[Foto JMG]
A polícia chegou, sei lá quantas horas depois do primeiro sos. Dois rapazes novos mas corpulentos a realizar sonhos de meninos sugados de filmes americanos, farda e dísticos, óculos de sol sem sol, andar ufano, sensação de poder. Trazem-te cá para fora e tratam-te por doutora, tal como o porteiro, vírus tão portuguesinho e tão aqui do prédio, somos todos doutores. Pedem-te para tirares o carro da entrada, tu tiras, uma guinada faz chiar os travões ou lá o que é que chia nos carros, eles preparam-se para ir embora, missão cumprida sem perderem a pose. Pergunto-lhes qual é o procedimento mínimo a que estão obrigados, surpreendem-se com a pergunta, respondem-me com uma contra ordenação de trânsito. Surpreendo-me eu, não gostava que alguém, não importa quem, se cruzasse contigo na estrada, explico-lhes. És um perigo. E não é pela gritaria que nos tirou a todos da cama, é pelo que se não vê e se sabe se te fizerem uma despistagem do óbvio. Além disso, és um caso de violência doméstica impossível de ignorar. Nesse caso, dizem, tenho que apresentar queixa. Sou a única pessoa a aceitar dar a cara e o nome. Um condomínio chega bem para imitar o país, penso.
O teu amigo, um cinquentão de pele queimada e puxada como o cabelo com gel, que chegara entretanto num SLK descapotável, para te salvar a ti ou o teu namorado ou os dois, não percebi, fica assustado, diz-me que eu não devia apresentar queixa porque depois não a posso retirar. Não sei se posso ou não, sei que não tenho a mais pequena intenção de a retirar. E sei, soube mal falou, que estava mais preocupado com ele do que contigo, não fosse eu lembrar-me de pedir aos dois rapazes polícias que lhe fizessem também um teste. Por esta altura, tu e o teu corpo titubeante, voltaram a gritar. Estás decidida a contar tudo, a insultar todos, perturbada, desnorteda. "Não tenho nada, naaaaada, para falar consigo, senhor agente. Nada!" Eles querem levar-te, ameaçam algemar-te se não te acalmares. "O meu namorado, ex-namorado, é um corrupto, um alcoólico, tem uma escola de condução (e dizes o nome da escola) e a carta apreendida e conduz na mesma e dá aulas na mesma!", denuncias numa vingança de amor ou de ódio ou seja lá o que for que te move. Mas dizes que vais voltar a entrar no prédio, que aquela é a tua morada, e que queres apanhar as tuas coisas, e dizes isto tudo aos berros. A janela da casa em frente, do outro lado da rua, abre-se, uma mão afasta a cortina e uma mulher dispara: "Se não te calas, vou aí abaixo foder-te essa cara com dois estalos! Histérica de merda! As betas da Foz são piores que as mulheres do Aleixo!" Tu olhas, não ousas responder. Dizes que vais chamar a tua advogada. A polícia perde a paciência, pega em ti como num tubo, e enfia-te à força dentro do carro. A tua resistência parte os óculos de sol do agente e o protocolo. Lá se foi a deferência do tratamento e o doutora: "Partiste-me os óculos, minha estúpida, vais pagá-los. E cala-te antes que eu perca a paciência", disse ele já depois da paciência perdida.
Tu só tens tempo de olhar para o teu amigo - aterrorizado com o medo de que a polícia o inclua no circo - e dizer: "Tu estás a ver isto e não estás a fazer nada, tu sabes a verdade, nunca te vou perdoar." Ele encolhe os ombros, pega no telemóvel e liga ao teu (ex?) namorado: "Não saias daí, não venhas cá fora."
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