quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Madrid-México

Já adormeci e já acordei aí umas cinco vezes. Tenho o mar da Gronelândia, ou o que suponho ser o mar da Gronelândia por baixo de mim e o corpo amparado por três almofadas, o que quererá dizer que pelo menos duas não são minhas. Não sei como vieram aqui parar - nem quero saber. Tenho os pés insuportavelmente dormentes e uma necessidade aguda de esticar as pernas - mas não posso. Um grupo de passageiros, que parece feito de amigos de infância, está a obstruir a via. E, no entanto, são tudo menos amigos de infância. Aliás, não chegam sequer a ser amigos. Da última vez que adormeci nem sequer se conheciam; agora, estão aqui às gargalhadas, com os braços apoiados no meu banco, como se fossem vizinhos de longa data a contar histórias da vida alheia à janela das respectivas casas. Trocam moradas, números de telefone, tudo o que lhes permita voltar gloriosamente a encontrar-se.

Sempre achei isto muito estranho, as pessoas que fazem amigos em qualquer lado, de qualquer maneira. Não sou assim nem sou melhor; só diferente. É verdade que não sou propriamente uma criatura sociável, e que os meus amigos são os amigos de sempre, salvo raríssimas excepções. Mas o facto de Houllebecq estar a falar-me aos ouvidos da “extinção progressiva das relações humanas” também é capaz de não ajudar lá grande coisa a que seja solidária ou fique sensibilizada com este entusiástico ambiente que me montaram aqui à beira.

A rapariga mais nova tem uma t-shirt preta que faz saber que é recém licenciada em enfermagem. Ela e mais umas cinquenta saídas da fornada 2005/06. Tem o cabelo acobreado e um sorriso espontâneo, bonito, cândido, um daqueles sorrisos que acreditam no futuro e que é possível refazer o mundo, que vivem com esperança e fazem questão de o mostrar. Os dentes pequeninos, geométricos, imaculados. No pulso, um relógio fininho com duas voltas constantemente visitado pelos dedos esguios da outra mão.

O homem mais empolgado com a troca de contactos, topei-o logo ao fim da primeira meia hora – e vou aqui pousada há mais de oito. Abriu com os dentes o plástico de uma caixa Ferrero Rocher e devorou os bom-bons todos, um-a-um, seguidos e sem complacência. Há-de ter quase 40 anos, embora se esforce para parecer mais novo. O cabelo grisalho, aos caracóis e comprido está apanhado atrás com um nó. A camisa riscada, desabotoada, deixa a descoberto os pelos e o peito. E um fio com pedras de marfim igual à colecção de pulseiras que ostenta no braço. É alto e forte. E feio. Mastiga freneticamente uma pastilha só com metade dos dentes, o que faz com que veja aquela bola cinzenta a dançar-lhe na boca. Não é uma visão bonita. Ainda não parou de gargalhar desde que a rapariga lhe deu atenção. Haja paciência!

A rapariga chama-se Esther Lopez. Viveu até aos seis anos em Valência e depois foi estudar para Alicante. Não fala inglês, mas vai para o México durante um ano para, tanto quanto julgo ter percebido, tratar de crianças com problemas. Tem “missionária” escrito na testa. Mesmo. Às tantas, não há quem não queira trocar duas palavras com ela. Até a insuportável mulher, emigrante na Florida há não sei quantos anos, de regresso a casa só para assistir a um casamento, mete conversa com ela. Fica escandalizada por a rapariga espanhola não falar inglês, mas não se escandaliza, pelo contrário, com o facto de ter praticamente desaprendido a sua língua materna. Adiante.

Esther está acompanhada por uma freira, daquelas trajadas à moda antiga, espécie de pinguim, também ela extraordinariamente nova e bonita. E também bastante animada com a tertúlia, toda em espanhol. Estão os três de pé. As costas do banco e a preguiça não me permitem identificar os outros dois membros que completam o quinteto.

Ao lado, um casal masculino parece menos incomodado do que eu com o barulho. Não consigo evitar admirá-los por isso. A paciência dos outros causa-me inveja. Um deles, meio calvo, tem uma t-shirt verde Energie com uma inscrição vermelha e sugestiva: “I fly with you”; o outro, com o cabelo húmido e despenteado, veste uma camisola salmão desmaiado Tommy Hilfiger e usa óculos graduados de armação branca. Nos pés, a sintonia: ambos calçam umas Nike bege iguaizinhas. E ambos têm no colo as mantinhas de combate ao frio, embora não esteja frio. Já os vi concentrados no Bond e na Antonietta; já os vi dormir encostados um no outro; já os vi beber sucessivas garrafas de gin tónico e de vinho tinto. Estão ali os dois animados um com o outro. Sempre e só um com o outro. Gosto disso. A amizade entre dois homens sempre me comoveu mais do que amizade entre duas mulheres, embora a amizade entre duas mulheres seja mais rara. Serão um casal gay?, pergunto, sem a mínima intenção de ofender. “Não, devem ser só amigos. Podiam ser o Ricky e o Jordi”, responde o Miguel. Bem observado. Deixo-os em paz.

Uma voz robótica solicita aos passageiros que regressem aos seus lugares e apertem o cinto. Regressa o silêncio. Finalmente.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Coffe break


Até ao dia 15 Março, o Coriscos andará perdido pelo México. Ganham-se umas coisas; perdem-se outras. Partilho o que é imperdível para quem fica.

Exposição de Jordi Burch, "Estamos juntos!", na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A partir de 8 de Março. "Um mundo nos mundos. Nada, apenas tudo. O tempo nasce de mansinho, arde nos olhos, borboleteia", escreve Ana Sofia Fonseca no catálogo.
Última coreografia de Olga Roriz, "Daqui em diante", que irá percorrer os palcos de Coimbra (1 de Março), Vila Real (dia 16) e Viana do Castelo (dia 31). Lisboa, Águeda e Lagoa recebem a peça em Abril. O Porto em data nenhuma. Porque será?!

Noite, em dose dupla, no Porto, a 3 de Março. A Casa da Música promove a terceira edição do Clubbing, dedicado à música electrónica; o Fantasporto, o sempre memorável baile dos vampiros, no Teatro Sá da Bandeira.

Em Serralves, apesar de a exposição "Anos 80" não merecer a visita, há concertos a propósito da mostra que valem a pena. "Little Annie", diva punk do cabaret pós-moderno, deve apresentar o álbum "Songs from the coalmine canary", lindo de morrer, a 2 de Março, às 22 horas.

Bem, e há sempre o Fantas, onde vale a pena ir. Sempre pelo cinema asiático, com destaque para o "Time" do magnífico Kim Ki-Duk. E desta vez, também, porque será talvez a última vez que é apresentado no Teatro Rivoli.

Clint Eastwood


Quando tinha 12, 13 anos, e todas as meninas da minha idade estavam apaixonadas pelo seboso Tom Cruise a exibir os ossinhos no Cocktail, ou pelo Ralph Macchio a ser educado pelo, esse sim, saudoso mestre Miyagi, ou pelo insosso Rob Lowe das matinés, ou pior, pelo Patrick Swayze das ancas dançarinas, eu estava apaixonada por Clint Eastwood. Mesmo sem gostar propriamente de westerns. As paixões não se explicam. Mas eu estava apaixonada pelo herói que ele era sempre. Pelo cavaleiro solitário, pelo coração de caçador, definitivamente apaixonada por ele em "Os imperdoáveis". E por tudo o que Paulo Portas escreveu brilhante e sucintamente sobre ele, há duas semanas, na Tabu.

Depois, cresci e acho que me esqueci. Depois, continuei a crescer e voltei a lembrar-me dele. Sobretudo com "As Pontes de Madison County". "Million Dollar Baby", há dois anos, foi a desnecessária confirmação.

Quando tinha 12, 13 anos não sabia que Clint Eastwood podia, um dia, morrer. Tem 77 anos e já iniciou a contagem descrescente. Um dia vai morrer e eu vou chorar. E ontem odiei ficar acordada até às cinco da manhã para o ver perder o Oscar de Letters from Iwo Jima para Martin Scorsese.

Diálogos Pueris XVIII

Ele: A minha veia poética voltou... Tinha que te avisar... Adeus, Wookie...
Ela: Estás apaixonado?
Ele: Sim.
Ela: Fico contente!
Ele: Hoje voltei a sentir... Estou feliz, finalmente!
Ela: Quer dizer que já podemos ser amigos?
Ele: Não. Ainda não.

