domingo, julho 31, 2011

Miguel Esteves Cardoso: A calma de Agosto

[Paolo Roversi]

O amor é uma coisa muito estranha, que todos os dias nos acorda, depois de sonhos inequívocos, a lembrar-nos que estamos condenados à pessoa que amamos. E ficamos, por estarmos apaixonados, convencidos. Que o nosso inteiro coração, por estar ocupado por ela, está entregue a expandir-se ilimitadamente por causa disso, por uma só pessoa.

O amor - que foi, nalgum dia ou em qualquer outra vida que se teve, enquanto se estava distraído, uma prova de se estar vivo, uma maneira de chamar e de pertencer só para poder fazer parte da palavra - revela-se, ao ver-se tão feio e egoísta, uma prova de humanidade, que também dói.

Dói tanto o amor desencontrado como aquele que se encontra. Cada apoteose antecede um plano de fuga. Só os sentimentos de cada um, excluindo os outros (a começar por aqueles que têm os que amamos) conseguem concertar a emoção de que se foge e, ao mesmo tempo, na qual se encontra refúgio.

Amar antes de Agosto começar é como aceitar, de abraço aberto, o frio de Dezembro - e agradecer, apesar da desilusão do tempo que está, o conforto de saber que não é Inverno nem Outono. Há calma.

Em Agosto vai haver tempestades; vai chover; vamos ser confundidos tanto como o tempo consegue, presos ao passar das nuvens e ao azular do céu, surpreendidos e encantados, como se sob o efeito de um ilusionista.

O amor é como o ano. Agosto é como um dia. O tempo o amor começam enquanto continuam. É quando o amor continua que se está mais apaixonado.

Hoje, no Público

Rob Riemen: Nobreza de espírito. Um ideal esquecido


[Se este espaço pudesse ter a amplificação de um megafone, se pudesse ter luzes a acender e a apagar, se pudesse tranformar-se numa sirene, num alarme que chegasse a todas as pessoas de todas as casas, usá-lo-íamos para gritar, de minuto a minuto: este livro é obrigatório! Maravilhosamente obrigatório. E torna obrigatórios, logo à cabeça, Mann, Whitman, Goethe e Espinosa. Na impossibilidade de transcrever o livro inteiro, deixamos o início. Mas havemos de cá voltar muitas vezes. Até o termos partilhado todo.]

Não podemos planear os acontecimentos mais importantes da nossa vida - acontecem-nos. O dia em que uma amizade ou um grande amor nos visitam é imprevisto. Em momentos desses é como se - consciente do seu poder para avaliar o que é e não é realmente importante, o que ficará connosco para sempre e o que temos liberdade para esquecer - a alma humana autorizasse a parte de nós que recorda a registar cuidadosamente, com todos os sentidos activos, cada pormenor que a alma tornará ulteriormente seu. Os nossos cérebros são bons a registar datas e factos que podem ser esquecidos quando já não são necessários. Mas nada do que é bem guardado nos nossos corações alguma vez se perderá.

Pedro Bidarra: Maldita expressão


[O Expresso inaugurou, há uns meses, uma rubrica na Única chamada "Este mês a coluna a minha". Em cada mês, o espaço é ocupado por um convidado diferente, que escreve semanalmente o que lhe der na veneta. Abriu em mau, com Guta Moura Guedes, que aparentemente não tinha nada a acrescentar ao mundo, continuou em mau com um qualquer entendido em gastronomia, melhorou um bocadinho, mas pouco, e só pela piada que ela não consegue não ter, com Maria João... E pronto, assim de repente, é do que me lembro. Até porque às tantas comecei a saltar aquela página. Até ter chegado Julho, o mês de Pedro Bidarra, o criativo da BBDO. Partilho o que suponho ter sido o último texto dele para a dita rubrica, publicado ontem.]

"Vou mandar fazer o meu logótipo lá fora", "o gajo é top, estudou lá fora", "o ministro deve ser bom, fez toda a carreira lá fora", "porque é que não fazemos como se faz lá fora?"

"Lá fora" é uma expressão que se ouve em todo o lado cá dentro, é a expressão de uma maldição que corrói o espírito criativo e que ensombra toda a vida portuguesa, da produção artística aos sectores que dela mais distam, pois o espírito criativo não é da arte, é da vida e é a ela que faz falta. Quem não ouviu ainda esta maldita expressão? Como se a virtude estivesse sempre lá fora e o defeito cá dentro. Ó saloiice. O país, que importa tudo e exporta pouco, habituou-se de tal maneira a pedinchar que também importa soluções e pensamento.

