segunda-feira, julho 25, 2011

Um homem novo (x3)


(Na semana em que os GNR editam Voos Domésticos, o álbum que assinala os 30 anos da banda, é uma boa altura para voltar a publicar um texto antigo -  é o meu tributo ao enorme, enorme, enorme Rui Reininho. Mesmo que Rui Rio, sem surpresa, o tenha vetado e banido da cidade.)

RUI REININHO É O ILUSIONISTA DESTE NATAL, MESMO SE NÃO GOSTA DA QUADRA E MENOS AINDA DE A USAR PARA EDITAR DISCOS. NÃO FOI PREMEDITADO, ACONTECEU ACABAR AGORA A COMPANHIA DAS ÍNDIAS, O PRIMEIRO DISCO A SOLO QUE NÃO É BEM A SOLO. "A SOLO SERIA EM CASA, AO PIANO, À PRINCE". É UM DISCO SEM OS GNR, MAS COM DEZ CONVIDADOS. TIRÁMOS BILHETE PARA UMA CONVERSA COM O HOMEM QUE DIZ ESTAR "A MEIO CAMINHO ENTRE O MAR E O DESERTO". SERÁ O PURGATÓRIO?



Procurar numa entrevista o Reininho destravado, desbocado, insolente dos concertos, o homem de punchlines precisas e esgares cínicos, a criatura que se despe em palco, rasteja, bamboleia, que mima o pé do microfone como striper num varão, que troca as letras dos poemas que escreve por apelos políticos, futebolísticos, pelo que se lhe atravessar na cabeça, é procurar alegria no fado - estará lá, mas não se vê, não se encontra. Mesmo que a conversa dure cinco horas. E cinco horas a ouvir Reininho, histórias encadeadas a ritmo de TGV - América, Obama salvador, redentor, D. Juan, nome do café que frequenta, da ópera de Mozart, a predilecta, dos canalhas, Europa e a crise, Europa e o filme do von Trier, teatro intervencionista de 60, década do político da "filosofia de alcova", das noites a tricotarem-lhe pesadelos com medo de ir para a guerra, pequeno Portugal, decidir não votar, ir embora, voltar, envelhecer -, é exercício para quem não tem vertigens. Ele até tem. Mas no fim cai sempre de pé.

Sentado na orla mais afastada, mais escondida da esplanada, impecavelmente embrulhado num sobretudo azul Dolce & Gabbana, óculos escuros, cabelo branco-cinza em desalinho, Reininho é o homem desacompanhado a contemplar a marginal de Leça, lugar recorrente para atender jornalistas. Meio-dia em ponto, hora combinada, último dia de sol quente, o primeiro depois de colocada a cereja no disco que demorou um ano a produzir. Companhia das Índias, no mercado desde 9 de Dezembro, apresentado na Casa da Música, é o que lhe apetecia fazer. Com quem lhe apetecia. Os que o "mandaram à fava" não entram na contabilidade. Alguns disseram-lhe delicadamente: "Agora, estou ocupado". Ficaram os que "atenderam o telefone": do intrépido Slimmy, loverboy que encaixou uma canção no CSI Miami, ao cometa Halley que é Rodrigo Leão. Armando Teixeira, homem Balla e Bullet, é o fio condutor do trabalho. "Costumo dizer que é o meu filho mais velho". É o produtor.

Reininho traz pálpebras de sono, de quem acordou há menos de duas horas – uma excepção. A regra, o normal, é acordar às sete, quando a maioria ainda dorme, pelo menos a maioria da tribo dele. Tem que esperar até às dez horas para que lhe atendam o telefone, mas ele desperta cedo, com o sol, para escrever, para pensar, porque sim. Porque aprendeu a gostar das manhãs. A desprezar bebidas brancas e maratonas de cigarros e coisas que tais, a evitar ressacas, porque aprendeu o prazer de poupar a voz. De poupar-se. "O médico disse-me que sou indestrutível, quase um super herói. Depois de tudo o que fiz, estar aqui é um milagre".

Há um antes e um depois na vida do porta-estandarte dos GNR (Grupo Novo Rock), não importa onde fica a fronteira e ele também não diz. Mas diz que é um homem novo. Em construção. Talvez Reininho, homem sem idade, apesar de insistir na "provecta idade" que tem - são 53, sem rugas nem barriga "nem dores fadistas" -, persiga um final feliz. Sobretudo para partilhar. "Antes talvez não fosse um homem confiável, mas agora sou. Mesmo que o belo sexo continue a desconfiar de mim." Quem quer casar com a carochinha?