Diálogos Pueris

domingo, fevereiro 25, 2007

O Porto visto de Lisboa III

"É disto que os políticos gostam, poderem aparecer como humanos". A frase, sentida, genial e certeira, foi proferida pela vizinha do lado a propósito dos perfis de Rui Rio e Luís Filipe Menezes - os dois príncipes do Norte - assinados, no domingo passado, por Paulo Moura na Pública.
Rui Rio, igual a si próprio, revelou-se um lobo solitário, um justiceiro sem medo decidido a por na ordem todos quantos ousem contestá-lo. E o jornalista de Lisboa foi o primeiro a dar ordeiramente o exemplo: não o contestou. O retrato era o de um homem sério, rigoroso, impoluto, visionário, superior. Uma ficção, portanto.
No dia seguinte, José Manuel Fernandes, que já por mais do que uma vez deu provas de não saber o que é e o que se passa realmente no Porto, não suficientemente satisfeto com o açucar da prosa, colocou na última página do diário uma seta ascendente sobre o autarca, sublinhando as suas imensas qualidades e inigualável coragem por ter dito o que disse.
Estranho? No mínimo!
O director do Público esqueceu-se apenas de dizer que Rui Rio, depois de ter reflectido sobre o seu próprio discurso, ameaçou accionar uma Providência Cautelar para impedir a publicação da reportagem. A que preço terá aceite voltar atrás? Está à vista, mas o jornal não descansa. Ontem, José Augusto Moreira, que nem sequer é de Lisboa, voltou a louvar a "visão pragmática" do presidente da Câmara, a sua "lucidez e sagacidade - raras na política actual".

O Porto visto de Lisboa II

A análise sobre a gestão cultural do país intitula-se "Fim da Festa" e vem publicada na Magazine Grande Informação, revista mensal, claramente de Direita, que leio desde a primeira edição e que agora vou deixar de ler.
Henrique Silveira, o autor, condena toda a estratégia cultural do Governo, passando pela Cinemateca Portuguesa e o Instituto Português de Museus, devido aos cortes que ultrapassam os 20%, insurgia-se contra a possibilidade de a Colecção Berardo ir para França e contra as nomeações da Gulbenkian, etc, etc, etc... E abria um curioso parágrafo dedicado ao Porto, onde esbanjava ignorância e mostrava como é triste falar de cor.
"...Apenas a Casa da Música, situada no Porto, de onde é oriunda Isabel Pires de Lima e, curiosamente, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, tem um acréscimo muito significativo que deu para contratar a santanete Guta Moutra Guedes para reformar o design da Casa da Música".
"O menino querido de Isabel Pires de Lima, Pedro Burmester, pianista oriundo do Porto e autor da ideia 'seminal' da Casa da Música é o seu actual director artístico e conseguiu o mérito de, com mais dinheiro, conseguir uma programação infinitamente inferior à do anterior director artístico, o reputadíssimo Antony Withworth-Jones".
É curioso, porque a programação para 2007 ainda nem sequer foi apresentada. Só é conhecido o primeiro trimestre. Mas o Porto, visto de Lisboa, continua a ser um mistério.

sábado, fevereiro 24, 2007

Kate Moss & Natalia Vodianova



Suicídio encomendado


O caminho para a morte é lento, silencioso, absurdo. Comprido e, talvez, infalível. "Suicídio encomendado", primeira longa-metragem do promissor Artur Serra Araújo, que abriu ontem a 27ª edição do Fantasporto, é uma comédia negra e uma história de desamor. Sobretudo próprio.
Absolutamente repleto de ideias inusitadas - raríssimas no cinema português - peca, no entanto, pela falta de ritmo e de densidade dos personagens que, justamente por serem surrealmente bons, mereciam maior desenvolvimento. Mereciam que nós não quisessemos a sua mrte. Peca ainda por um quase imperdoável desleixo em alguns pormenores cénicos interiores, o que poderá condenar a sua estreia a 15 de Março, em 15 salas de todo o país. O resto, sobretudo o texto, é superior. Numa versão levemente editada, o filme teria inaugurado uma nova e arrojada etapa em Portugal.
José Wallenstein é o Dr. Morte, homem que conduz os infelizes ao suicídio. Luís Tinoco, filho de pais raptores, é o infeliz que se deixa conduzir por Mirandela, pelas paisagens do Douro e por várias tentativas falhadas de morte. Quer morrer porque a irmã, raptada como ele, mas a uma família diferente, não corresponde ao seu amor.
É um filme sobre a partilha.
Quem partilha a parte do meio da torrada?

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Como conseguimos sobreviver?

Há uns dias, a minha primeira melhor amiga, amiga de há 24 anos, amiga de sempre que a geografia impiedosamente separou, enviou-me um mail sobre a geração de 70, a nossa, com uma etiqueta: "Lembrei-me de ti". No fim-de-semana passado, a conversa de café com alguém de umas gerações anteriores descarrilou para o mesmo assunto: para a geração que frequentava pubs ao domingo à tarde e que, para sair à noite, "ia dormir a casa da amiga". Já ninguém vai dormir a casa da amiga; não é preciso. Mas nós passámos anos e anos a dormir uma na casa da outra. Todos os dias. Mesmo quando não queríamos "sair à noite". Ontem, um amigo recente escreveu exemplarmente sobre isso: sobre como "fomos os últimos a ir brincar «lá para baixo», que é como quem diz na rua". Fui, inevitavelmente, contaminada por essa nostalgia. Por essa sensação de termos sido diferentes e talvez mais felizes do que são as pessoas que têm hoje a idade que nós tínhamos na altura.

O mail dela fala de uma altura em que "os carros não tinham cinto de segurança, nem apoios de cabeça, nem air bag. De quando fazíamos farra no banco de trás sem ser considerado perigoso". Eu e ela faziamos pior: a cabeça estava sempre fora da janela, aos gritos. Já ninguém põe a cabeça fora da janela. As janelas têm autocolantes a avisar: "Criança a bordo". O texto dele diz que fomos os últimos "a saber de cor as letras do Zeca Afonso".
O mail dela diz que "os brinquedos eram multicolores e pintados com umas lacas duvidosas, contendo chumbo ou outro veneno qualquer". Hoje, os brinquedos têm etiquetas a assegurar que foram concebidos de acordo com as normas europeias. O texto dele fala de "uma geração equilibrada, os tais que fazem reciclagem, votam, discutem política".
O mail dela recorda que "andávamos de bicicleta sem capacete" - eu e ela numa bicicleta amarela; a minha era uma albrabada BMX chamada LBM -, "que bebíamos água da torneira ou da mangueira e não águas minerais em garrafas esterilizadas. Construíamos escorregas com sabão e aqueles que tinham a sorte de morar perto de uma rua asfaltada podiam tentar bater recordes de velocidade, e até verificar a meio do caminho que tinham economizado os travões. Alguns acidentes depois, os problemas estavam resolvidos".
O texto dele cita "as miúdas a saltar ao elástico, os rapazes a jogar ao guelas, quem tivesse o maior abafador era rei do recreio, todos a partilhar sirumba e futebol humano, escondidas, apanhada, o mata". E, no nosso caso, jogar à mosca, ao salva, ao monopólio e a uma série imensa de coisas que inventávamos só para podermos fazer batota. Sempre as duas.
O mail dela diz que "íamos brincar para a rua com a única condição de voltar para casa ao anoitecer. Não havia telemóveis e ninguém sabia onde estávamos. Incrível. Tínhamos aulas só de manhã e íamos almoçar a casa. Canadianas ou dentes partidos, ninguém se queixava disso. Todos tinham razão, menos nós". Nós éramos também, habitualmente, mordidas pelas abelhas do pai dela. E nunca ficávamos doentes por gostarmos de andar à chuva. O texto dele diz que "fomos os últimos com três disciplinas no 12º ano, a ter que levar aquelas horrorosas sapatilhas brancas para as aulas de educação física". É bem verdade.
O mail dela lembra que "comíamos doces, pão com manteiga, bebidas com açúcar, não se falava em obesidade. Brincávamos sempre na rua e éramos activos. Dividíamos uma laranjada golo a golo e nunca ninguém morreu por causa disso". O texto dele diz que crescemos "com a obsessão do objectivo de vida e mais ou menos cientes de que é preciso tomar opções, definir um rumo".
O mail dela fala ainda da ausência "de playstations, Nintendo 64, X boxes, jogos e gravadores de vídeo, satélites, dolby surround, telemóvel, computador, chats na Internet, só amigos". Diz que "a pé ou de bicicleta íamos a casa dos amigos, mesmo que morassem a quilómetros de nossa casa - e nós morávamos lado-a-lado -, "entrávamos sem bater e íamos brincar. Lá fora, nesse mundo cinzento e sem segurança! Como era possível? Jogávamos futebol com uma só baliza e mesmo que não fossemos seleccionados. Sem frustração, nem fim do mundo. Havia alunos atrasados e que reprovavam. Ninguém ia a correr a um psicólogo ou psicoterapeuta. Não se falava de dislexia, problemas de concentração, hiperactividade. Repetia-se simplesmente o ano e cada um tinha a sua hipótese. Tínhamos liberdades, insucessos, sucessos, deveres e aprendíamos a lidar com cada um deles".