As nossas inseguras elites ajoelham-se ao "lá fora", venerando o anglo-saxão, o espanhol, o francês e até o alemão. "Lá fora" vêem a luz, caem reverentes, desligam o pensamento e acreditam. É só fé, a fé dos complexados, dos wannabes, e por isso é raro ver um gesto original em Portugal, seja político, empresarial, social ou artístico, e por isso copiamos como se não tivéssemos cérebro, educação ou vergonha.

Quem perde é o país. É que a independência nacional depende da originalidade e se nada de original dermos ao mundo. nele não teremos qualquer utilidade como nação; seremos apenas um exemplo de irrelevância. Ora, um país que escolhe a imitação como modo de vida é um país pobre em originalidade e só rico em problemas cujas soluções não encontrará, pois o espírito criativo, o único capaz de as encontrar, definhou fatalmente.

Devíamos banir o "lá fora", que nos faz tanto mal. A maldita expressão devia ser banida dos debates, das discussões e das decisões - e quem a ela recorresse, para decidir ou apenas para argumentar, devia ser acusado de possidonismo intelectual e gozado (como pena). Talvez assim fossemos capazes de olhar cá para dentro e encontrar a energia da originalidade e da invenção, i.e, o espírito criativo"

sábado, julho 30, 2011

Manoel de Oliveira & Raul Brandão


Ainda não tivemos um filho e provavelmente nunca escreveremos um livro, mas já plantámos uma árvore. Duas, três, quatro. Uma oliveira, um limoeiro, um pinheiro e um medronheiro. Todas têm nome e significado. A oliveira é o Manoel (quase foi Germano - e ele merecia), homenagem ao realizador que nos comove. Vive lado-a-lado com o pássaro de pau que trouxemos de Viana num domingo de sol de Maio, partilha o espaço com a caveira de plástico que roubámos de Woodstock na véspera de Obama ganhar as eleições, o que, na altura, significou devolver-nos a esperança - nos políticos, no mundo, na humanidade, no futuro. O Manoel não é uma árvore cinematográfica, representa sobretudo o espírito das pessoas e das coisas que nunca, nunca deveriam morrer. É lição quando abrimos todos os dias a janela.

O Manoel, o verdadeiro, o Mestre, 102 anos de vida, anunciou esta semana que vai adaptar "O Gebo e a Sombra", de Raul Brandão ao cinema. O filme vai ser rodado em Paris, em Setembro, e falado em francês. Não percebemos o porquê do francês, mas tudo bem. Oliveira pode fazer o que quiser, e querendo fazer Brandão, o nome de baptismo do pinheiro, nome do nosso escritor-fétiche, escritor-obsessão, o nosso escritor maior, até podia fazê-lo em chinês. Contamos os dias para ver.

"O Gebo e a Sombra" é uma peça de teatro escrita em 1923, triste como só os livros de Brandão. É sobre a pobreza, como sempre, sobre a miséria, sobre a desgraça de ser honesto e roubado, de ser honrado e escarnecido, de mentir para manter um sonho - o sonho de morrer sem saber da verdade que dói. Sobre poupar o outro da dilaceração do desapontamento. É um livro magrinho e enorme. "Ou a vida é um acto religioso ou um acto estúpido e inútil".

Diz Gebo, personagem de outras histórias, sempre as mesmas angústias: "Foi tudo inútil? Sinto que todos precisamos de nos sacrificar. Então tu imaginas que eu não tenho também horas de dúvida? De uma tristeza inexplicável, quando ouço uma voz dizer-me baixinho coisas que não quero ouvir. Mas calo-as, finjo que não as ouço. É o meu dever. E teimo: tenho sido sempre um homem honrado, arrastei sempre esta cruz... Tu ouve-la? (...) Os outros estão ricos e eu estou pobre, por causa dos meus escrúpulos? Se soubesses o que isto me custa! O que isto me tem custado de gritos sem ninguém ouvir! Aqui entre nós nunca o contei a ninguém, nem talvez a mim mesmo. Não chores... Às vezes sinto-me tão pobre e tão triste! Vem-me um negrume, é mais que tristeza, é talvez a morte... Um homem deve ser honrado acima de tudo, o seu dever é ser justo e honrado ou é enriquecer?"

sexta-feira, julho 29, 2011

Fumo. Lume. Cinzas.