O homem tripolar

Não há meio-termo: ama-se ou odeia-se. Quem o ama diz que é o maior letrista português, poeta ímpar, autor de primeiríssima divisão; quem o põe na beira do prato garante que não passa de um dandy decadente, narcisista, pedante, com a pretensão de parecer o Morrissey, o David Byrne, o David Bowie e até Neil Hannon, o Casanova dos Divine Comedy. Afinal, quem é Rui Reininho, mais de 30 anos de carreira, quase todos ao serviço dos GNR, criatura que garante ser três-em-um, como se a bipolaridade, a existir, não fosse já suficientemente complicada. "Descobri que tenho três personalidades e espero vir a ter muitas mais. Mas se aquela que possui uma vertigem egoísta e narcísica se afastar de mim, se essa me deixar, não tenho medo de ficar só com as outras duas". Soubesse ele viver dentro das três personagens como quem troca de pele sem ser devorado por elas, e não precisaria da psicóloga, dos chás, da acupunctura, dos gongos que descobriu em Vigo e ensaia em casa para calar os silêncios da ausência, do mal que diz ter provocado, dos gongos que partilha com um grupo de reflexão tibetano na Galiza e que ouve para colocar os pontos cardeais no lugar como quem lambe feridas. Como quem cura "o desgosto de pensar que era importante na vida de outra pessoa e afinal era só mais um delírio dessa pessoa". Não foi um desgosto de amor; "foi um desgosto de egoísmo".

Faz das tripas coração para enfrentar o espelho. "Assusto-me bastante quando me vejo. O espelho não fere, mas responde conforme a luminosidade que lhe damos. E às vezes não me revejo ali no palco. Não sou eu, não pareço eu". Não parece ele ali, já dentro do restaurante, fila indiana de empregados, eles a esforçarem-se, elas a arranjarem-se, e ele a retrair-se como quem cava um buraco no chão para se esconder. Reininho é tripolar? É pessoa singular. Gosta de brincar, de pregar sustos, não resiste a uma bola de futebol. Tem franca vocação para fazer os outros sorrir e nem sempre precisa de pontapear uma piada. É um camaleão com receio de parecer vulgar. “Tenho medo da normalidade e, ao mesmo tempo, uma enorme inveja da normalidade”. De ser – trauteia a canção de Morrissey – “the first of the gang to die” (o primeiro do gangue a morrer). Reininho não é normal. E depois?

Às vezes, a diversidade não passa de uma aragem. Talvez isso explique a recente incursão pela espiritualidade. "Não é uma coisa mística, mas precisei de ir buscar o lado interior que me faltava. Habituei-me a olhar para ver, antes olhava e não via. Quando se olha realmente para dentro das pessoas pode ver-se coisas muito bonitas - ou muito assustadoras. Quase se consegue prever o mal. Quase como Constantine, o exorcista, como ver fumo nos pulmões de alguém. Ou como ver amor nos olhos de outra pessoa. É tão mágico quanto isso. Quando vejo cumplicidade e amor aproximo-me. Quando vejo coisas terríveis, também. Para tentar mandar esses corpos em paz para o cemitério."

Reininho, um casamento, um herdeiro, um divórcio, dois livros, duas dezenas de discos, mais de 200 canções escritas, acredita que é um"mensageiro". Iniciou uma espécie de digressão individual da boa vontade, e não o diz a rir. "Quero equilibrar a balança, compensar o mal que causei", insiste uma e outra e vez, estranha fase de auto-punição em pública e genuína catarse. Respira fundo. Escolhe polvo para o almoço, acompanha-o com vinho branco e batalhas perdidas."Tornei pessoas infelizes, fui derrotado pela inércia, pelo medo de enfrentar momentos muito... Fui cobarde perante as drogas, perdi para esse exército aliados meus, gente que eu amava. Perdi uma das mulheres mais maravilhosas que tive por causa disso, por não ter sabido mostrar-lhe o outro ângulo. E ela acabou por se perder, por morrer de droga, de sida".

Anos 70 em erupção, ele a atravessar os 20 anos e a tomar as grandes decisões da vida: não votar, não trabalhar, fazer o elogio da preguiça, da luxúria, exigir tudo a troco de nada. "As pessoas eram muito malucas naquela altura. Se hoje souber alguma coisa que possa valer a alguém, acho que tenho o direito e a obrigação de dizer". Dizer o que lhe disse a mãe, numa noite de S. João, no Porto, quando a avisou de que chegaria tarde, ou talvez nem chegasse: "Vai, mas não te drogues muito". Aceitou o conselho: “Nunca me droguei muito". A mãe, a que antigamente lhe pedia: “Vá lá, tira antes um cursinho em vez de te meteres com esses moços da música”; a mesma que hoje, neste preciso instante, envia-lhe o “inexplicável calor umbilical” numa mensagem de telemóvel. Pergunta: “Então, quando sai o teu disco?” Diria o que lhe disse a mãe, insiste. "Porque sou incapaz de dizer que isso não abre sensibilidades e que a saudinha é que é importante". 