A única questão, pergunta o mail dela, é: como conseguimos sobreviver? E, acima de tudo, como conseguimos desenvolver a nossa personalidade? Talvez as gerações que se seguiram respondam que tudo era "uma chatice", mas... "como éramos felizes, hein?" Éramos mesmo. Eu e ela, então, felizes ao ponto de deixar uma vila inteira comovida no dia em que ela foi morar para outro lugar. Não houve quem não tivesse chorado connosco, por nós. E ainda hoje se fala disso. Ainda há amizades assim?
Pessoalmente, sempre duvidei do dia em que aquele Spectrum entrou lá em casa. Mas até aquele sonoro "Piiiii... load aspas aspas... piii...", fez de nós uma geração diferente. Quem, hoje, aguentaria esperar 30 minutos para tentar jogar um jogo que ainda por cima podia falhar?

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Quiz VIII

Como é que se tenta fazer à memória aquilo que é francamente simples no computador: delete?

Repit

"How It Ends", by Devotchka. Da banda sonora de "My little Sunshine".

Hold your grandmother's Bible to your breast
Gonna put it to the test
You want it to be blessed
And in your heart,
You know it to be true,
You know what you gotta do
They all depend on you
And you already know
Yeah,
you already know how this will end.

There is no escape,
From the slave-catchers' songs
For all of the loved ones gone
Forever's not so long
And in your soul,
They poked a million holes
But you never lettem show
C'mon it's time to go
And you already know
Yeah,
you already know how this will end

Now you've seen his face
And you know that there's a place
In the sun
For all that you've done
For you and your children
No longer shall you need
You always wanted to believe
Just ask and you'll receive
Beyond your wildest dreams

And you Already know
Yeah, you already know
How this will end
You already love will end

Gisberta - Um ano depois

(Jordi Burch)
Todas têm o mesmo sonho: ser maiores do que a vida. Ser como as divas de plumas e eternidade que lhes forram as memórias e as paredes de casa. Continuar a brilhar depois de as luzes todas se apagarem, mesmo que elas, mulheres que guardam o corpo de homem como um segredo, da luz conheçam só a interior. E a dos palcos mais ou menos decrépitos de glórias sempre fugazes. A outra, a luz do dia, não é para elas.
À luz do dia apontam-lhes o dedo - às vezes, apontam pedras -, e a má-língua. Mesmo que elas vivam a driblar os traços masculinos e de envelhecimento. O dedo esticado dos outros, sempre fértil em etiquetas para catalogar aquilo que não podem ou não sabem compreender e assimilar, dói quase tanto como serem atiradas para um poço. Mesmo para quem escolheu viver a vida de outra forma. Sobretudo para quem escolheu viver a vida de outra forma.
"Ele, ela, ele", excelente reportagem assinada por Ricardo J. Rodrigues, este domingo, na Notícias Magazine, é sobre isso. Sobre as mulheres-homens, cuja vida é comandada pelos sonhos. Sobre mulheres como Gisberta, jackpot de exclusões-sociais-pós-ambições-falidas, que morreu faz amanhã exactamente um ano. É sobre todas as outras que morreram também e ninguém sabe. É sobre as amigas de Gisberta: Katty Wandolly, Wanda Morelli, Tânia Star e Agripina.
"As amigas da Gi, pioneiras da transexualidade na Invicta, encontraram no Porto o palco e o esconderijo para a sua inevitável extravagância. Sabem que a cidade é capaz de venerá-las, ignorá-las, desprezá-las. E todas sabem que o simples facto de estarem vivas é um teste à sua resistência".
A morte de Gisberta não será propriamente uma efeméride, mas há episódios que convém não esquecer. A escumalha imberbe que a assassinou estará em liberdade daqui a menos de um ano.

Human Touch - Nina Simone

É sempre indispensável, mas hoje é obrigatório ouvir Nina Simone. A mulher da voz negra, que interrompia as canções para falar com o público e para soltar gargalhadas, faria hoje, se fosse viva, 74 anos. Morreu há quase quatro anos, no dia 21 de Abril. Já alguém se habituou?

No one seems to care as much
No time to smile, laugh or cry as much
Have we lost the touch that means so much
Have we lost the human touch

No one wants to be alone
To walk or talk and sleep and weep alone
Have we lost the touch that does so much
Have we lost the human touch

Touch me now and let me know
Hold me tight so I can go
Through this misery unafraid
And really knowin' what life is all about

No one wants to live alone
Who wants to smile, laugh or cry alone
Have we lost the touch that means so much
Have we lost the human touch
Yes, yes, yes

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Oscar para melhor actor


Personagem assíduo do carnaval madeirense, Alberto João Jardim decidiu, este ano, prolongar as festividades, pelo menos, até Junho. Demitiu-se ontem do Governo Regional da Madeira, em sinal de protesto contra a aprovação da Lei das Finanças Regionais, mas anunciou no mesmo exacto momento que vai voltar a recandidatar-se, seguro de que os seus conterrâneos não conseguem viver sem a sua demência.
Só pela possibilidade de arredar definitivamente o homem do poder ao fim de 30 anos, José Sócrates já merecia um Oscar. Mas o Oscar irá inevitavelmente para o próprio Jardim: é dramático, cómico, hilariante, ridículo, patético, manipulador, opressivo, anacrónico, repugnante. E, mesmo assim, há quem se deixe atropelar por ele. Se Bush ganhou nos EUA porque não há-de ele voltar a ganhar?
Há três ou quatro anos estive na Madeira e não resisti a soltar perguntas, aqui e ali, sobre a gestão de Alberto João. Não obtive uma única - uma única!!! - resposta. No Funchal, as pessoas vivem fascinadas com a ideia de viverem numa cidade cosmopolita, fashion, turística e solarenga. Aparentemente, isso basta-lhes. Na Calheta, maior concelho do arquipélago com cerca de 12 mil habitantes, a pobreza é indisfarçável. O atraso, a todos os níveis, também. Quando confrontadas com qualquer questão, as pessoas fogem, imploram para que se não lhes fale em Jardim e recusam dar opinião. Não dizem que está tudo bem - não podem, não está e isso vê-se -, mas rejeitam qualquer possiblidade de mudança, vá lá saber-se porquê.
Todos sabemos como isto vai acabar.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Da amizade. Para sempre.

Ele: So, have we lost the human touch?
Ela: Diz-me tu.
Ele: Hmmm...
Ela: Já não posso entrar?
Ele: Pergunta malvada essa, que me coloca na posição de carrasco...
Ela: Não é malvada.
Ele: Da última vez que falámos disseste que fui agressivo contigo. Percebi porquê. Mas não sei se ainda podes entrar. Tem acontecido tanta coisa...
Ela:Coisas boas, espero.
Ele: Não, não foram nada boas. Foi uma época muito complicada, mas acho que até a Lei de Murphy tem um fim de jurisdição. Agora quero valorizar e discriminar os amigos. Os amigos daquela verdade sempre presente e que preenchem tudo.
Ela: Aceito isso (bem... mais ou menos...), ser penalizada pela ausência...
Ele: Espero que não aceites. Porque não tem nada a ver contigo; talvez só comigo. Daí que, provavelmente, tenha sido agressivo e injusto contigo...
Ela: Consegues distinguir a ausência física da ausência de gostar? E perdoar a diferença entre uma coisa e a outra?
Ele: Não há nada para perdoar. Queria que percebesses que não fui precipitado em tudo o que te disse. Pensei muito na nossa relação, fui até ao passado para ver de onde vinha. A verdade é que a nossa relação é muito diferente da relação que tens com a minha namorada.
Ela: Claro, eu sei.
Ele: Ela ensinou-me que tu eras uma fada, um elemento mágico...
Ela: E tu percebeste que não sou...
Ele: Não, não é isso. Acho que o desagravo começou pelo lado dela, por todas as expectativas que ela sempre criou contigo. És como um pai natal, de quem sempre se fala, e por quem eternamente se espera...
Ela: Uma fada que não faz magia... um pai natal que nunca chega...
Ele: Se às vezes nos chateaste ou nos sentimos tristes foi por, inevitavelmente, estarmos apaixonados por ti. E sim, por seres um elemento mágico, uma fada. Encantadora e sedutora.
Ela: E em que momento descobriram que não eram correspondidos? Que eu sentia coisas diferentes daquelas que vocês sentem?
Ele: Não se trata disso. Trata-se de jardinagem. Toda a gente gosta de flores, mas poucos cuidam efectivamente delas.
Ela: Sim, eu sei...
Ele: Depois, não pode haver surpresas por murcharem.
Ela: Gostava que me deixasses contar a minha versão...
Ele: Mas é óbvio que quero ouvir a tua versão. Ouvir-te só. Isso significa estares presente.
Ela: Acreditas que é possível deixar murchar uma flor que se ama? Só porque, às vezes, a vida atropela-nos e deixa-nos sem saber muito bem como cuidar dela? Deixá-la murchar só por absoluta incompetência?
Ele: Sei, mas nada pode ser mais paradoxalmente absurdo, não achas? Porque se não nutrirmos o amor vamos cultivar o quê? O mundo não está a ficar um sítio mais agradável. Só as pessoas podem fazer e criar uma realidade mais suportável. Porquê abdicar?
Ela: Mas achas que deves matar o jardineiro só porque ele falhou? Não é humano falhar?
Ele: Não sou radical. Nunca mataria. É humano falhar, mas mais humano é recuperar das falhas. E concretizando, deixa-te de merdas, não falhaste. A única coisa que magoou e confundiu foi a dissonância entre esse sentimento que trazes em ti e a realidade. Moramos num sítio tão pequeno e já mudámos tantas vezes! Tanta coisa acontece numa distância tão curta...
Ela: Porra, deixa-me entrar! Mas não estejas à porta com uma espada! Dessa forma, não vou conseguir entrar... e acredita, ficarei infinitamente mais infeliz com a perda do que tu...
Ele: Pois, mas ainda não percebeste que ninguém está à porta? Que nada está armadilhado? Que não sou capaz de te convidar para entrar e depois pregar-te uma rasteira? E que sou tão sincero hoje como quando te convidava para fazermos um intervalo e irmos descansar num prado? Neste momento, não sei se estamos a entender-nos...
Ela: Acho que sim, que estamos... A única diferença é que ainda não contei a minha versão. E sinto que, diga o que disser, tu vais sempre achar absurdo, contraditório, inaceitável... talvez seja, não sei. Eu sei que os amigos não se deixam propriamente numa lista de espera...
Ele: Mostra-me o teu lado...