"Dói-me dentro dos olhos", disse ele. "Como se tivesse o coração na cabeça...."

quinta-feira, julho 28, 2011

quarta-feira, julho 27, 2011

Rui Tavares: Um mandamento para o século

A contragosto mergulhei na leitura das 1500 páginas Anders Breivik publicou antes de sair da sua quinta norueguesa para provocar explosões no centro de Oslo, dirigir-se ao acampamento de Utøya e matar a sangue-frio dezenas de jovens. A leitura reforçou a minha primeira impressão de que estamos mais perante um fanático do que perante um louco. O que ele escreve é arrepiante, muitas vezes mentiroso, mas ele sabe o que escreve e por que escreve, quando lhe é útil mentir ou não mentir.
Sabe também que palavras usar. Nunca diz que o seu opus é um “manifesto” (palavra que erradamente tem sido usada) mas um “compêndio”, ou seja, um conjunto de textos que pretendem abranger um tema. O compêndio dele tem pelo menos uma meia-dúzia de partes. Numa das primeiras, tenta explicar como o “marxismo cultural” tomou conta do Ocidente a partir dos anos 60. Noutra, tenta provar que demograficamente os muçulmanos dominarão a Europa. Até aqui, nada que não tenhamos lido no conservadorismo mais rebarbativo, com o mesmo manipular de dados e excitar de fobias. Noutra parte ainda, analisa em detalhe a lei canónica para demonstrar que é lícito aos cristãos usar da violência, matarem infiéis e martirizarem-se. Depois passa à explicação de como fabricar bombas ou que alvos atingir (universidades ou eventos literários onde se encontrem muitos “multiculturalistas”, por exemplo). Não entrarei em pormenores. Aquilo não é uma coisa incongruente, tendo em conta as intenções do autor. Aquilo é um vírus. Depois de preso ou morto, Breivik desejava contaminar o cérebro de outros como ele. Seria uma excelente surpresa que não o conseguisse.
Como responder? Escrevo aqui enquanto “traidor de categoria B” (na qual Breivik inclui “políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” a punir com execução e expropriação) e posso apenas dizer: não com prisões secretas, não com tortura, não com “rendições extraordinárias”, não com mais paranóia, não com discurso securitário, não com violação de privacidade a cidadãos não-suspeitos, não com interferências à liberdade de expressão, não com leis feitas à medida, não com estados de exceção, não com invasões de países, não com mentiras para as justificar, não com guerras de civilizações ou do que quer que seja. Não queremos nada disso, e não precisamos de nada disso.
Precisamos só de um mandamento para o século: não odeies. É simples. É para todos. É difícil. Não odeies.
Não me atreveria a propor amar o próximo, amar o teu irmão de outra religião — seria provavelmente considerado multicultural demais, relativista demais, efeminado demais, politicamente correto demais — e essas são as grandes vergonhas da nossa época, segundo parece. Então fica assim — como mínimo denominador comum, ao menos, poderemos acertar nisso? — não odeies. Não odeies o outro. Não odeies o seu erro se queres amar a tua verdade. Não odeies a sua verdade se queres amar o teu erro. É simples. Não odeies nada. Eu disse que era difícil. Não odeies sequer o ódio. O ódio quer ser odiado. O ódio deseja fervorosamente mais ódio. Tu, em resposta, não odeies — diz aos outros para não odiarem também — e pode ser que este século corra bem.
Hoje, no Público

terça-feira, julho 26, 2011

"Hay que ir más allá del multiculturalismo, que es un tipo de tolerancia, y avanzar en el diálogo, la curiosidad y el respeto"



Johan Galtung, sociólogo de 81 años, ha dedicado su vida a los estudios sobre la paz. Fundó el Instituto Internacional de Investigaciones sobre la Paz, con sede en Oslo, y es autor de decenas de ensayos sobre el tema. El viernes sufrió una doble conmoción: como noruego y como abuelo. Su nieta Ida, de 20 años, participaba en el campamento de la isla de Utoya. Ella se escondió y sobrevivió. Galtung cree que las ideas que hay detrás de la matanza están difuminadas por toda Europa y que es preciso confrontarlas, no ignorarlas, como explica por teléfono desde L'Alfas del Pi, en Alicante, su segunda residencia.

¿Qué consecuencias tendrá la masacre para Noruega?
En el paisaje político, pocas. Los partidos que hay no reflejan la ideología que ha llevado a este asesinato. Si alguien se presenta con los argumentos de Breivik allí, será rechazado. Como mucho, puede que reformen las leyes sobre compra de armas y fertilizante. Sin embargo, sí que se ha dado un golpe espiritual a esa autoimagen de país tranquilo. El enemigo está dentro de nosotros, y esa idea es difícil de procesar. Si hubiera tenido la piel oscura, habría habido una unión de todos los noruegos contra la inmigración. Sin embargo, sigo creyendo que Noruega es un país pacífico, pese a las sombras. Hay que confrontar el discurso de Breivik, entender cómo piensa. Las ideas son más importantes que él.

¿Y en Europa?
La solución fácil es psiquiatrizar lo ocurrido, ver a Breivik como un loco con una adolescencia complicada. Pero entonces se pierden las ideas que hay detrás de su acto, que están en el manifiesto que ha escrito y que están diseminadas por toda Europa, incluida España.

