a fingir que era outra coisa que não era. Estava sempre muito ansioso. Muito show off. A tentar disfarçar. Sempre muito malà"laise [pouco à vontade, inadequado]. Sempre a querer fazer graças ou a ser o palhaço da turma. Divertir as pessoas à força. Uma coisa desesperada para que gostassem de mim. Era um trabalho. Detestava.
O trabalho era...?
MEC - O trabalho de ser simpático, de divertir as pessoas. Tenho isso desde pequenino. É uma insegurança: não pensar que as pessoas podem gostar de mim só por eu ser eu. Que posso estar calado. Ela disse-me. "Podes estar calado. Não precisas de estar sempre a não sei quantos."
MJ - Disse-lhe: "Podes descansar."
MEC - Descansei muito. Descansei. E as pessoas não deixaram de gostar de mim. Grande lição.

Quando falou do percurso da Maria João, falou do sentido da liberdade. Que nela pareceu fácil. Mas que não é fácil.
MEC - Pois não.
O Miguel, parecendo ter todas as condições para ter essa liberdade, não a tinha.
MEC - Era totalmente reprimido. Muito reprimido. Muito inseguro. E muito falso. É a palavra.
Estava sempre a ser "o MEC"? A ser o boneco.
MJ - Ele exige muito dele próprio. [Divertir os outros], fá-lo mais por bondade, até.
MEC - Agora não faço. Agora é muito melhor. A minha mãe sempre me disse que não me importasse com o que os outros pensavam. "Who cares?" [que importa] Mas nunca aprendi o que a minha mãe dizia.
O que é que dizia o seu pai, que era português?
MEC - O meu pai dizia a mesma coisa. Que não éramos obrigados a gostar uns dos outros. Nem dos irmãos nem dos pais. Tínhamos o direito de formar uma opinião, ou de gostar, ou de não gostar. Podíamos não gostar da nossa mãe ou do nosso pai. Ele também não gostava do pai dele. A minha mãe também não gostava do pai dela. Isso era a liberdade de gostar. Nós só tínhamos de estar com as pessoas de quem gostávamos e conversar com as pessoas com quem queríamos conversar. O meu pai fugia das pessoas de quem não gostava. Fugia mesmo, fisicamente. Saía da sala. Eu, não sei porquê, não sei se foi do colégio inglês ou de qualquer merda, quando comecei a ficar popular, e a fazer desenhos, como era muito bom aluno, compensava sendo desobediente, fazendo troça. Não sei se foi isso que me deu um gosto pelo poder. E uma maneira de os outros miúdos gostarem de mim.
MJ - Para não te marginalizarem por seres tão bom aluno.
MEC - Diziam-me: "Faz lá..." E eu fazia. E imitava os professores. Depois vim a saber que a Maria João também fazia isso.
MJ - Só que o fazia sozinha.
MEC - Faz caricaturas, expressões perfeitas, desenhos. Como eu fazia. Essa necessidade [de agradar, de ter graça] era uma coisa que me incomodava. Ficava cansado.
MJ - Exausto.

Sentiu-se amado quando era pequeno?
MEC - Amado? Sim. Muito amado.
Tinha uma grande ideia de si mesmo?
MEC - Então não? Estava convencidíssimo. Percebi muito cedo. Uma pessoa tem uma grande ideia de si mesmo aos três, quatro anos, quando começa a ver o que se divertem os adultos. "Isto funciona!" Dizer aos quatro anos: "Vou ser isto, vou ser aquilo", e as pessoas ficavam encantadas.
O que é que dizia?
MEC - "Vou ser um grande escritor."
MJ - Com quatro anos, disse à mãe que não ia ter tempo.
MEC - Não foi aos quatro.
MJ - A tua mãe diz que foi. "Nunca vou ter tempo para fazer o que tenho de fazer."
MEC - Também disse: "Jamais serei um membro do público." Nunca. Isso com três ou quatro anos. "A member of the public."
Ou seja, não estar na audiência. Quis estar em cima do palco e não a ver da plateia.
MEC - Sim. Não ver televisão, mas sim aparecer na televisão.
Gostava da sua mãe e do seu pai?
MEC - Hum. O meu pai. O meu pai já morreu. Se gostava muito do meu pai? Muito. Claro.
Muito? Claro? Acabou de dizer que o seu pai e a sua mãe não gostavam dos pais que tinham.
MEC - Amava muito o meu pai. Amava-o. Mas ele mostrava-se inteiro. Não escondia. Conheci o meu pai, conhecemos todos, inteiramente. As coisas más e as coisas boas. Porque ele fazia-as todas à nossa frente. Os exageros. Os ciúmes paranóicos da minha mãe. As grandes melancolias.