[Ela mostra-lhe o lado dela]

Ele: Pois, mas quase sempre me dá a sensação que tu não percebes bem a nossa posição, a nossa expectativa e postura. Fiquei sempre, aliás, surpreendido e quase ofendido com algumas coisas que dizias...
Ela: Por exemplo?
Ele: Percebo que as digas mas, na nossa realidade, não fazem sentido nenhum. Uma das coisas que mais nos deixava tristes e saudosos era suspeitar que, de facto, podias não estar bem. Não sei qual é a tua perspectiva sobre o que deve um amigo fazer quando vê o outro mal, mas sempre me deu a sensação de que nos entendias mal, como se fossemos um elemento de pressão sobre ti...
Ela: É verdade. Às vezes senti isso, essa pressão...
Ele: Sempre quisemos estar perto para te apoiar incondicionalmente. É quase ofensivo quando dizes que posso estar à porta com uma espada.
Ela: Sei, de coração, que vocês quiseram sempre só que eu ficasse bem. Mas sou assim, desapareço quando estou mal. Não sei fazer da fragilidade um palco.
Ele: Às vezes, penso que a distância já é muita, e que todos confabulámos personagens que foram aos poucos, e conforme as circunstâncias da vida, e os imprevistos da interpretação, dando origem a caricaturas das pessoas reais.
Ela: Achas que nos transformámos em caricaturas? Que temos imagens uns dos outros que não correspondem àquilo que realmente somos?
Ele: Talvez. Por isso sempre rejeitei que te considerasses culpada, quase como se nós te estivéssemos a considerar culpada...
Ela: Mas é isso que parece. E isso também que me trava.
Ele: Não sei. Acho que não sou quem tu me transmites que pensas que sou. Porque jamais fiz alguém sentir o que tu me dizes que eu te faço sentir, o que nao invalida! E, vasculhando a minha memória, tenho dificuldade em saber o que possa ter feito ou dito para que pensasses dessa forma. E isso incomoda-me, como sei que te incomodam algumas coisas que te disse. Daí achar estas percepções tão distintas, intrigantes...
Ela: Mas não há nada de intrigante. O que me fazes sentir existe. A maneira como te via é a maneira como te vejo.
Ele: Continua a ser intrigante.
Ela: Mas o que há de intrigante?
Ele: Não sei.
Ela: Deixaste de acreditar em mim? No que digo? No que sinto?
Ele: Não é isso, e não te sei dizer o que é. Quase me apetece voltar ao início e perguntar-te novamente: have we lost the human touch?
Ela: Continuo a devolver a pergunta.
Ele: Sintetizando, acho que te percebo bem.
Ela:Finalmente, fazes-me sorrir.
Ele: Dou-me melhor com sorrisos.
Ela: Gosto muito de ti. Não será isto o mais importante?
Ele: É importante, sim. E quero que decores, que tatues ou coloques num post-it que não sou um monstrinho a reclamar a tua atenção, o teu carinho. Vivo a amizade de outra forma: quando tenho uma amiga quero dar-lhe tudo o que sou. Estou lá. Nunca me tinha acontecido ouvir de uma amiga o que ouvi de ti. Houve vezes em que achei que eras uma exagerada, que não podias gostar tanto assim de mim...
Ela: Mas gosto. E gosto de forma exagerada - é a única forma que existe para gostar dos amigos.
Ele: É obvio que é importante o amor, o carinho, o gostarmos uns dos outros. Mas também não será igualmente importante que as relações existam? Que funcionem?
Ela: Claro. E quero que a nossa relação volte a existir fora do coração. Estou só a dizer-te que a distância não mudou nada do que sinto. E mais: não há nada mais bonito do que alguém a reclamar a nossa presença. O teu protesto comove-me até às lágrimas.
Ele: Era bom que agora estivessemos a ouvir a mesma música. Conheces bem: "Fistfull of love", do Antony.
Ela: "We live together in a photograph of time/I look into your eyes/And the seas open up to me/I tell you I love you/And I always will." Estou sempre a ouvir o Antony.
Ele: É inevitável continuar a gostar de ti. Apaixonado e irritado por todo o tempo que não estamos juntos.
Ela: Tens noção de há quanto tempo espero ouvir isso de ti?
Ele: Repara que nenhum idoso gosta de recordar os tempos em que namorar era apenas uma longa conversa, uma cantiga do bandido, à janela. Só quero um abraço, um beijo, um roçar de olhares e um sorriso teu.
Ela: Tens isso tudo de mim. E tens mais.
Ele: Não quero pressionar-te.
Ela: Não estás a pressionar-me.
Ele: A única pressão que faria era no teu peito durante um abraço. E assusta-me que tenhas percebido como forma de pressão a minha postura...
Ela: Vou provar-te que tudo faz ainda sentido.
Ele: Mas não tens nada para provar. Nada. Nada. Nada se prova. Eu também não tenho como te provar que não sou quem tu pensas que sou.
Ela: Mas tu és. Eu sei.
Ele: Só quero estar contigo. É só isso. Senão tudo isto será uma história de amor separada, distante, cartas de namorados que se enviam e que, algures no mundo, sabemos que é correspondida. Mas também o Jude Law fartou-se de andar no Cold Mountain só para mostrar que vale a pena estar próximo.
Ela: Obrigada. Pela espera e por tudo.
Ele: Não quero que venhas agora a correr para cá. E não penses que vou agora a correr para aí. Mas gostava que nos encontrassemos com suavidade para disfrutarmos disto. Gosto de ti, porra!
Ela: "Gosto de ti, porra!" sabe melhor do que um gelado de chocolate!
Ele: Eu já podia ter morrido e tu podias não me ter visto a ficar careca...
Ela: Não estás a ficar careca e não havemos de morrer tão cedo.
Ele: Gostar é a melhor coisa que conheço, que alguma vez vou conhecer. Gosto de gostar. Gosto muito de gostar de ti. E isso já me irritou no passado, mas conformo-me no teu charme.
Ela: Também eu. Também eu. Também eu. Não somos assim tão diferentes. Eu só um bocadinho mais atada.
Ele: Caramba, queria tanto poder fazer contigo coisas como as que fiz esta noite. Espero que uma conjugação cósmica proporcione um encontro.
Ela: Se pudesses ver como estou a rir...
Ele: Ficas muito mais bonita assim, lembro-me disso...
Ela: Estás no meu coração. Vais estar sempre. E o coração, quando está cheio, faz-nos rir.
Ele: E tu vens comigo agora. A porta está aberta para entrares.
Ela: Já entrei.
Ele: É óptimo ter-te ressintonizada.