¿Cuáles son?
Que hay una guerra civil entre cristianismo e islam; que lo más peligroso para Europa es la multiculturalidad, que el islam penetre bajo el paraguas de la tolerancia. También propugna que hay que expulsar a los musulmanes pagándoles 25.000 euros y que, si no aceptan, hay que matarlos. Es como Hitler, pero con los musulmanes. Por último, habla del "marxismo cultural", al que considera traidor y que está encarnado por la socialdemocracia.

¿Algo ha fallado en Noruega para que suceda algo así?
La policía secreta. Está ciega de su ojo derecho, no era capaz de imaginar este tipo de amenaza.

¿Cómo debería reaccionar Europa?
R. Con diálogo. Hay que ir más allá del multiculturalismo, que es un tipo de tolerancia, y avanzar en el diálogo, la curiosidad y el respeto. El siguiente paso es el aprendizaje mutuo entre el islam y el cristianismo.

Hoje, no El Pais

segunda-feira, julho 25, 2011

Um homem novo (x3)


(Na semana em que os GNR editam Voos Domésticos, o álbum que assinala os 30 anos da banda, é uma boa altura para voltar a publicar um texto antigo -  é o meu tributo ao enorme, enorme, enorme Rui Reininho. Mesmo que Rui Rio, sem surpresa, o tenha vetado e banido da cidade.)

RUI REININHO É O ILUSIONISTA DESTE NATAL, MESMO SE NÃO GOSTA DA QUADRA E MENOS AINDA DE A USAR PARA EDITAR DISCOS. NÃO FOI PREMEDITADO, ACONTECEU ACABAR AGORA A COMPANHIA DAS ÍNDIAS, O PRIMEIRO DISCO A SOLO QUE NÃO É BEM A SOLO. "A SOLO SERIA EM CASA, AO PIANO, À PRINCE". É UM DISCO SEM OS GNR, MAS COM DEZ CONVIDADOS. TIRÁMOS BILHETE PARA UMA CONVERSA COM O HOMEM QUE DIZ ESTAR "A MEIO CAMINHO ENTRE O MAR E O DESERTO". SERÁ O PURGATÓRIO?



Procurar numa entrevista o Reininho destravado, desbocado, insolente dos concertos, o homem de punchlines precisas e esgares cínicos, a criatura que se despe em palco, rasteja, bamboleia, que mima o pé do microfone como striper num varão, que troca as letras dos poemas que escreve por apelos políticos, futebolísticos, pelo que se lhe atravessar na cabeça, é procurar alegria no fado - estará lá, mas não se vê, não se encontra. Mesmo que a conversa dure cinco horas. E cinco horas a ouvir Reininho, histórias encadeadas a ritmo de TGV - América, Obama salvador, redentor, D. Juan, nome do café que frequenta, da ópera de Mozart, a predilecta, dos canalhas, Europa e a crise, Europa e o filme do von Trier, teatro intervencionista de 60, década do político da "filosofia de alcova", das noites a tricotarem-lhe pesadelos com medo de ir para a guerra, pequeno Portugal, decidir não votar, ir embora, voltar, envelhecer -, é exercício para quem não tem vertigens. Ele até tem. Mas no fim cai sempre de pé.

Sentado na orla mais afastada, mais escondida da esplanada, impecavelmente embrulhado num sobretudo azul Dolce & Gabbana, óculos escuros, cabelo branco-cinza em desalinho, Reininho é o homem desacompanhado a contemplar a marginal de Leça, lugar recorrente para atender jornalistas. Meio-dia em ponto, hora combinada, último dia de sol quente, o primeiro depois de colocada a cereja no disco que demorou um ano a produzir. Companhia das Índias, no mercado desde 9 de Dezembro, apresentado na Casa da Música, é o que lhe apetecia fazer. Com quem lhe apetecia. Os que o "mandaram à fava" não entram na contabilidade. Alguns disseram-lhe delicadamente: "Agora, estou ocupado". Ficaram os que "atenderam o telefone": do intrépido Slimmy, loverboy que encaixou uma canção no CSI Miami, ao cometa Halley que é Rodrigo Leão. Armando Teixeira, homem Balla e Bullet, é o fio condutor do trabalho. "Costumo dizer que é o meu filho mais velho". É o produtor.

Reininho traz pálpebras de sono, de quem acordou há menos de duas horas – uma excepção. A regra, o normal, é acordar às sete, quando a maioria ainda dorme, pelo menos a maioria da tribo dele. Tem que esperar até às dez horas para que lhe atendam o telefone, mas ele desperta cedo, com o sol, para escrever, para pensar, porque sim. Porque aprendeu a gostar das manhãs. A desprezar bebidas brancas e maratonas de cigarros e coisas que tais, a evitar ressacas, porque aprendeu o prazer de poupar a voz. De poupar-se. "O médico disse-me que sou indestrutível, quase um super herói. Depois de tudo o que fiz, estar aqui é um milagre".

