quarta-feira, julho 27, 2011

Rui Tavares: Um mandamento para o século

A contragosto mergulhei na leitura das 1500 páginas Anders Breivik publicou antes de sair da sua quinta norueguesa para provocar explosões no centro de Oslo, dirigir-se ao acampamento de Utøya e matar a sangue-frio dezenas de jovens. A leitura reforçou a minha primeira impressão de que estamos mais perante um fanático do que perante um louco. O que ele escreve é arrepiante, muitas vezes mentiroso, mas ele sabe o que escreve e por que escreve, quando lhe é útil mentir ou não mentir.
Sabe também que palavras usar. Nunca diz que o seu opus é um “manifesto” (palavra que erradamente tem sido usada) mas um “compêndio”, ou seja, um conjunto de textos que pretendem abranger um tema. O compêndio dele tem pelo menos uma meia-dúzia de partes. Numa das primeiras, tenta explicar como o “marxismo cultural” tomou conta do Ocidente a partir dos anos 60. Noutra, tenta provar que demograficamente os muçulmanos dominarão a Europa. Até aqui, nada que não tenhamos lido no conservadorismo mais rebarbativo, com o mesmo manipular de dados e excitar de fobias. Noutra parte ainda, analisa em detalhe a lei canónica para demonstrar que é lícito aos cristãos usar da violência, matarem infiéis e martirizarem-se. Depois passa à explicação de como fabricar bombas ou que alvos atingir (universidades ou eventos literários onde se encontrem muitos “multiculturalistas”, por exemplo). Não entrarei em pormenores. Aquilo não é uma coisa incongruente, tendo em conta as intenções do autor. Aquilo é um vírus. Depois de preso ou morto, Breivik desejava contaminar o cérebro de outros como ele. Seria uma excelente surpresa que não o conseguisse.
Como responder? Escrevo aqui enquanto “traidor de categoria B” (na qual Breivik inclui “políticos multiculturalistas, parlamentares europeus, escritores, conferencistas” a punir com execução e expropriação) e posso apenas dizer: não com prisões secretas, não com tortura, não com “rendições extraordinárias”, não com mais paranóia, não com discurso securitário, não com violação de privacidade a cidadãos não-suspeitos, não com interferências à liberdade de expressão, não com leis feitas à medida, não com estados de exceção, não com invasões de países, não com mentiras para as justificar, não com guerras de civilizações ou do que quer que seja. Não queremos nada disso, e não precisamos de nada disso.
Precisamos só de um mandamento para o século: não odeies. É simples. É para todos. É difícil. Não odeies.
Não me atreveria a propor amar o próximo, amar o teu irmão de outra religião — seria provavelmente considerado multicultural demais, relativista demais, efeminado demais, politicamente correto demais — e essas são as grandes vergonhas da nossa época, segundo parece. Então fica assim — como mínimo denominador comum, ao menos, poderemos acertar nisso? — não odeies. Não odeies o outro. Não odeies o seu erro se queres amar a tua verdade. Não odeies a sua verdade se queres amar o teu erro. É simples. Não odeies nada. Eu disse que era difícil. Não odeies sequer o ódio. O ódio quer ser odiado. O ódio deseja fervorosamente mais ódio. Tu, em resposta, não odeies — diz aos outros para não odiarem também — e pode ser que este século corra bem.
Hoje, no Público

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