Ressaca

Descobri no sábado à noite que ia passar o domingo inteiro sem internet. Óbvia e estupidamente por não ter pago a factura. Não se faz isto, não se corta a internet ao fim-de-semana, resmunguei. Primeiro com a operadora, depois comigo, depois com quem calhou. Antes tivesse sido a TV Cabo! Antes tivesse sido o gás! Não jantei, queimei duas vezes os collants a acender a lareira (à primeira ainda resistiram; à segunda foi fatal), e fiquei muda a noite toda. Logo naquele dia, pensei, em que tinha tanto para fazer! Superada a telha, percebi que "logo, aquele dia" é todos os dias. Que não há um único dia em que consiga estar onde quer que seja, a fazer seja o que for, sem ter o computador ligado. E, com ele, o outlook, o hotmail, o gmail, o messenger, 150 blogs, a pandora, a última hora deste e daquele site. E que o "tanto para fazer" não passa de um zapping automático, doentio e inútil por todas essas janelas de comunicação que são, afinal, comunicação nenhuma.
Decidi encarar o domingo como um desafio. E a experiência não podia ter sido mais reveladora: o dia cresceu, também em qualidade. O tempo quase sobrou. Consegui fazer coisas que, habitualmente, não tenho paciência nenhuma para fazer. Como, exemplo dos exemplos inéditos, ir ao ginásio. Como voltar a pintar e costurar à moda antiga. Como ler jornais sem estar a pesquisar coisas ou a fazer downloads ao mesmo tempo, como ver noticiários sem o computador no colo, como pegar em livros de carne e osso. Como estar com alguém sem estar sempre a pedir "espera aí, espera aí..."
Consegui, finalmente, depois de incontáveis promessas incumpridas, não estar ligada à ficha. Parece ridículo, mas foi uma sensação única de liberdade. Atrás do fim de um vício, a abolição de outros vícios são possíveis. O próximo será, seguramente, o telemóvel.

sábado, fevereiro 17, 2007

O Douro é amor


Nada lhes rouba a alegria de existirem ali, em Almendra, desabitada freguesia de Foz Côa. Nem a operação ao braço que impede Luís Maia, 78 anos, de limpar as oliveiras, nem a ausência do comboio que antes o levava, a ele e à sua Cândida Furtado, um ano mais nova, a visitar mais vezes os filhos, um na Guarda, dois em Lisboa. Vivem assim, um para o outro, há 54 anos. “Já casámos segunda vez”, vertem orgulho pelas bodas de ouro. Ainda parecem namorados. Ela trata da lavoura; ele conduz a burra. “Tem volante e tudo e não é preciso carta de condução”, ri Luís. Demoram três horas a percorrer 12 quilómetros. É a distância que os separa de casa aos campos, todos os dias. Todos os dias sozinhos. “Mesmo a pagar não há quem queira trabalhar".

O Douro é desolação


Nem Mário Soares lhes valeu. Em meados de 1988, quando o então presidente da República, no rescaldo de uma vitória suada, visitava Barca D’Alva, terra de socialistas e de funcionários ferroviários, “o povo pediu-lhe que não acabasse a linha do Douro. Ele prometeu que não fechava, mas fechou”. A primeira dama, Maria Barroso, terá sido uma das últimas pessoas a fazer a viagem. O troço entre Pocinho e Barca D’Alva foi desactivado a 19 de Outubro desse ano. A data é dita de cor pelos funcionários.

“Foi um assalto. O inspector ligou-me a dizer que se a comunicação social viesse cá e me perguntasse alguma coisa, que eu não sabia de nada. Nesse dia, o comboio foi embora e já não voltou”, recorda Luís Patrício, homem de 72 anos, ex-revisor de material, que haveria de esperar longos anos pela reforma. Mais de 30 famílias, como a dele, saíram dali, destacadas para outras localidades. Cerca de 42 funcionários – maquinistas, revisores, condutores, guardas fiscais –, abandonaram a estação, que agora é habitada por ciganos.

O tempo em que dezenas de vagões enchiam a ponte internacional – tractores, electrodomésticos e toda a maquinaria da indústria têxtil do Minho –, é recordado como o tempo em que foram felizes. “Havia aqui um movimento que ninguém imagina. Tínhamos a melhor estação do país, com polícia internacional e tudo. E o país inteiro vinha aqui só para comprar laranja, amêndoa, azeite”.“O que nos fizeram foi um crime”, acentua António Messias que, desmotivado, pediu a reforma mais cedo. Chefiava a equipa de factores quando tudo acabou. “Já fomos felizes aqui. Barca D’Alva já foi uma grande terra, mas quiseram dar cabo de tudo e conseguiram. Hoje, vivemos sem pernas”.

Recentemente, no arranque das obras do Museu do Côa, Isabel Pires de Lima defendeu a reactivação da linha-férrea entre Pocinho e Barca D’Alva. Mas a intenção da ministra da Cultura, além de não suscitar “confiança” em terra de quem precisa “ver para crer”, chega já demasiado tarde. “Até podem deitar fogo à linha; agora, tanto faz”, diz a voz magoada de Messias.

“O comboio faz-nos tanta falta como o pão para a boca. Vivemos aqui enfiados sem ter onde ir distrair”, juntam-se à conversa os 72 anos de Carlos Salgado. “Mas se querem que a linha seja só para os turistas, então bem podem ficar quietos. É como os barcos: só anda neles quem dinheiro. E só andam no Verão. Nós vamos continuar aqui esquecidos”, insiste. “Tão esquecidos que daqui a dez ou quinze anos a terra deixará de existir”, reforça Patrício. “Ou alguém acredita que a CP vai aqui investir os milhões necessários? O problema não são as linhas; são as pontes”. Serão as duas coisas: as linhas estão todas desdentadas e os pilares das pontes já não oferecem segurança.

Foi o encerramento da linha que provocou a desertificação do Douro ou a imigração da região que levou à anulação da rede ferroviária?

Em Figueira de Castelo Rodrigo, num café onde a única pessoa com menos de 25 anos é o proprietário, Nicolas Lage, não há dúvidas. “A culpa é do poder político que deixou ir tudo abaixo. No Verão, a população dobra. Mas os turistas vão dormir a Vegaterron, em Espanha, porque aqui não há hotéis”. O país vizinho terá percebido o sinal e já começou a fazer obras na sua parte da rede. “Estão a recuperar 80 quilómetros de linha; nós temos 28 e não fazemos nada”.

Revolta-se, mas não desiste. Em 1976 residiam ali três mil habitantes; hoje resistem 600. Nicolas diz que existem na freguesia cerca de 50 pessoas da idade dele. Se existem, não se vêem. Ele já foi embora várias vezes, mas voltou sempre. “Gosto disto e acredito que pode haver aqui futuro. O que puder fazer, farei”, promete. Já faz: num sítio onde “os horários de comboio não coincidem com nada”, ele recolhe as receitas médicas da população inteira. Ali, os medicamentos são pagos no bacão do café.

O Douro é um milagre

(Foto: Artur Machado)

Não é um milagre, mas é igualmente esmagador. A viagem pela linha do Douro, do Porto até ao Pocinho, parece uma passagem bíblica com o comboio a circular tranquilamente sobre a água. Mas a visão indescritível de uma paisagem que a mão humana mal tocou, poderá ter os dias contados. A possibilidade de a rede férrea ficar interrompida na Régua está longe de ser só um boato. E, de resto, foi de um boato que nasceu o início do fim da linha que prolongava a experiência até Barca D’Alva. Enquanto existe, a única garantia é a de um passeio inesquecível.

7.26 Campanhã
O dia, como a maioria das pessoas, ainda não acordou totalmente. Emite, a custo, os primeiros raios de luz ainda baça. O comboio com destino ao Pocinho é feito de três carruagens azuis de chapa grafitada. Parece desconfortável, mas não é. Os bancos de madeira há muito que foram substituídos por cadeiras almofadadas. A lotação não está esgotada, mas há muita gente e sacos gordos de viagem. É sexta-feira e o bilhete custa 10.90 euros. Os toques polifónicos a esta hora são ainda mais insuportáveis. As crianças são o único repositório de boa-disposição.

7.34 Ermesinde
O comboio está cheio. Duas mulheres juntas são as únicas adversárias capaz de competir com a euforia infantil. Trocam piadas com o funcionário, contestam as políticas do Governo, recapitulam o resultado do referendo sobre a despenalização voluntária da gravidez e reprovam-no com argumentos que passam pelo sistema nacional de saúde e pela lista de espera a que dizem ser votados os velhos. Lêem o jornal e a notícia do acidente no Tua em voz alta. Lamentam as perdas e que a tragédia possa retirar-lhes o meio de transporte. São professoras do ensino básico. Hão-de sair quatro estações depois de terem entrado, na Livração. Como é que alguém consegue maquilhar-se com o comboio em plena trepidação?

8h Paredes
Metade dos passageiros aproveita a viagem para completar as horas de sono que ainda faltam. A funcionária que vende batatas fritas e Super Bock não tem, por isso, clientes. Fica estacionada ao lado de Catarina, menina de sete anos que não quis ir à festa de Carnaval da escola, mas que se entusiasma a mostrar as máscaras que desenhou. Lanço o primeiro olhar irritado ao vizinho de trás, homem de computador portátil, que não pára de dar joelhadas no banco enquanto tenta descortinar uma posição para dormir. Não a encontra e sai logo a seguir, em Penafiel.

8.33 Marco de Canaveses
A paisagem começa a retirar protagonismo aos passageiros e nunca mais desprenderá da janela o olhar. A viagem parece uma passagem bíblica com o comboio no lugar de Cristo a caminhar sobre as águas. Não é um milagre, mas é igualmente esmagador. Tem de irresistivelmente belo o que contém de perigo. Do lado direito não há chão, não há nada: só o imenso rio Douro, os desfiladeiros, as gargantas. E do lado de lá da margem, as primeiras flores de amendoeira, em rosa-rosa, em rosa-branco, os socalcos desenhados como obras-de-arte e um cenário inteiro que a mão humana, para o bem e para o mal, parece ainda não ter tocado.

8.45 Mosteirô
Sucumbo ao cansaço de uma noite pouco dormida. Acordo como uma ilha, rodeada de água por todos os lados. Não cabe em palavras aquela beleza. Não é um milagre? Só pode ser.
9.01 Ermida
O ruído leve e continuado da viagem, um sol que raramente experimento de manhã e a paisagem como motor de libertação expulsam a cabeça do comboio. Só o corpo está limitado às fronteiras do meio de transporte.