Há um antes e um depois na vida do porta-estandarte dos GNR (Grupo Novo Rock), não importa onde fica a fronteira e ele também não diz. Mas diz que é um homem novo. Em construção. Talvez Reininho, homem sem idade, apesar de insistir na "provecta idade" que tem - são 53, sem rugas nem barriga "nem dores fadistas" -, persiga um final feliz. Sobretudo para partilhar. "Antes talvez não fosse um homem confiável, mas agora sou. Mesmo que o belo sexo continue a desconfiar de mim." Quem quer casar com a carochinha?

O homem tripolar

Não há meio-termo: ama-se ou odeia-se. Quem o ama diz que é o maior letrista português, poeta ímpar, autor de primeiríssima divisão; quem o põe na beira do prato garante que não passa de um dandy decadente, narcisista, pedante, com a pretensão de parecer o Morrissey, o David Byrne, o David Bowie e até Neil Hannon, o Casanova dos Divine Comedy. Afinal, quem é Rui Reininho, mais de 30 anos de carreira, quase todos ao serviço dos GNR, criatura que garante ser três-em-um, como se a bipolaridade, a existir, não fosse já suficientemente complicada. "Descobri que tenho três personalidades e espero vir a ter muitas mais. Mas se aquela que possui uma vertigem egoísta e narcísica se afastar de mim, se essa me deixar, não tenho medo de ficar só com as outras duas". Soubesse ele viver dentro das três personagens como quem troca de pele sem ser devorado por elas, e não precisaria da psicóloga, dos chás, da acupunctura, dos gongos que descobriu em Vigo e ensaia em casa para calar os silêncios da ausência, do mal que diz ter provocado, dos gongos que partilha com um grupo de reflexão tibetano na Galiza e que ouve para colocar os pontos cardeais no lugar como quem lambe feridas. Como quem cura "o desgosto de pensar que era importante na vida de outra pessoa e afinal era só mais um delírio dessa pessoa". Não foi um desgosto de amor; "foi um desgosto de egoísmo".

Faz das tripas coração para enfrentar o espelho. "Assusto-me bastante quando me vejo. O espelho não fere, mas responde conforme a luminosidade que lhe damos. E às vezes não me revejo ali no palco. Não sou eu, não pareço eu". Não parece ele ali, já dentro do restaurante, fila indiana de empregados, eles a esforçarem-se, elas a arranjarem-se, e ele a retrair-se como quem cava um buraco no chão para se esconder. Reininho é tripolar? É pessoa singular. Gosta de brincar, de pregar sustos, não resiste a uma bola de futebol. Tem franca vocação para fazer os outros sorrir e nem sempre precisa de pontapear uma piada. É um camaleão com receio de parecer vulgar. “Tenho medo da normalidade e, ao mesmo tempo, uma enorme inveja da normalidade”. De ser – trauteia a canção de Morrissey – “the first of the gang to die” (o primeiro do gangue a morrer). Reininho não é normal. E depois?

Às vezes, a diversidade não passa de uma aragem. Talvez isso explique a recente incursão pela espiritualidade. "Não é uma coisa mística, mas precisei de ir buscar o lado interior que me faltava. Habituei-me a olhar para ver, antes olhava e não via. Quando se olha realmente para dentro das pessoas pode ver-se coisas muito bonitas - ou muito assustadoras. Quase se consegue prever o mal. Quase como Constantine, o exorcista, como ver fumo nos pulmões de alguém. Ou como ver amor nos olhos de outra pessoa. É tão mágico quanto isso. Quando vejo cumplicidade e amor aproximo-me. Quando vejo coisas terríveis, também. Para tentar mandar esses corpos em paz para o cemitério."

Reininho, um casamento, um herdeiro, um divórcio, dois livros, duas dezenas de discos, mais de 200 canções escritas, acredita que é um"mensageiro". Iniciou uma espécie de digressão individual da boa vontade, e não o diz a rir. "Quero equilibrar a balança, compensar o mal que causei", insiste uma e outra e vez, estranha fase de auto-punição em pública e genuína catarse. Respira fundo. Escolhe polvo para o almoço, acompanha-o com vinho branco e batalhas perdidas."Tornei pessoas infelizes, fui derrotado pela inércia, pelo medo de enfrentar momentos muito... Fui cobarde perante as drogas, perdi para esse exército aliados meus, gente que eu amava. Perdi uma das mulheres mais maravilhosas que tive por causa disso, por não ter sabido mostrar-lhe o outro ângulo. E ela acabou por se perder, por morrer de droga, de sida".

