quinta-feira, novembro 16, 2006

"Começar a acabar" - Beckett


É quase sempre assim: João Lagarto não precisa senão de si próprio para fazer do teatro uma arte maior. Num monólogo, este rigor será mais flagrante. Em “Começar a acabar”, patchwork de textos de Samuel Beckett cozidos pelo próprio dramaturgo e escritor irlandês, com remissões para algumas das suas obras mais emblemáticas – Molloy, Malone está a Morrer, À Espera de Godot, O Inominável, Watt, A Última Gravação de Krapp e Endgame –, o actor, que também é responsável pela tradução e encenação, solta o último sopro antes de morrer.
Num cenário despojado, a luz pardacenta, o figurino gasto, as frases interrompidas, engolidas, a ferrugem do corpo, a expectoração, a ingenuidade dos velhos, a ironia e a auto-ironia indicam o caminho para o fim. Ele sabe que “em breve estará morto, finalmente”. Finalmente, porque a imagem que o espelho lhe devolve já não é a do homem “novo e esperto”, nem a do homem de “raivas repentinas” que lhe transformavam “a vida num inferno”.
O espelho confronta-o agora com a necessidade de ter alguém só para ele, alguém que lhe faça companhia e que finja que o ouve. Que ouça o peso dos dias que passava em frente ao mar a lamber pedras; os dias em que o pai garantia que ele é um “aborto”; os dias em que visitava a mãe, essencialmente para lhe pedir dinheiro. E ouça a carga arrependida dos dias em que preferiu a solidão a um eventual casamento.
São as questões de uma vida inteira a mordê-lo como uma matilha impiedosa que João Lagarto consegue traduzir no palco e sintetizar em pouco mais de hora e meia. As questões de “um indivíduo sempre alerta consigo próprio”. Um homem que poderia morrer hoje se quisesse. Se morrer não fosse demorado. Um homem sem ter onde depositar os seus gritos – como os outros todos. “O ar está cheio dos nossos gritos, mas o hábito é um grande amortecedor”.
A peça, que estreou há dois meses no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, está até domingo em cena, no auditório da Academia Contemporânea do Espectáculo - Teatro do Bolhão, no Porto. Assinala o centenário do nascimento do autor e tem música de Jorge Palma.

Sem comentários:

Enviar um comentário