09h15 Régua
“O caminho de ferro foi uma revolução. Se todas fossem assim…” lê-se numa placa da estação. O comboio, que cruza as primeiras quintas e casas senhoriais, começa a perder utentes.

10h06 Tua
Ermelinda Castro é a única resistente. Já todos os passageiros encontraram o seu apeadeiro. Só ela continua ali, a caminho do “convento”. É assim que as amigas do Porto catalogam as suas idas para Alfândega da Fé. Vai para lá desde menina, desde os tempos em que o pai vendia cortiça "aos Amorins" - os tempos em que a viagem era partilhada com as primas e demorava um dia inteiro. Mas o seu olhar, fixo no exterior, denuncia um encanto que nunca se perdeu. “É uma viagem maravilhosa, lindíssima”, repete, com o dedo indicador esticado a acompanhar legendas e memórias. Da infância e de quando ainda não era viúva. O comboio não a leva ao destino. No Pocinho terá que apanhar um autocarro. Depois, já sabe, “são 15 dias em que os únicos passeios são para ir burcar água à fonte e levar o lixo ao depósito”. E o silêncio “essencial para a saúde”.

10h33 Vesúvio
O rio já atravessou a ponte de ferro para o lado esquerdo. É desse lado que agora o olhar se lança sobre os precipícios, os túneis e a Quinta da Ferreirinha, cenário de filme recente.

11h42 Pocinho
A viagem chega ao fim, pontualíssima, numa terra onde o tempo parou. Não há nada além de uma estação renovada. Só dois autocarros e um taxi aguardam quem precise continuar. São mais de quatro horas de percurso para chegar a um sítio que parece sítio nenhum. O senhor Poppe costuma dizer que "a viagem é o viajante" e é verdade.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Falso referendo

Afinal, não era um referendo. Era só uma brincadeirinha de meninos que parecem não ter muito que fazer. Alguém duvida que o sentido de humor impera na Câmara do Porto?

"Por penosa falha técnico-informática esteve ontem visível no novo espaço Consulta deste site, durante mais de meia hora, a desagradável pergunta “Concorda com a política de oposição do JN à Câmara do Porto, se realizada por opção do director, desde os primeiros dias do mandato e sujeita a desmentidos legalmente consagrados?”
Tratava-se apenas de uma questão-teste que, durante os necessários ensaios técnicos que antecedem a troca de tema no espaço em causa, por lapso, ficou indevidamente visível no écran, em lugar da pergunta: “Considera que o JN é isento e rigoroso no tratamento que dá à informação sobre a Câmara do Porto?” Do facto pedimos desculpa aos nossos visitantes e, em particular, ao Senhor Director do JN, José de Leite Pereira".

Novo referendo

A Câmara Municipal do Porto acaba de lançar um referendo à escala municipal.

Concorda com a política de oposição do JN à Câmara do Porto, se realizada por opção do director, desde os primeiros dias do mandato e sujeita a desmentidos legalmente consagrados?

Pocket Symphony


Os Air lançam o novo trabalho, "Pocket Symphony", no dia 5 de Março. O álbum já está disponível na internet e é absolutamente obrigatório.

Exercício de cidadania

É sempre o mesmo nojo que me invade em cada reunião de Câmara, em cada Assembleia Municipal do Porto. E sempre, sempre a mesma tristeza. Saio invariavelmente muda; hoje saí pior, embora o panorama não tenha sido diferente ou agravado por qualquer circunstância nova. É só a continuada falta de respeito, a persistência na ironia bacoca, a arrogância sem critério, a total ausência de pensamentos ou posturas nobres que me atropela e impede de continuar a acreditar que é inevitavelmente por ali, pelo poder político, por aquele poder político, que alguma coisa pode ainda mudar, melhorar.
Hoje discutia-se exclusivamente a política cultural da cidade. A Oposição queria respostas; a Maioria PSD/PP (não) respondeu com um entediante powerpoint retirado da internet, elencando as inúmeras estruturas da cidade. Tal e qual um filho questiona os pais sobre a ausência de uma alimentação equilibrada e os pais respondem com os quadros e os bibelots que existem lá em casa. "É isso que poderemos deixar às gerações vindouras".
No fim, o contraste. O aterrador paradoxo capaz de arrancar arrepios ao mais empedernido coração. Pessoas que da cultura só conhecem o nome, mas dos filhos, vários e doentes, conhecem a pobreza. Vivem todos num quarto ou numa cave ou em qualquer outro sítio desumano. Mesmo assim pedem para não serem despejadas. A resposta do Executivo, para quem a coesão social é a prioridade, sai com a mesma secura, a mesma insensibilidade, o mesmo riso despropositado nos lábios. "Já tínhamos avisado. Não pode ter ali a barraca. Há uma via nova para abrir".
O povo encolhe-se, trata-os por "vossas excelências", treme a ler os bilhetes escritos à mão que leva para apresentar as suas angústias sem se enganar, mortifica-se quando se engasga pressionado pelos três minutos que tem de antena. Sai como entrou: a pedir desculpa por existir.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Quem disse que não é possível começar outra vez?


Da paixão

(Foto: JMG)

Já ninguém se apaixona como antes. De forma arrebatada e bloqueadora. Já ninguém quer morrer de amor, até porque depois não se morre realmente e ressuscitar do estado temporário de sonambulismo dá muito mais trabalho. Já ninguém escreve cartas dramáticas, terminais, com selos colados com sal das lágrimas num envelope de papel, nem fica em casa fechado, aturdido, a ouvir músicas de fazer chorar as pedrinhas da calçada. Já ninguém perde a fome quando o coração acelera, nem falta à escola ou ao emprego alegando uma inusitada dor de barriga, que é afinal do peito. Já ninguém fica às escuras a jurar que nunca mais vai sentir isto outra vez. Já ninguém acredita que há coisas que só acontecem - quando acontecem - uma vez na vida e que há uma única pessoa para sempre, porque há sempre demasiadas pessoas a gravitar à nossa volta - todas únicas, todas especiais. Já ninguém se apaixona como os adolescentes - nem sequer os adolescentes. A paixão imberbe, inocente, total, ansiosa e em carne viva acabou.
Antes, quando alguém julgava apaixonar-se a sério, lutava incansavel e pacientemente pelo objecto da paixão. Mesmo que isso implicasse vergonhas, meter cunhas aos amigos, fazer cenas e figuras tristes. Hoje, quando alguém tem a vaga impressão de estar apaixonado, fica à espera que passe. E que não atordoe muito enquanto não passar. Sem perder a pose. Antes, quando alguém estava apaixonado a sério e não era correspondido, cortava relações. Era o tudo ou nada. Hoje, quando a paixão não é correspondida, as partes ficam amigas e partilham o mesmo café. A vida pela metade é hoje mais do que razoável. Antes, a impossibilidade da paixão desejada impossibilitava outras paixões. Hoje, a paixão incumprida é o motor essencial para abertura a novos relacionamentos. Antes a paixão era confessada e assumida; hoje é disfarçada e recalcada.
As histórias todas têm um fim. Mas na vida, o fim de cada história significa sempre o início de uma nova. E, às vezes, as que que terminam nunca chegaram realmente a começar. Poderia ser mais triste?

Little Children

(Realização: Todd Field)

Em que momento param os adultos de crescer? No momento em que decidem casar e ter filhos? Ou no momento em que os progenitores deixam de lhes colocar na mesa a comida? No momento em que interrompem a carreira? Ou no momento em que desistem de conseguir ter uma? Quando encontram um brinquedo novo? Ou quando não prescindem de um vício antigo?

Little children, nomeado nas categorias para melhor actriz principal (Kate Winslet), melhor actor secundário (Jackie Earle Haley) e melhor argumento adaptado (de Tom Perrotta) é sobre pecados inconfessáveis. Há pecados maiores do que outros?

domingo, fevereiro 11, 2007

Referendo - resultado

2007

Seis em cada dez portugueses votaram Sim.

Sim: 59.25%
Não: 40.75%
Abstenção: 56.4%

1998

Sim: 48.70%
Não: 51.30%

Aguiar Branco

"Vamos ter um código penal e dois sistemas: como vamos combater o aborto clandestino a partir das dez semanas e um dia?

José Sócrates

"O resultado do referendo representa a dignificação da democracia portuguesa. O povo falou de forma clara; o resultado é inequívoco. A tarefa agora é respeitar a vontade do povo português. A lei que iremos discutir e aprovar na Assembleia da República significa que o aborto até às dez semanas deixará de ser crime no nosso país. A lei deve obedecer a um período de reflexão para que a decisão seja ponderada e não fruto de um qualquer desespero".

Gentil Martins

"O serviço nacional de saúde não pode colocar, nas listas de espera, o aborto à frente do cancro. Do cancro ninguém tem culpa; do aborto já não é assim".

Paulo Portas

"A sociedade está mais laicizada hoje do que há dez anos".