Anos 70 em erupção, ele a atravessar os 20 anos e a tomar as grandes decisões da vida: não votar, não trabalhar, fazer o elogio da preguiça, da luxúria, exigir tudo a troco de nada. "As pessoas eram muito malucas naquela altura. Se hoje souber alguma coisa que possa valer a alguém, acho que tenho o direito e a obrigação de dizer". Dizer o que lhe disse a mãe, numa noite de S. João, no Porto, quando a avisou de que chegaria tarde, ou talvez nem chegasse: "Vai, mas não te drogues muito". Aceitou o conselho: “Nunca me droguei muito". A mãe, a que antigamente lhe pedia: “Vá lá, tira antes um cursinho em vez de te meteres com esses moços da música”; a mesma que hoje, neste preciso instante, envia-lhe o “inexplicável calor umbilical” numa mensagem de telemóvel. Pergunta: “Então, quando sai o teu disco?” Diria o que lhe disse a mãe, insiste. "Porque sou incapaz de dizer que isso não abre sensibilidades e que a saudinha é que é importante". 

Reininho não burila o passado, mas não despreza o presente reanimado, agarra-o pelos cabelos, segue em linha recta. Atravessa a estrada, aceita continuar a conversa do lado de lá, no muro da marginal de Leça. “Um estóico”, como gosta de dizer que é. Voltado de costas para o mar, “para os piratas”, para o precipício, só mais tarde decifra por que razão fala sem nunca olhar para o interlocutor. “Peço desculpa, não posso olhar porque tenho vertigens”. A confissão vale a primeira, e quase única, gargalhada da tarde. Abre portas ao optimismo. "Tenho aprendido coisas fantásticas: aprendi que é preciso plantar e regar. Regar é algo que me estava vedado, vivia noutro ritmo, tinha sempre outra prioridade qualquer. Agora é um alívio. Já não vou atrás da next big thing". Agora inspira: "Cheira-me a gente outra vez". Volta a Morrissey: "There is a light that never goes out". Agora, ele tem uma luz que nunca se apagará.

Rui, filho único de um pai mediador de seguros e dessa "mãe sábia" que pertencia à Junta dos Produtos Pecuários, nascido ali, na Rua Fernandes Tomás, 19, 3º, em plena Baixa do Porto - ano de 1955, o Futebol Clube do Porto a competir pela primeira vez nas Champions -, será a pronúncia do Norte. Mas não é só a pronúncia do Norte, cliché de que nunca se libertará. É a Lisboa cosmopolita, Belém onde também vive há pouco mais de um ano, é Las Vegas onde passou o Natal, néons a arder e a apagar, criatura tu-cá-tu-lá, cavaleiro de capa sem espada, animal furtivo, sedução hirta, sangue, suor a escorrer, fogo-fátuo, é o lobo mau e o capuchinho vermelho. É pulmão, coração aberto, "recente aprendiz de guardião de segredos", provocação exaltada, hálito dourado, canções auto-retrato, quadris a ferver à Elvis. É dois metros de impenetrável timidez. Capaz do melhor e do que muitos dizem ser o pior.

"Gostava que as pessoas não confundissem esta timidez com arrogância". Ou as falhas dos outros com as suas. No ano passado, na Gala dos 50 anos da RTP, confundiram. O dueto virtual que deveria ter partilhado com Tony de Matos se não tivesse entrado no palco, perdido, a trinta segundos do fim da canção, está depositado no YouTube, legendado com veneno e agulhas, visto por mais de onze mil pessoas."Fiquei triste, sabia que toda a gente iria dizer que eu estava nos bastidores a fumar, a beber ou a meter-me com as bailarinas. E não era verdade." A verdade é que ele estava no camarim, obediente, tranquilo, a ser maquilhado. Deveria ter sido intervalo no programa e só não foi porque as audiências estavam ao rubro. Foi uma rasteira."Senti-me infeliz, derrotado, embaraçado. Saí de lá directo para o quarto do hotel". Tinha as costas quentes? "Tenho as costas largas",sorri. A RTP pediu desculpa, mas aparentemente ninguém viu.

Rui Reininho é tudo o que ainda há-de ser. "Mais 50 anos seria assustador. Só quero mais um bocadinho". O bastante para ver o filho António, único como ele, 12 anos, "a crescer, a saltar etapas, a frequentar as primeiras festas". O suficiente para ter, talvez, quem sabe, ainda irá a tempo?, "a menina que sempre quis ter". Mas não o suficiente para, cita o mestre Manoel de Oliveira, "ter que pedir beijinhos".