Sem ciúme não há amor, dizia o Nelson [Rodrigues].
MEC - E é verdade. Portanto eu amo o meu pai como quem ama uma pessoa que conhece bem. Ele tinha coisas nada boas. A minha mãe também tem coisas nada boas. Eu também. Toda a gente tem coisas nada boas. E isso é que é o amor. Eu não idolatro. O meu pai, se calhar, empurrou-me demasiado, quando eu era pequenino. Conforme as notas. Se não tivéssemos 20, ficava chateado. Já o pai dele tinha feito o mesmo com ele.
O que é que fazia o seu pai?
MEC - Era arquitecto naval, mas trabalhava nas pescas. Ele também foi o melhor aluno e não sei o quê. O irmão dele... Pronto. Não interessa. O que interessa é que são pessoas overachievers [que superam as expectativas]. A minha mãe levava-me livros aos quadradinhos colados debaixo do tabuleiro, quando eu estava a estudar. [riso] Estava sempre a dizer assim: "You"re going to destroy this child" [vais destruir esta criança]. E o meu pai a explicar-me Química. Até às duas da manhã, três da manhã.
E queria lá saber da Química...
MEC - Ficava apaixonado. Ao princípio chorava, porque não percebia.
MJ - Ele interessa-se por tudo. Se de repente pensar que vai estudar o ar condicionado, estuda-o completamente.
MEC - Ou sobre esgotos. Li agora um livro sobre esgotos. Começo a perceber que as cerâmicas são porosas...
Interessa-lhe apreender o funcionamento da máquina, qualquer máquina?
MEC - Tudo é interessante. Toda a gente é interessante. Tudo é interessante saber. Há paixão em tudo.
Sentiu que era educado para ser overachiever?
MEC - Sim. Sempre no over, sim. O meu pai também era muito exagerado. Muito exagerado. A Maria João ensinou-me a pensar sobre mim. Eu nunca pensava sobre mim próprio. Achava que era uma perda de tempo.
Nem uma psicanalisezinha de trazer por casa?
MEC - Eu queria ser psicanalista quando tinha 11 anos. Ela [aponta para Maria João] é da psicanálise. Eu li a Psicopatologia da Vida Quotidiana [de Freud], em português, quando tinha 12 anos. Apanhei uma pancada de Freud aos 13, 14, 15. Depois reprimi o desejo de ser psicanalista.
MJ - Achou que a Filosofia era incompatível.
MEC - A Filosofia é sobre as coisas todas e toda a gente. Eu queria saber coisas que eram verdade para toda a gente. E desinteressei-me do indivíduo.
MJ - Depois voltaste.
MEC - Voltei um bocadinho, agora, quando ela começou a psicanálise e os seminários de psicanálise. Voltei a ler Freud. A maneira efervescente como escreve, o bem que escreve... Reapaixonei-me pelo Freud, pela psicanálise, por casos. Os livros do Adam Phillips, do Stephen Grousz...
MJ - Tenho-os aqui.
MEC - Você também é mais da psicanálise, não é?

O que interessa: partiu do indivíduo para o colectivo para agora afunilar novamente no sujeito individual. Isto depois da Filosofia Política, em que se doutorou. Mesmo quando lia Freud na adolescência, não era para olhar para si próprio. Era para saber. Só agora é uma coisa mais introspectiva?
MEC - Sim. Só agora. Porque quando uma pessoa vive com outra, a outra faz reparos.
MJ - Faz com que tu te ouças.
MEC - Basta a Maria João dizer: "Estás a ouvir-te a ti próprio?" Ajuda muito.
MJ - Fazemos os dois isto.
MEC - Sim, ela também tem umas pancadas.
O amor pode ser ainda mais pancada que a psicanálise. No caso da Maria João, é um dois em um: um amor e uma psicanálise.
MEC - [riso] Um amor e uma psicanálise é bom.