Constança Cunha e Sá

"Houve um campeonato entre Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes para ver quem era mais pelo não, o que demonstra bem a desorientação de um partido que não quis assumir posição oficial".

Jerónimo de Sousa

"O PCP apela à rápida concretização do processo legislativo, respeitando os conteúdos e resultados do referendo. A vitória do sim serve para por fim a um demorado período dilatório".

Marques Mendes

"A votação mostrou um país dividido. A nova lei deve conciliar os portugueses evitando clivagens e conflitos. A nova lei deve ser baseada na prudência e no equilíbrio".

Francisco Louçã

"Mais de um milhão de pessoas acrescentou o seu voto ao referendo de 98 e vinculou o país".

Problema de expressão

Independentemente da posição que ganhar daqui a um minuto, o país continua a não querer ser ouvido. Será porque não sabe?

Pelo sim


"Para Platão, a contemplação era a forma mais elevada da actividade humana. Uma visão semelhante existia na Índia Antiga. O objectivo da vida não era a alteração do mundo. Era dele possuir uma visão correcta".
John Gray in "Sobre Humanos e outros animais"

sábado, fevereiro 10, 2007

No Aleixo II

É um "solitário na selva" porque diz não ter com quem conversar. Herdeiro da "loucura dos anos 70" e de um ideal de liberdade, que continua a perseguir, e que passa por não ter horários a cumprir, Júlio é, aos 43 anos, pai de dois filhos exemplares: um tem 22 anos e é finalista de engenharia mecânica; o outro tem 16 e é campeão nacional de natação. Vivem com a avó materna. Quase nunca os vê "para não os traumatizar". Mas lembra-se do tempo em que o dinheiro que ganhava como chefe superior da alfândega dava para consumir - ele e a mulher que entretanto perdeu - e para lhes pagar os melhores colégios, sempre particulares. "Tenho muito orgulho por eles não serem como eu e umas saudades que às vezes me tiram o ar. Mas não quero que me vejam assim", insiste. Se o vissem, veriam um homem extraordinariamente bonito, aparentemente apaziguado, de voz doce e culto. "Tenho o 11º ano completo e o gosto pela leitura. Leio o Público todos os dias. Não sou burro. Por isso, sou solitário".
Não quer ver os filhos. E também não quer ver a mulher com quem esteve casado 12 anos e por quem continua "terrivelmente apaixonado". Diz que sabe que ela sente o mesmo, que não o esqueceu. "Sei porque sei, sei porque sinto". Se se juntarem arruínam-se. "Não é possível manter uma relação saudável entre duas pessoas que consomem. Fica muito caro. Caro ao ponto de não ser possível sustentar". É possível quando uma das duas não consome? "É pior. Implica muito sofrimento e privação. Tudo gira em torno de quem precisa. Por isso continuo sozinho. Não quero magoar ninguém".
Não pede dinheiro para a droga, não rouba, não arruma carros. Faz os "canecos" - espécie de cachimbo em miniatura - necessários para o consumo da heroína com restos de alumínio e com varetas de guarda-chuvas que encontra na rua e vende-os a cinco euros. "Faço uma coisa e pagam-me por isso. É honesto, não é?". Há dez anos consumia cem contos por dia; hoje, dez euros bastam-lhe. "Acalmei, é verdade, mas continuo a querer ver as luzes todas que vi quando experimentei drogas duras pela primeira vez. O Porto todo com milhares de luzes e o lado de lá da marginal. Não nego: continuo a querer sentir isso. Mas também ainda não morri, não é?"
Não morreu e sente-se "abençoado por não ter sida". Quando ouviu falar do vírus, algures em Espanha dos anos 80, já tinha trocado demasiadas seringas, já tinha penetrado demasiados corpos que nunca mais voltou a ter. "Fiz as análises de olhos fechados. Quando soube o resultado senti que a vida tinha recomeçado, que nunca mais nada voltaria a ser como antes".
Quando avisou o patrão que ia despedir-se, o homem abraçou-se a ele a chorar. "Contei-lhe que estava de tal maneira desorientado que podia começar a fazer asneiras. E não queria. Ele chorou por nunca ter percebido". Por nunca ter percebido que não havia uma única hora do dia em que "o funcionário em quem mais confiava" vivia preso. Que se fechava na casa de banho para se injectar. E que o salário já não acompanhava o ritmo das ressacas. Deixou de se injectar depois de ter passado cinco anos na prisão. "Mas não posso dizer que não gostei. Era diferente". Aliás, acrescenta, "tão diferente como a droga do estabelecimento: melhor, mais fácil de comprar e mais barata".
Tem dúvidas em relação à instalação de uma sala de consumo assistido no bairro que agora frequenta. "Não gostava que os meus filhos me vissem a entrar para lá. Não gostava que as pessoas começassem a encarar o consumo com naturalidade. Não é natural. E não gostava que um dia os meus próprios filhos entrassem numa dessas salas". Por bem menos repreendeu o mais novo. "Tive uma conversa séria com ele quando soube que fumava tabaco. Não há sensação pior do que falar com alguém quando não se tem moral para falar". Mas tem certezas em relação ao futuro. "Sei que vou sair daqui. E que vou deixar de ter que viver sozinho para não magoar as pessoas". Recorda a última conversa que teve com o pai no último dos nove dias em que esteve internado no sanatório com tuberculose. "Sei que não cumpri a 100% o que esperavas de mim. Desculpa-me", pediu-lhe, com a mão na mão de quem não lhe respondeu.

Um dos dois telemóveis que traz presos na cintura começa a vibrar. "Os telemóveis são tão importantes para mim como um braço. Sem eles não vivo". Do lado de lá do telefone alguém o chama. Júlio perde a serenidade, diz que tem que ir embora. Um dia diz que vai montar um projecto nas escolas "para explicar aos jovens que a droga não é o caminho". Mas hoje ainda é demasiado cedo para isso.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

No Aleixo I

Tem um pé calçado com vários pares de meias, mas sem sapato. O outro pé não existe. Nem a perna. Perdeu-a juntamente com dois amigos num acidente de automóvel. “O carro ia em excesso de velocidade e foi contra uma árvore. O condutor e a rapariga que ia ao lado morreram. Eu fiquei assim". Não diz há quanto tempo foi. Mas foi há tempo suficiente para aprender a manusear a cadeira-de-rodas com perícia. O cabelo-avelã está todo desgrunhado e nem assim perde o brilho. Usa dois totós, apesar de já ter 24 anos. E, no colo, não dispensa uma boneca e um saco de rebuçados.
Sobre a pele morena, os olhos azuis, grandes, luminosos, desviam a atenção dos olhares dos outros da cadeira sem a qual não existe, ali, no meio da estrada, quase sempre em frente ao Hotel Ipanema Park, a caminho da Foz. Os carros passam, desviam-se. Às vezes, param. Ela rodopia, raramente sorri, estende a mão e regressa à linha que divide as duas faixas de rodagem. "Sim, sei que sou bonita. Como posso não saber? Estão sempre a dizer-me isso".
Quando há jogos de futebol e a cidade fica vazia, ela continua lá. Quando chove, como agora, e os trovões caem do céu para se estatelarem no chão como caixas de sapatos com lâmpadas, também. Quando o cansaço a atormenta, desce a rua até ao Aleixo. Não tem casa. Dorme no hall de entrada da segunda torre. E come o que lhe dão. Quando lhe dão.

Bruna tem cara de boneca como a boneca que traz pousada no regaço. “Gosto de bonecas e de ursos de peluche”, conta como se tivesse parado de crescer no momento em que deixou S. Miguel, nos Açores, para ir para o Porto com a mãe e os dois irmãos mais novos. Tinha nove anos. O pai nunca soube muito bem quem era. Estudou num colégio de freiras até ao 7º ano. Depois foi trabalhar para Aveiro. “Era empregada numa loja de roupa”. Nessa altura, conheceu o amor que seria de uma vida inteira se agora não o odiasse. “Vivi com ele sete anos. Ele tinha problemas de droga. Tentei ajudá-lo, mas não consegui. Estragou-me a vida. Tirou-me tudo o que tinha”. E também a filha, Catarina, que agora tem sete anos e vive com os avós paternos. “Eles deixam-me vê-la, mas eu não quero que ela me veja assim. Já é grande, já percebe as coisas. E, um dia, quando isto acabar, não quero que ninguém saiba que passei por isto”.

Não diz o que é isto. Os amigos (?) dizem que isto é a heroína. Dizem que vê cobras quando alucina. Ela diz que tem fobia a cobras. E que não tem amigos.