Fauna musical e especiarias

Reininho é a Companhia e é as Índias. Embarcou num disco apinhado de espiritualidade e especiarias porque "precisava de sentir medo outra vez". O fruto serviu para o "desassombrar", para lhe "tirar o medo da morte". (E quando morrer, diz, quer ser incinerado ali ao pé da Sacor, uma praia de Leça. “Não quero ter de atravessar a cidade até ao Prado do Repouso depois de morto. Quero deixar as minhas cinzas aqui no ar”).

O trabalho é apresentado como o primeiro disco a solo da sua carreira, mas ele garante que é tudo menos um disco a solo, tal é a fauna que o habita. "A solo seria em casa, ao piano, à Prince. É um disco sem os GNR, mas acompanhado por gente fantástica". São Armando Teixeira, formiga de backstage a fazer brilhar os outros; Alexandre Soares, nada menos do que o primeiro vocalista dos GNR; Paulo Furtado, o one-man-band Legendary Tigerman; Tiago Novo, New Max para os amigos do hip hop; a chilly Margarida Pinto (Coldfinger) e a alma mater deRodrigo Leão, os desvarios electrónicos de Slimmy e a elegância pop deJoão Pedro Coimbra (Mesa). "É um disco muito ligado a cada uma dessas pessoas". E poderia ter sido ligado a muitas mais, se não tivesse havido "impossibilidades físicas", como no caso de José Cid, amigo com quem passa largos minutos ao telefone. Ou "impossibilidades químicas", como no caso de Jorge Palma.

Houve ainda sociedades que falharam por “falta de coragem”. Por modéstia hiperbolizada. "No fundo, sou o artista que sou: seria pretensioso da minha parte tentar sondar outras pessoas de quem gosto, gente da pauta e do papel, mas com quem não tenho intimidade. E depois, se calhar, sinto-me mais à vontade com pessoas que não são da minha geração." Mesmo nesse campeonato houve uma parceria que não chegou ao fim. "Não consegui cantar aquela música maravilhosa dos Micro Audio Waves", banda portuguesa que este ano venceu o mais cobiçado galardão dos prestigiados Qwartz Electronic Music Awards."Fui lá uma vez, duas, três e não consegui. Foi mais forte do que eu, não fui capaz, não deu, não soube". Tempestade a inchar por dentro outra vez. "Senti-me mal, derrotado, infeliz. Como quando somos traídos e parece que toda a gente fica a saber do nosso infortúnio. Ou como quando levamos uma bola preta. Alguém escreve que o disco é francamente mau e toda a gente fica a olhar para mim porque sabe que fiz aquilo mal".

Não é o caso. Não há bolas pretas. Mesmo se a crítica não explode de excitação a ouvir o resultado do trabalho, iliba, protege, exalta o protagonista, o seu carácter e carisma. “Dizem-me, elogiosamente, que aquilo tem o toque de saber fazer a canção dos três minutos, mas também de saber experimentar um bocadinho." Ele não consegue não sentir-se feliz. Experimentou, explorou a voz, sentou-a no colo dos compositores convidados, temperou-a com mais açúcar do que sal.“Não há ali delírios, não estou a meter-me em áreas que não possa conhecer, sinto-me completamente à vontade”. Reconhece-o com a mesma velocidade que usa em sentido contrário, abusando de uma auto-crítica que nem sequer é sustentada pelo caminho que trilhou: “Talvez eu não tenha ido tão longe quanto alguém podia esperar, artística e afectivamente. Talvez não tenha saído sequer da pole-position”. Encolhe os ombros com resquícios de quase crueldade: “Fui até onde era possível.” Autoflagelo à parte, assume que neste disco fez “muitas mais coisas do que imaginava que poderia fazer." Conseguiu até ressuscitar o barão vermelho Cazuza, um dos mais importantes compositores da música brasileira, e reencarnar numa girls band, asDoce, para literalmente embalar “Bem Bom”, canção daquele mítico refrão – “Uma da manhã, hei!” - que lhes valeu o primeiro lugar no Festival RTP da Canção de 1982. “Seria desesperante se não tivesse isto cá fora”.

“Isto” é um imaginário inteiro em que se revê e reencontra, ironicamente lançado em Dezembro. “Durante anos evitei aqueles momentos sagrados do planeta. Agora, confrontam-me: Então, um disquinho para o Natal, hã?”. Não foi premeditado, aconteceu acabá-lo agora. Mas sim, é de um cinismo inesperado”. Companhia das Índias"fala de uma terceira personalidade – Sou o Dr. Optimista, perito em reiki, leio as cartas, falo com o outro mundo -, de um mundo mágico, porque um bocadinho mais de magia não faz mal a ninguém. Fala de um homem novo que pode baixar a espada e erguer outra bandeira."