Quer contar um bocadinho da sua história?
MJ - [em surdina] A minha história não tem interesse nenhum.
Todas as histórias têm interesse. E todos os psicólogos recebem pacientes que dizem que as suas histórias não têm interesse nenhum.
MEC - Há um psicanalista português muito bom - não vou dizer o nome -, que diz no livro dele - também não vou dizer qual é - que, quando os pacientes dizem que não têm interesse nenhum, têm sempre razão.
MJ - Normalmente, normalmente, o que os pacientes sentem corresponde à verdade. É mais assim.
A sua história não tem interesse nenhum ou é uma maneira esquiva de dizer que não quer falar dela?
MJ - É que eu já fiz a minha análise. Já disse tudo.
Como foi o seu percurso?
MJ - Primeiro estudei terapia da fala e depois Psicologia.
MEC - Quis estudar Psicologia e foi três vezes rejeitada.
MJ - Por causa dos testes psicométricos.
MEC - Entrou. Sempre trabalhando como terapeuta da fala com crianças com trissomia 21.
MJ - Não. Com várias deficiências.
MEC - A trabalhar muito.
MJ - A ganhar muito mal.
MEC - No ISPA [Instituto Superio de Psicologia Aplicada], o curso era muito bom, com muita estatística...
MJ - Era um curso bom. Aprendia-se bastante.
MEC - Acabou. Sempre com o sonho de seguir psicanálise. Está há dois anos a fazer psicanálise quando aparece o cancro.
O cabrão do cancro, como lhe chama nas crónicas.
MEC - O cabrão do cancro. No cérebro.
MJ - [suspiro] Isto não falando do resto. Da mama. De tudo.
MEC - E aí interrompeu. Foi há um ano. Mas passou o primeiro ano do seminário da APPSI [Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica].
MJ - Consegui voltar, tendo faltado aquele tempo em que [baixa o tom de voz] fui operada.
MEC - É um seminário fabuloso. Foi renovado há dois anos e tem agora um fulgor, um entusiasmo gigante. Ela tanto perseverou que está perto do sonho dela, que é ser psicanalista.
MJ - Psicoterapeuta psicanalista.

O que é nos pode dizer do que diz ao psicanalista?
MJ - Posso dizer quase tudo. Agora, ficar aqui a falar de mim, é que não...
MEC - Ao psicanalista, ela diz tudo. Tem de dizer tudo o que lhe passa pela cabeça.
Tem ciúmes do psicanalista?
MEC - Tenho. Tenho, claro. Por aquilo que ele sabe. Mas tenho muita admiração por ele. É mesmo um herói meu. Uma pessoa sábia e generosa. Está a fazer um esforço gigante pela psicanálise verdadeira, freudiana. É o prof. Frederico Pereira. É da escola francesa; de repente, com 60 anos, começou a ler todos os psicanalistas da escola britânica.
MJ - Tu não sabes o que é que ele leu.
MEC - Está bem. Mas leu. Ele gosta mesmo de ler. Eu já vi livros sublinhados por ele. Uma pessoa vê muito bem quem lê pelos sublinhados que [a outra] deixa. [vira-se para Maria João] Que é que tem? Isto não é uma revelação.
Tem ciúmes de a Maria João ter um interlocutor tão íntimo, é?
MEC - É. Ele faz psicanálise à séria e ela também é uma analisada à séria. Pronto. Uma pessoa tem de lidar com isto. Fez-lhe muito bem, a psicanálise. Não existe isto de estarem duas pessoas sozinhas, uma a ouvir outra, durante 50 minutos. Sem máquinas, sem coisinhas, sem tarefas.
Por que é que não quis fazer?
MEC - Agora, gostava de fazer.
Como é que isso não lhe ocorreu estes anos todos?
MEC - Tinha medo que destruísse a coisa criativa. Aquele medo foleiro. Ou que descobrisse alguma coisa que não queria descobrir.
Achava, por outro lado, que a escrita tinha um lado psicanalítico, catártico?
MEC - Não. Tinha medo. E ter medo é uma forma de ter respeito. Tinha medo, por exemplo, que me pusesse feliz. E que essa felicidade fizesse com que...