No dia 1 de Abril faz 25 anos. “Já estamos em Fevereiro?”, pergunta. O presente de aniversário é incontornável: regressar aos Açores. “Não estou farta do Porto; mas estou farta da vida que tenho aqui”. E farta que todos digam que a vão ajudar e que depois nunca façam nada. “Todos dão conselhos, principalmente as mulheres: que eu não precisava de andar assim, que me podiam ajudar… mas eu é que sei. Sei que não me lembro da última vez que fiz fisioterapia, sei nem para uma instituição consigo ir e sei que as pessoas falam sempre demais…”

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Pillowman vota Sim

O Pillowman, criação soberba do soberbo dramaturgo irlandês Martin McDonagh's, é a favor da despenalização voluntária da gravidez. O Pillowman, que Paula Rego transformou numa extraordinária obra de arte, defende a possibilidade de abortar como forma de evitar o sofrimento das crianças quando crescerem. O Pillowman, que Tiago Guedes encenou naquela que foi talvez a melhor peça de teatro do ano passado, já faz disso a sua vida: o visionário personagem de almofadas procura crianças a meio da noite, enquanto dormem, e encoraja-as a suicidarem-se para que não tenham de sofrer depois.

E se o Pillowman existisse?

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Repeat

I was lying in my bed last night staring
At a ceiling full of stars
When it suddenly hit me
I just have to let you know how I feel
We live together in a photograph of time

I look into your eyes
And the seas open up to me
I tell you I love you
And I always will
And I know you can't tell me
I know you can't tell me

So I'm left to pick up
The hints, the little symbols of your devotion

And I feel your fists
And I know it's out of love
And I feel the whip
And I know it's out of love
And I feel your burning eyes burning holes
Straight through my heart
It's out of love

I accept and I collect upon my body
The memories of your devotion

Give me a little bit serious love
Give me a little full love
Be full of love
Fists, fists, fists full of love...

'Fistful of Love' by Antony and the Johnsons
( Featuring Lou Reed )

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Rui Rio - Um livro de estilo

Numa semana em que o país parece estar exclusivamente concentrado na discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, só Rui Rio consegue resgatar-me do tédio noticioso e envolver-me na deliciosa bruma das coisas que ainda conseguem surpreender-me.
O autarca portuense prepara-se para lançar um Livro de Estilo de jornalismo, à semelhança dos que foram, há já vários anos, editados pela TSF e pelo Público. E partilhou, no início desta semana, a pré-publicação da obra - espécie de tese de mestrado, que usa como objecto e amostra de estudo as edições dos dias 1 e 2 de Fevereiro do Jornal de Notícias, para tentar provar o "jornalismo de péssima qualidade" seguido por aquele matutino - no habitual site da autarquia. O texto, imodestamente, intitula-se: "Análise: Jornalismo de péssima qualidade para denegrir a Câmara". (Há semióticos na Câmara e ninguém nos disse nada...)
1. Os jornalistas não devem usar "verbos que simbolizam desagrado, hostilidade, manipulação de factos". A saber: revoltar, sobretudo se em causa estiver o que a edilidade supõe ser meia dúzia de pessoas "a trocar impressões" - hoje, às 16 horas, veremos quantas são as pessoas e quais as impressões que efectivamente as mobilizam; ignorar, contestar, retirar, protestar... A lista de verbos vem adicionar-se a uma lista de adjectivos já anteriormente divulgada e onde figura o famigerado "energúmeno", que levou Augusto M. Seabra a sentar-se num tribunal, acusado de abuso de liberdade de expressão.
2. Os jornalistas não podem ser factuais. Alguns exemplos: se existir um lavadouro que parece uma espécie de esgoto a céu aberto, os jornalistas não devem denunciá-lo; menos ainda ilustrá-lo com a fotografia do local sob pena de transmitir da cidade a ideia "de um cenário tipicamente rural"; se a Câmara não renovar, pela primeira vez em cinco anos, um acordo que garante a aferição da qualidade da água pública, o jornal não deve dizê-lo para não parecer que "a Câmara não tem projectos, nem cuida da cidade"; se a Câmara pedir um empréstimo (2,5 milhões de euros), os munícipes não devem sabê-lo.
3. As notícias devem ser equitativamente distribuídas pela região. Se um jornal tiver, por exemplo, um caderno local dedicado à Área Metropolitana do Porto, não deve privilegiar o noticiário daquela que é, por enquanto, e supostamente, a sua principal cidade. Ou seja, em seis páginas de suplemento dedicar-lhe metade é absolutamente inaceitável. O que acontece em Santa Maria da Feira ou na Trofa é tão importante como o que acontece no Porto. Não o encarar desta forma é uma fórmula traiçoeira para "dar uma imagem geral de contestação e revolta na cidade", sobretudo quando "todas as notícias apresentam um título negativo sobre a Câmara do Porto ou mesmo sobre o seu Presidente".
4. Títulos negativos são, obviamente, punidos com retirada de carteira profissional. Rui Rio não é insensível a nada, não ignora nada, não é culpado de nada. Quem disser o contrário, esse sim, é um energúmeno.
5. As citações que até aqui eram usadas para atestar a veracidade das notícias, deverão passar a ser usadas com parcimónia caso não sejam vantajosas para a autarquia. “Vou pagar o dobro e nem vidros tenho” ou “É o mesmo que me dizerem para não comer”; e ainda “A minha reforma só foi aumentada seis euros” serão claramente censuradas.
6. As fotografias deverão ser substituídas por pinturas de... vá lá, Monet. Sim, paisagens. Porque os repórteres fotográficos, contaminados pelo espírito malévolo dos jornalistas, tenderão a construir imagens que coloquem o leitor a ver, literalmente, o contexto da notícia. Por exemplo, o Bairro do Aleixo - um dos maiores centros de tráfico de droga do Porto - não pode fotografar-se a partir de um dos muitos vidros partidos que por lá existem. Isso é querer "montar um efeito de caos" que obviamente não existe ali.
Nas notas finais, Rui Rio conclui que "a polémica linha editorial" do JN é, como esclarece no título da obra, "de péssima qualidade", mas salvaguarda que o estilo usado para noticiar a cidade "contrasta claramente com as restantes páginas do jornal onde os assuntos positivos e negativos são noticiados com aceitável factualidade".
O Livro de Estilo ainda não tem data de publicação, mas é provável que os próximos capítulos continuem a aparecer no site da Câmara.

domingo, fevereiro 04, 2007

Clubbing na Casa da Música

São recorrentes as críticas. E a Casa da Música, enquanto projecto, às vezes, parece estar sempre à beira de se afundar. Ontem esteve toda cheia outra vez. É nessas alturas que é bom sentir que tudo continua a fazer sentido.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Portugal dos pequeninos

No início de Janeiro, quando a maioria ainda não tinha despertado da noite de passagem-de-ano, um bebé era abandonado num centro comercial do Porto. Ninguém o reclamou; ninguém, no seio da família ou do círculo de amigos, suspeitou de alguém que pudesse ter estado, e subitamente deixado de estar, grávida. Nem sequer o putativo pai. O bebé será agora entregue para adopção num processo que, como todos os processos dessa índole, poderá durar 36 meses. Se no último dia desse período surgir algum parente relacionado com a criança, o processo voltará à estaca zero. Nessa altura, o bebé já não será bebé. Terá, pelo menos, três anos. E um ponto de interrogação no caminho.

Em Novembro do ano passado, um bebé foi encontrado ao lado de um contentor do lixo, depositado num banco de jardim de uma qualquer cidade, embrulhado num saco térmico. Resistiu ao frio de Natal por ter sido abandonado como uma sopa. Os médicos ficaram comovidos. Poderá a criança comover-se com a sua resistência quando crescer?

Alguns bebés têm nomes, têm rostos. E têm coisas que nunca ninguém saberá. Mas não tiveram futuro. Porque alguém o abortou. A sangue frio.

Em Maio de 2005, Vanessa, depois de cinco anos de pingue-pongue entre a avó, a mãe e a vizinha a quem chamava madrinha, foi encontrada a boiar no rio Douro. Alguém jurava que ela tinha fugido. Ao contrário, os factos provariam que a criança tinha as pernas queimadas, os braços torrados pela serpentina eléctrica de tostar o leite-creme, o corpo inteiro com marcas de mergulhos involuntários e demorados em água a escaldar. As feridas do coração não eram visíveis a olho nu. Nem no raio X de qualquer especialista.
Na recta final de 2004, Joana desapareceu para sempre. A parede da casa onde foi morta pela mãe e pelo tio denuncia que as suas mãos escorregaram, com suor incrédulo, sobre ela. A parede diz ainda que ouviu a sua dor: “Por favor, por favor”. Mas uma parede não tem vida; não a podia salvar. Quando, um dia, a criança – ou o que sobrou dela -, reaparecer a boiar no rio, numa pocilga, ou numa lixeira será tarde demais. É sempre tarde demais.
Os bebés não podem ser privados da sua vida, mesmo se ainda têm, apenas, dez semanas dentro de um útero. Aprovar a interrupção voluntária da gravidez é quase pecado. Mas podem se ser tratados como sacos descartáveis; podem sofrer até onde as palavras não chegam para o descrever; e podem, quando sobrevivem, crescer ao sabor da imprevisibilidade neurótica de quem os gerou.

No Portugal dos pequeninos valores é assim: podemos ser todos felizes se todos fecharmos os olhos e fizermos de conta. De conta que o Portugal dos pequeninos é o país da Alice-maravilha.