Andamos perdidos pelas ruas da cidade até de madrugada. É sempre assim, mas continuamos a ser dois estranhos. Já não há bares abertos. Só o Big Ben. Vamos lá à procura dos travestis e das putas que prometeste voltar a fotografar. Mas nem eles (elas) povoam a noite. Pelo menos, a noite que conseguimos ver. Dizes que está mais frio do que o frio que realmente está. E dizes a tremer que o Porto é a Sibéria. E que tens saudades do Rio e de Buenos Aires. Do sol e dos banhos gelados. Também não há amendoins. Nem pipocas?, perguntas. Não, nem nada quentinho. Comes um pacote qualquer de qualquer coisa que não comias desde os 12 anos. E bebes o terceiro gin tónico.
Pareces um menino pequenino a falar com os homens carecas pousados no balcão. Eles dizem que ainda podiam estudar, se quisessem - mas não querem. E que também não querem trabalhar porque o rendimento mínimo deixa-os acordar às horas que lhes apetece e chega para emborcarem umas cervejas. Vais dizendo a tudo que sim com a cabeça. E pouco depois já dou contigo a apertar-lhes a mão e a desejar-lhe um feliz natal. Logo tu, que tens vontade de assassinar os bonecos vermelhos e gordos que nesta altura assaltam as varandas das casas quase todas.
Como sempre, contas catrefadas de histórias das tuas viagens: de Moscovo e da máfia que te salvou a vida para se declarar a seguir; de Barcelona, onde viveste até aos cinco anos, de Edimburgo apalpado de comboio, de Amesterdão. Da viagem cancelada a Paris e ao Congo, por razões diferentes. E a Cuba, para veres a morte de Fidel Castro a partir da praia. Como sempre, rendo-me às histórias. À paixão com que falas gesticuladamente de tudo. E tudo inclui sempre trabalho, as notas que escreves nos blocos para não te esqueceres das ideias, os locais que conheces desde sempre e para onde transportas depois figuras para encenações que, no início, só tu tens a certeza que vão funcionar.
Garantes que não és obcecado por isso, que não és refém das expectativas que existem sobre ti, mas reconheces que não te sobra muito tempo. Sobretudo muito tempo para estares presente ao lado de alguém. E que será por isso que agora perdeste o dinheiro do bilhete de avião e do hotel que nunca marcas com antecedência e do carro que nunca alugas, mas que desta vez quiseste marcar e alugar. "Como uma pessoa normal". É nesse momento que sei que estás mais triste do que aquilo que dizes estar. Mas tu desvalorizas. Dizes que só não vais porque está frio. E tu não gostas de frio. "É melhor pensar assim, não é?"
Leslie Feist do concerto que perdeste calou-se-se. "I don't need to know your favourite aunt's name; I don't need to know what woman's felt the same; I don't need to see you every single day; But I'd like to". Hoje sou o homenzinho e devolvo-te intacto ao hotel. Continuaremos a ser dois estranhos.
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