Abramos um parêntesis para isto: as pessoas dizem que o velho MEC é que tinha graça.
MEC - Sim, é verdade.
Que esse é que era insubordinado e rebelde. E infeliz (à luz do que está a dizer). Agora fala da abóbora e dos primeiros dias de sol.
MJ - Ele continua a ser rebelde.
MEC - Sou muito, muito menos rebelde. Eu tinha graça porque era muito, muito novo. E há uma altura para ter graça. Também me rio com as coisas que escrevi.
Sentia-se (olhando agora) o ratinho que anda na rodinha, zumba, zumba, zumba, sem parar?
MEC - Nunca senti.
E aí o objectivo era ser competente, ter graça, animar a plateia.
MEC - Animar a plateia, sim.
MJ - Talvez fosse mais um desejo de corresponder às expectativas, não? Com a coisa da infância.
MEC - Não sei. O Vicente Jorge Silva, que me ajudou imenso, que me ensinou imenso, dizia que não me conseguia ler. Porque eu tinha um tom cabotino. Está muito bem apanhado. Eu era cabotino. Muito look at me [olhem para mim].
MJ - Ora aí está. Eu nunca tive qualquer dificuldade em lê-lo.
MEC - Não é preciso uma pessoa esforçar-se tanto. É a lição.
Vicente Jorge Silva estava a falar de outra coisa - dos textos. A Maria João nunca teve dificuldade em ler a alma do Miguel. A alma aparecia nos textos?
MJ - Aparece em tudo o que ele faz.
MEC - Deus queira, não é?
MJ - Em tudo o que diz, pinta, escreve.
Deixou de ser look at me e deixou de ser ansioso?
MEC - Era look at me na [relação com a] língua portuguesa. Não sabia escrever. Tive de aprender a escrever português bem. Agora sinto que consigo escrever bem. E que não é preciso - nem consigo - ter essa graça. Não tenho essa coisa de ahahah, de rir de tudo.
MJ - Mas tens imensa graça.
MEC - Agora reparo na graça das coisas.
Sem drogas e sem álcool. Está mais no seu osso, em quem é. E sem precisar de subterfúgios.
MEC - Sim. Mas o álcool nunca me afectou, nunca teve um efeito deprimente ou eufórico sobre mim. Bebia durante o dia, mas não era um bêbedo. Era mais uma companhia.
MJ - Ele tem paz.