Reininho não burila o passado, mas não despreza o presente reanimado, agarra-o pelos cabelos, segue em linha recta. Atravessa a estrada, aceita continuar a conversa do lado de lá, no muro da marginal de Leça. “Um estóico”, como gosta de dizer que é. Voltado de costas para o mar, “para os piratas”, para o precipício, só mais tarde decifra por que razão fala sem nunca olhar para o interlocutor. “Peço desculpa, não posso olhar porque tenho vertigens”. A confissão vale a primeira, e quase única, gargalhada da tarde. Abre portas ao optimismo. "Tenho aprendido coisas fantásticas: aprendi que é preciso plantar e regar. Regar é algo que me estava vedado, vivia noutro ritmo, tinha sempre outra prioridade qualquer. Agora é um alívio. Já não vou atrás da next big thing". Agora inspira: "Cheira-me a gente outra vez". Volta a Morrissey: "There is a light that never goes out". Agora, ele tem uma luz que nunca se apagará.

Rui, filho único de um pai mediador de seguros e dessa "mãe sábia" que pertencia à Junta dos Produtos Pecuários, nascido ali, na Rua Fernandes Tomás, 19, 3º, em plena Baixa do Porto - ano de 1955, o Futebol Clube do Porto a competir pela primeira vez nas Champions -, será a pronúncia do Norte. Mas não é só a pronúncia do Norte, cliché de que nunca se libertará. É a Lisboa cosmopolita, Belém onde também vive há pouco mais de um ano, é Las Vegas onde passou o Natal, néons a arder e a apagar, criatura tu-cá-tu-lá, cavaleiro de capa sem espada, animal furtivo, sedução hirta, sangue, suor a escorrer, fogo-fátuo, é o lobo mau e o capuchinho vermelho. É pulmão, coração aberto, "recente aprendiz de guardião de segredos", provocação exaltada, hálito dourado, canções auto-retrato, quadris a ferver à Elvis. É dois metros de impenetrável timidez. Capaz do melhor e do que muitos dizem ser o pior.

"Gostava que as pessoas não confundissem esta timidez com arrogância". Ou as falhas dos outros com as suas. No ano passado, na Gala dos 50 anos da RTP, confundiram. O dueto virtual que deveria ter partilhado com Tony de Matos se não tivesse entrado no palco, perdido, a trinta segundos do fim da canção, está depositado no YouTube, legendado com veneno e agulhas, visto por mais de onze mil pessoas."Fiquei triste, sabia que toda a gente iria dizer que eu estava nos bastidores a fumar, a beber ou a meter-me com as bailarinas. E não era verdade." A verdade é que ele estava no camarim, obediente, tranquilo, a ser maquilhado. Deveria ter sido intervalo no programa e só não foi porque as audiências estavam ao rubro. Foi uma rasteira."Senti-me infeliz, derrotado, embaraçado. Saí de lá directo para o quarto do hotel". Tinha as costas quentes? "Tenho as costas largas",sorri. A RTP pediu desculpa, mas aparentemente ninguém viu.

Rui Reininho é tudo o que ainda há-de ser. "Mais 50 anos seria assustador. Só quero mais um bocadinho". O bastante para ver o filho António, único como ele, 12 anos, "a crescer, a saltar etapas, a frequentar as primeiras festas". O suficiente para ter, talvez, quem sabe, ainda irá a tempo?, "a menina que sempre quis ter". Mas não o suficiente para, cita o mestre Manoel de Oliveira, "ter que pedir beijinhos".

Fauna musical e especiarias

Reininho é a Companhia e é as Índias. Embarcou num disco apinhado de espiritualidade e especiarias porque "precisava de sentir medo outra vez". O fruto serviu para o "desassombrar", para lhe "tirar o medo da morte". (E quando morrer, diz, quer ser incinerado ali ao pé da Sacor, uma praia de Leça. “Não quero ter de atravessar a cidade até ao Prado do Repouso depois de morto. Quero deixar as minhas cinzas aqui no ar”).

O trabalho é apresentado como o primeiro disco a solo da sua carreira, mas ele garante que é tudo menos um disco a solo, tal é a fauna que o habita. "A solo seria em casa, ao piano, à Prince. É um disco sem os GNR, mas acompanhado por gente fantástica". São Armando Teixeira, formiga de backstage a fazer brilhar os outros; Alexandre Soares, nada menos do que o primeiro vocalista dos GNR; Paulo Furtado, o one-man-band Legendary Tigerman; Tiago Novo, New Max para os amigos do hip hop; a chilly Margarida Pinto (Coldfinger) e a alma mater deRodrigo Leão, os desvarios electrónicos de Slimmy e a elegância pop deJoão Pedro Coimbra (Mesa). "É um disco muito ligado a cada uma dessas pessoas". E poderia ter sido ligado a muitas mais, se não tivesse havido "impossibilidades físicas", como no caso de José Cid, amigo com quem passa largos minutos ao telefone. Ou "impossibilidades químicas", como no caso de Jorge Palma.