Poderia ser Barack Obama se há um ano o recém-eleito primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América não passasse de uma miragem em que a maioria ainda não conseguia acreditar. O homem novo é, portanto, Rui Reininho, qualquer que seja a versão com que se vista. Ele diz que ainda está “só a meio do caminho”. Encravado no purgatório? Salva-o esta convicção: “Hoje, se me enganar, se falhar, se tropeçar e cair, sei que agora tenho alguém para me amparar.” Mesmo assim, repisa, “sou the man in between, o homem no meio. Estou entre o mar e as cinzas do deserto. Entre o poente e o nascente. Só tenho que decidir em qual dos lados quero ficar”. Quanto tempo falta para o arco-íris?

domingo, julho 24, 2011

Eu, abaixo-assinado,...

Tabletes de chocolate. Sou do papel não sou do iPad. Gosto de tudo no papel. Da textura macia, do cheiro que lembra cheiro de coisas por estrear. No papel acontecem as palavras. Mesmo que escreva num computador preciso do print para corrigir, para ler o texto. No computador, os olhos criados por livros não conseguem ver a folha, a esquadria, a tensão da frase, o recorte da pontuação. Gosto do papel dos livros novos, acabadinhos das impressoras, gosto do papel amarelado  rugoso dos livros velhos, onde se encontra ao virar da página um bilhete para a ópera ou para o teatro, um apontamento, foi há 20 anos, onde é que eu estava nesse dia? E com quem?, e o bilhete vira Madalena de Proust. O papel sabe a memória.

Sei os livros que levei para aqui, os que deixei esquecidos num avião, num banco, num quarto de hotel, os que perdi. Sei os livros de que gosto muito. E gosto de revistas lustrosas nunca lidas, nunca folheadas, à espera que as dedilhe pela primeira vez. Gosto de jornais de Sábado com o pequeno-almoço, onde começo por ler as pequenas antes das grandes, onde criei hábitos de leitura, rubricas, colunas, gente que escrever como eu. Gosto das surpresas das notícias, gosto dos broadsheets, que se encarquilham e marcarram os dedos, gosto dos suplementos e das revistas, gosto de regressar a um jornal como quem regressa a um amigo.

Não tenho prazer em ler uma revista num iPad, não me dá gosto o touchscreen. Acho o nome iPad, com as maiúsculas e as minúsculas exibicionistas, uma vaidadezinha. Que interessa? Ipad? iPad? IPAD? Não preciso de fotografias cinematográficas, preciso de lustro e de sombra, preciso de as sentir como matéria, substâncias tácteis que vão-se amachucando e envelhecendo nas minhas mãos. Não quero ecrãs nem três dimensões. Gosto das duas dimensões, gosto de larguras e comprimentos, gosto dos jornais que esvoaçam num de vento como papagaios. Gosto do virar da página e sei onde estão as coisas. 

Não quero ler o Guerra e Paz num iPad, muito menos no Kindle. Quero ler o guerra e Paz na minha velha edição de bolso, com pontas dobradas em pequeníssimos triângulos da usura do tempo, com os bordos comidos pelos dedos, a capa original, as centenas de folhas finas que tornam a leitura na cama um pouco mais difícil porque o livro é pesado. Gosto desta dificuldade. Do peso dos livros. Gosto de sair de casa com um livro ou uma revista dentro da mala para o caso de ter de entreter o tédio num desses departamentos da vida quotidiana onde somos obrigados a esperar. Um Kindle precisa de bateria e tem umas horas de autonomia. Horas? os livros e revistas de papel têm a autonomia da eternidade. 

Gosto de bibliotecas. Gosto de arquivos. Gosto de fotografias de papel. Quem guarda mails? Não quero um texto, quero um livro. Não gosto da civilização descartável. 
(...)

[Clara Ferreira Alves, Única, Expresso, 23 de Julho de 2011]

sábado, julho 23, 2011

Amy Winehouse 1983-2011


They tried to make me go to rehab, but I said no, no, no. Yes, I've been black, but when I come back. You'll know i ain't got the time and if my daddy thinks I'm fine. He's tried to make me go to rehab. But I won't go.

sexta-feira, julho 22, 2011

quinta-feira, julho 21, 2011

A rapariga errada*

(...)
Quero ver-te antes que morras. Estou farta de te ler, quero ouvir-te as palavras. Estou farta das tuas histórias, quero viver numa delas. Senão, mato-te. (...) Hoje tentei encontrar-te entre o betão e o vidro da cidade e não consegui. Mas encontrei um cheiro, um rasto no ar húmido da manhã. Preciso de te perseguir para fugir de mim.
* Pedro Paixão