Numa crónica recente falava do Serviço Nacional de Saúde. Falou de como ele lhe valeu. Em Inglaterra, quando nasceram as suas filhas gémeas. E, aqui, quando salvou a Maria João e, antes disso, o salvou a si de morrer.
MEC - Duas vezes. E a segunda vez foi muito caro.
Houve momentos na vossa vida em que o grande demónio esteve à vossa frente. A pergunta que parece banal: o que é que se aprende nessas situações?
MJ - Aprende-se... Diz tu.
MEC - Diz tu.
MJ - Aprende-se a não ficar muito tempo distraído na vida. Distraímo-nos e vivemos como se a vida tivesse um tempo infantil - de não acabar nunca. E não aproveitamos as coisas ao máximo. Às vezes, se não aproveitarmos ao máximo, também não interessa.
MEC - Sabemos que vamos ter saudades destes tempos aqui. De quando estávamos bem, e nos podíamos mexer, e ficar aqui à conversa.
MJ - [Sabemos que] isto acaba sempre mal.
MEC - Sempre. Acaba na velhice e depois na morte.
MJ - Na melhor das hipóteses.
MEC - Isto é o que se aprende. Era escusado aprender isto. As pessoas dizem que o mais importante é a saúde e que tem de se dar valor a não sei quê. É o que os padres dizem. Demos graça... "What? What the fuck...?" [o quê? por que raio?] Demos graça? "Não temos nada. Por que é que havemos de dar graça?"
E também se aprende a confiar nos médicos, nos enfermeiros, nas assistentes, no sistema. O sistema funciona. Está lá para apoiar. E os outros doentes... Não queira saber. É mesmo surpreendente.
Que papel tinham as crónicas/declarações de amor que o Miguel escrevia para si?
MJ - Eram muito importantes.
Tinha o país inteiro a torcer.
MEC - O país inteiro... [tom de troça]
Os leitores do PÚBLICO e não só. Certas crónicas tornaram-se virais nas redes sociais.
MJ - Houve o "Acrescento de Milagre" [corrente pela cura da Maria João do MEC - página no Facebook]. "Nem o amor, nem a sabedoria médica a podem salvar. Só uma conjugação das duas coisas, mais um acrescento de milagre."
MEC - Foi ultra-importante. Animou muito a Maria João. Eu tinha desprezo pelo Facebook e fiquei maravilhado com o efeito daquilo. De pessoas desconhecidas tirarem tempo da vida delas para, sem nada em troca, torcer, torcer. Why?, porquê?
MJ - Ele levava-me o jornal quando eu estava no hospital.
Não lhe lia antes?
MEC - Ela gosta mais de ler antes. Mas eu gosto mais que ela leia no jornal, quando está impresso.
MJ - Ele levava-me o jornal, eu chorava que nem uma Madalena, e pronto.
MEC - Também aprendi que chorar é bom. Quando ela está a chorar...: "Não me interrompas! Estou a chorar." Nos filmes: "Agora que consegui começar a chorar, não me interrompas."
A tendência é dizer: "Não chores mais, já passou."
MJ - Chorar, ou seja o que for que a pessoa precisa de fazer.
MEC - Nos filmes, agora, já choro bem, nas alturas certas.
Já choram de forma sincronizada?
MEC - Quase.
Fale-me mais do pesadelo. Pensa nele? Ou parece que foi há muito tempo?
MJ - Penso nisso, penso.
MEC - Não é só pensar. Tem de se ir lá [IPO].
MJ - Tenho imensas consultas, exames para fazer. Se não pensasse nisso, se não estivesse atenta, estava morta. Há um ano, se não tivesse dado pelos sintomas (quase nada), não tinha ido ao médico. Não percebi que seria uma metástase do cancro no cérebro. Pensei que tinha tido um AVC.
Como é que se aprende a lidar com o medo?
MJ - Não se aprende.
MEC - Com o medo da morte não se aprende nunca a lidar.
Não baixaram os braços. Lutaram.
MEC - Não adianta lutar. Foram os médicos que fizeram tudo, com tecnologia da última década.
Todos os pacientes e médicos dizem que a força psicológica é fundamental.
MEC - Fundamental é a parte médica! Esta semana saiu um estudo gigante, de 20 anos [de pesquisa], que diz que [acreditar] não tem qualquer efeito sobre o desfecho clínico.
MJ - A psicologia importa, importa. Na fase da quimioterapia ajudou-me imenso. Se não fosse tudo o que é positivo na minha vida, se calhar eu não estava aqui. Se não fosses tu...
MEC - Não é verdade.
MJ - É verdade.
MEC - Não é verdade.
MJ - É verdade.
MEC - Isto é uma coisa clínica.
MJ - Não tinha resistido a muita coisa.
MEC - As pessoas tendem a pensar que o cancro é uma consequência do que comerem ou fizeram - tendem a culpabilizar-se. Mas não têm culpa. Às pessoas que morreram com cancro, o que é que vais dizer? Que não tiveram ajuda? Que não tiveram quem as amasse?
MJ - Não cura. Mas ajuda.
MEC - Li o novo livro do Julian Barnes. As pessoas detestam-no, mas eu gosto muito dele. A mulher morreu em 34 dias com um cancro no cérebro. Os capítulos sobre o luto explicam muito bem tudo.

Antes da Maria João, antes de...
MEC - Não há antes da Maria João. Temos uma regra. Não falamos do antes de. Nada! Eu não sei nada sobre o antes de mim.
Significa que não se fala de ex-namorados nem de ex-mulheres?
MEC - Nunca! Nunca. Nunca.
MJ - Qual é a finalidade disso? Temos mais que fazer.
MEC - Nem tenho curiosidade alguma.
MJ - Já sabemos o que há para saber.
MEC - Eu não sei nada. E é assim que quero que continue a ser.
MJ - [riso] Não há nada para saber.
MEC - O que eu souber magoa-me profundamente.
MJ - Mas não há nada para saber.
MEC - Ainda bem. Esta mentira sustém-nos aos dois: não há nada para saber. Acredito nessa mentira. É uma mentira que me convém. Pronto.
O que é que a Maria João acha disto?
MJ - [perdida de riso] Acho que é mentira. Isso que disseste. Tu sabes tudo o que há para saber.
MEC - Eu sei. Não quero é saber mais.
MJ - Não há mais.
MEC - Há os casais que acham que têm de dizer que conheceram não sei quantos. Tive este e tive aquela.
Antes da Maria João, depois da Maria João. O tempo passa a contar de uma maneira diferente. Como na infância conta de uma maneira diferente depois de sentirmos o medo.
MEC e MJ - Sim.
MJ - Há referenciais.
MEC - É muito importante essa coisa do medo.
Mas eu ia perguntar outra coisa. Estávamos a falar de morte e de desistência. Antes da Maria João, alguma vez teve vontade de desistir?
MEC - Sim, tive. Tive uma vontade de morrer, grande. De suicidar-me. Li sobre o assunto.