Houve ainda sociedades que falharam por “falta de coragem”. Por modéstia hiperbolizada. "No fundo, sou o artista que sou: seria pretensioso da minha parte tentar sondar outras pessoas de quem gosto, gente da pauta e do papel, mas com quem não tenho intimidade. E depois, se calhar, sinto-me mais à vontade com pessoas que não são da minha geração." Mesmo nesse campeonato houve uma parceria que não chegou ao fim. "Não consegui cantar aquela música maravilhosa dos Micro Audio Waves", banda portuguesa que este ano venceu o mais cobiçado galardão dos prestigiados Qwartz Electronic Music Awards."Fui lá uma vez, duas, três e não consegui. Foi mais forte do que eu, não fui capaz, não deu, não soube". Tempestade a inchar por dentro outra vez. "Senti-me mal, derrotado, infeliz. Como quando somos traídos e parece que toda a gente fica a saber do nosso infortúnio. Ou como quando levamos uma bola preta. Alguém escreve que o disco é francamente mau e toda a gente fica a olhar para mim porque sabe que fiz aquilo mal".

Não é o caso. Não há bolas pretas. Mesmo se a crítica não explode de excitação a ouvir o resultado do trabalho, iliba, protege, exalta o protagonista, o seu carácter e carisma. “Dizem-me, elogiosamente, que aquilo tem o toque de saber fazer a canção dos três minutos, mas também de saber experimentar um bocadinho." Ele não consegue não sentir-se feliz. Experimentou, explorou a voz, sentou-a no colo dos compositores convidados, temperou-a com mais açúcar do que sal.“Não há ali delírios, não estou a meter-me em áreas que não possa conhecer, sinto-me completamente à vontade”. Reconhece-o com a mesma velocidade que usa em sentido contrário, abusando de uma auto-crítica que nem sequer é sustentada pelo caminho que trilhou: “Talvez eu não tenha ido tão longe quanto alguém podia esperar, artística e afectivamente. Talvez não tenha saído sequer da pole-position”. Encolhe os ombros com resquícios de quase crueldade: “Fui até onde era possível.” Autoflagelo à parte, assume que neste disco fez “muitas mais coisas do que imaginava que poderia fazer." Conseguiu até ressuscitar o barão vermelho Cazuza, um dos mais importantes compositores da música brasileira, e reencarnar numa girls band, asDoce, para literalmente embalar “Bem Bom”, canção daquele mítico refrão – “Uma da manhã, hei!” - que lhes valeu o primeiro lugar no Festival RTP da Canção de 1982. “Seria desesperante se não tivesse isto cá fora”.

“Isto” é um imaginário inteiro em que se revê e reencontra, ironicamente lançado em Dezembro. “Durante anos evitei aqueles momentos sagrados do planeta. Agora, confrontam-me: Então, um disquinho para o Natal, hã?”. Não foi premeditado, aconteceu acabá-lo agora. Mas sim, é de um cinismo inesperado”. Companhia das Índias"fala de uma terceira personalidade – Sou o Dr. Optimista, perito em reiki, leio as cartas, falo com o outro mundo -, de um mundo mágico, porque um bocadinho mais de magia não faz mal a ninguém. Fala de um homem novo que pode baixar a espada e erguer outra bandeira."

Poderia ser Barack Obama se há um ano o recém-eleito primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América não passasse de uma miragem em que a maioria ainda não conseguia acreditar. O homem novo é, portanto, Rui Reininho, qualquer que seja a versão com que se vista. Ele diz que ainda está “só a meio do caminho”. Encravado no purgatório? Salva-o esta convicção: “Hoje, se me enganar, se falhar, se tropeçar e cair, sei que agora tenho alguém para me amparar.” Mesmo assim, repisa, “sou the man in between, o homem no meio. Estou entre o mar e as cinzas do deserto. Entre o poente e o nascente. Só tenho que decidir em qual dos lados quero ficar”. Quanto tempo falta para o arco-íris?

1 comentário:

  1. Inês B. inesb@iol.pt17 maio, 2012 14:46

    Reportagem e texto sem iguais, sobre alguém que é também maior do que o nosso quotidiano monótono. Do que a nossa visão recta. Dos melhores textos que já li. Faz tudo o que é necessário: apresenta, homenageia, comove e faz-nos gostar ainda mais e mais do RR. Afinal, é possível.

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