Pensou suicidar-se e leu sobre o assunto?
MJ - Claro que ele leria sobre o assunto.
MEC - Não queria magoar-me, nem que me descobrissem, nem não sei o quê. Esse é o lado prático da coisa. Mas depois. Isto é absurdo, mas é verdade. As minhas filhas já tinham nascido. E comecei a escrever uma carta de despedida. Pensei: escrevo primeiro o nome da minha mãe ou das minhas filhas? Fiquei chateado. Parecia que dava uma ordem às pessoas mais amadas. Então decidi fazer um círculo. Ficou uma coisa tão hippie... A sério. Eh pá. E caí na..., why not live [por que não viver]?
Era um círculo ridículo e no cúmulo do ridículo pus os nomes todos à volta. Mesmo assim havia uma hierarquia. Umas posições eram melhores do que outras. Norte, sul... "Porra, não há nenhuma maneira..." Quis escrever o nome das pessoas de quem gostava. Vi que eram tantas...
O que é que o estava a fazer desistir? Por que é que estava tão triste?
MEC - Estive dois anos assim. Muito, muito deprimido. Com as janelas todas tapadas de preto. Foi a seguir à morte do meu pai. Não teve nada a ver com a morte do meu pai.
Como é que pôde não ter?
MEC - Uma pessoa aproveita também o luto para sofrer. Uma pessoa começa a sofrer e esse sofrimento abre uma brecha qualquer e vem a depressão que já lá estava. Deve ter sido em 1995. Ainda vivia [no apartamento] das Águas Livres [em Lisboa]. A minha mãe morava ao lado e disse-lhe que só precisava de um garfo, de uma faca, de uma colher. Tirei tudo da casa.
MJ - Quando eu me mudei, ainda havia cortinas pretas.
MEC - Passava os dias a ler. Mas já não era ler normalmente. Era ler a Economist, o Financial Times (de que não gosto), depois de ler todos os outros jornais e revistas. Lia sobre finanças, o nome dos colaboradores, os anúncios. Depois fui ao [Alexandre] Castro Caldas. É sempre ele que me salva. Já o vi funcionar com o meu pai, com a minha mãe. Tem um discernimento muito grande. Disse assim. "O que vamos fazer é perder peso. Com o Prozac, tem a vantagem de perder uns quilos." Eu já sou um bocadinho acelerado. Tomei aquilo. Fiquei brbrbrbrbr, assim eléctrico. E deixei de tomar, ao segundo-dia. Com medo. E depois comecei a ficar bem. E começou a levantar o negrume.

E depois apareceu o anjo Maria João. Estamos a dar, como no título do livro, no Como É Linda a Puta da Vida.
MEC - Foi mesmo isso. Foi nesse ano que conheci a Maria João.
Teve, antes do Miguel, uma depressão funda, um período de pouco amor à vida?
MJ - Não.
MEC - Ela é sobretudo muito bem-disposta. Muito, muito bem-disposta. Muito, muito boa companhia. As pessoas da minha geração, os meus amigos, a matilha, divertíamo-nos muito. Mas não estava habituado a rir-me com uma rapariga.
Tiveram, durante estes anos, momentos de quase ruptura, em que parece que não há dia de amanhã? Momentos em que já não se suportam nem têm paciência para o outro.
MEC - Nunca passámos por isso. Nem perto.
MJ - A coisa mais perto disso foi pensar que não haveria dia de amanhã porque eu não estaria cá.
MEC - Eu tenho é medo de perdê-la. Que um dia acorde e diga: "Olha, isto foi muito bonito, mas..."
MJ - Que lata. Eu alguma vez faria uma coisa dessas? Achas?
MEC - Podes fazer. Sempre que ela muda... Ela gosta muito de um pão. Depois detesta esse pão. Então penso: "Ai, ai" [dito num tom grave]. É muito volúvel nas coisas de que gosta.
MJ - Não sou nada. As coisas perdem a qualidade e desaparecem. Ele não perde a qualidade.
MEC - Mesmo com as pessoas: há pessoas de quem gostas muito e depois deixas de gostar. E pessoas de quem não gostas e de quem passas a gostar.
MJ - Posso ficar enfurecida com alguma coisa, zangada, danada. As pessoas normalmente percebem (quando fico).
MEC - Mostra sempre.

Se isto não fosse uma entrevista e não tivessem de responder às minhas perguntas, gostariam de falar de quê?
MEC - Eh. Hum. Nunca fui a um conselheiro matrimonial, mas é engraçado falar de nós e falar da Maria João através de uma terceira pessoa.
Nelson Rodrigues tinha um consultório sentimental (por falar em falar em conselheiro matrimonial). Usava o pseudónimo Myrna.
MEC - Devia ser por causa da Myrna Loy.
O Vinicius de Moraes também chegou a ter. Mas por pouco tempo. Chamava-se Helenice.
MJ - Temos de fazer um!
MEC - Na entrevista, esteve sempre a separar-nos. Ela e ele. "Pera aí. Para mim é mais: "E vocês?"
MJ - Não é psicótico.
Os conselheiros matrimoniais falam da importância de cada um manter a sua individualidade.
MEC - Ah, mas eu estou dependente. Não tenho a minha individualidade, já.
MJ - Oh, então? Claro que tens.
MEC - Só o bocadinho que é preciso.
Ele é uma espécie de filhinho?
MJ - Não. É uma espécie de marido. [gargalhada]
Às vezes parece um miúdo. E vocês não têm filhos juntos. Olha para ele como uma criança que pede a sua aprovação e amor?
MEC - Não! Era o que faltava. Levava um estalo. [gargalhada]
MJ - Estalo? Violência doméstica?
Voltando à psicanálise. E à infância. E aos papéis que se ocupam.
MJ - Há muitos mimos. Que faltaram. Que não faltaram. Que continuam a fazer falta sempre.
MEC - Achas que me faltaram mimos quando eu era pequenino?
MJ - Não, não.
MEC - Eu era muito mimado. A minha mãe gostava muito de mim. Ainda gosta.
Ela vai ler?
MEC - Vai, de certeza. Ela gosta muito e vai ficar toda contente.
MJ - Ela é muito querida.
Insisto na pergunta. O Miguel responde muitas vezes na vez da Maria João. Não sei se é assim em casa. De que é que lhe apeteceria falar se isto não fosse uma entrevista?
MJ - [silêncio] Não consigo pensar que isto não é uma entrevista.
MEC - Para si, esta é mais uma entrevista. Para nós, é mais um bocadinho. Somos muito fechados. Eu não estou habituado a dar entrevistas. É uma situação estranha, muito curiosa. Uma aventura para nós. Estamos um bocado excitados.
MJ - E eu estou um bocado tímida.
MEC - Com medo de dizer alguma coisa.
MJ - Algum disparate.
Doeu?
MEC - Não.
MJ - [com ironia] Estávamos preparados. Fizemos um treino.
MEC - Não treinámos nada. A verdade vem sempre ao de cima. Fora aquelas duas semanas com os amigos a fazerem de si.
Que perguntas é que esperavam?
MJ - Não esperávamos.
Pronto. Não há cereja em cima do bolo.
MJ - Oh.

Por Anabela Mota Ribeiro, hoje, no Público

sábado, abril 20, 2013

Susana Moreira Marques: Agora e na hora da nossa morte


"Foi mais fácil chegar do que será partir.

A morte começa muito antes de alguma vez adoecermos, sem sofrimento, sem drama, sem um acontecimento memorável.

Quando as pernas deixarem de andar, caminharemos pelas memórias. Quando as pernas deixarem de andar e os olhos deixarem de ver, caminharemos pelas memórias e estas serão nítidas. Quando as pernas deixarem de andar e os olhos deixarem de ver e os ouvidos deixarem de ouvir, caminharemos pelas memórias e estas serão nítidas e vozes esquecidas contarão tudo de novo.

A morte tem pouco de literário.

Todos vivemos em contagem decrescente, e é bom que não esqueçamos esta verdade.

E depois, o amor, grande sobrevivente do desastre."

sexta-feira, abril 19, 2013

quinta-feira, abril 18, 2013

António Mega Ferreira: Amor



"Algum dia eu haveria de entrar na normalidade dos que te amam. Amo-te. E dói escrevê-lo (que é pior, meu amor, do que dizê-lo). Amo-te, absoluta, impossível e fatalmente. E ouço, adolescente, uma música adolescente, para me lembrar de ti, porque lembrar-me de ti é lembrar-me que não consigo esquecer-te. E ouço música porque ouvimos música quando amamos, e tudo, no amor, é música, acústica da alma... que se quer ser devorada, e, neste caso, dor (tão deliciosamente insuportável) de amar sem sequência nem expectativa de contrapartida, amar unicamente o puro objecto que desgraçadamente amamos. Isto é uma carta de amor, e é possivelmente ridícula (prova maior de que é, realmente uma carta de amor), ou porque perdi o hábito de as escrever, ou porque nunca tive a coragem de as enviar.

Não percebes porque é que não te falo? Ainda não percebes que, na personagem que de mim eu enceno, não cabe a ameaça de uma derrota, a antecipação do desencanto, a sombra de um vexame? Não te falo, para não saber que o que eu te digo é apenas a forma contida de te dizer outra coisa, mas que essa coisa não é do teu mundo, nem do mundo que eu construí, nem do precário mundo que a nossa fragilíssima ternura mútua arquitectou. E tudo isto é literário, eu sei, mas – que queres? -, a literatura é o melhor de mim e é o melhor de mim que vive dentro da minha cabeça quando estou contigo.

E depois, afastamo-nos. Beijo-te a correr, não sei se já reparaste, e quase fujo, porque sair do pé de ti é regressar ao que não és tu, o teu olhar e as tuas mãos, a tua alma e a tua voz, e isso, meu amor, transformou-se no insuportável intervalo entre dois encontros.

Esta carta de amor é um excesso (e isso prova superiormente que é uma carta de amor): eu amo não a ideia de amar-te (durante muito tempo, eu julguei que era apenas isso), mas a ideia de perder-me no meu amor por ti. E mesmo amar-te é um excesso, porque tudo aconselharia que eu me limitasse a mitificar-te, que é a melhor forma de evitarmos enfrentar a realidade. Porque a realidade, aqui, é como uma dor difusa, tu sabes como é, um incómodo ainda não localizado, que progressivamente se vai definindo e acertando, até que, insuportavelmente nítida, a sua imagem se nos impõe como uma evidência. A minha dor é que eu comecei a amar-te, sem o saber, durante aquele breve período de tempo em que sair de casa era a promessa reconfortante de ver-te e falar contigo. Eu não sabia, repito, mas o tempo ajudou-me a definir essa pequena dor, tão secretamente pavorosa: cada vez que estou contigo (cada vez mais, meu amor, cada vez mais) é como se a minha vida se virasse do avesso. E é verdade, é cada vez mais verdade, que, quando penso nas coisas que ainda me falta fazer na vida, é em ti que penso. E tenho medo, como um animal que instintivamente foge do que sabe não poder atingir.

Eu penso em ti, ainda mais do que te digo, e tu estás em tudo, mesmo quando não te penso, tu és a grande razão, o horizonte sem nome que constantemente se desenha na minha imaginação de mim.

Há uns anos, este seria o momento de desmontar o discurso desta carta, de te mostrar os subtis mecanismos da alma e da máscara, de desdizer ironicamente o que já disse, de insinuar que, afinal,
as-coisas-talvez-não-sejam-exactamente-assim. Mas as coisas são exactamente assim, e a carta, que poderia transformar-se num confortável exercício paródico, é, inevitavelmente, uma agonia e um embaraço. Esta carta é um acto de puro egoísmo, que eu até talvez nem tivesse o direito de praticar.
É-te incómoda, necessariamente, e isso bastaria para que eu me abstivesse de a enviar, dentro de um envelope azul. Mas o azul fica-te tão bem, e as cores todas ficam em ti como tu ficas no mundo: exactamente.

Mas, repito: esta carta é um acto de puro egoísmo, é como se não tivesse destinatário. E, no entanto,
é preciso enviá-la, para que seja uma carta de amor, para que faça sentido como carta. Para que seja amor. Mas podemos imaginar uma saída elegante: para que possas conservá-la como pura carta de amor, quero eu dizer, sem o embaraço de saberes que ela te foi escrita por alguém que não amas, não a assino. Dou-te tudo: até a hipótese de esta carta não ter sido escrita por mim.

«(E não, esta carta não pode ter sido escrita por mim. És tu – em mim – que me faz escrever o que eu não escrevo. E isso é – de novo – o melhor de mim.)»"