Todas têm o mesmo sonho: ser maiores do que a vida. Ser como as divas de plumas e eternidade que lhes forram as memórias e as paredes de casa. Continuar a brilhar depois de as luzes todas se apagarem, mesmo que elas, mulheres que guardam o corpo de homem como um segredo, da luz conheçam só a interior. E a dos palcos mais ou menos decrépitos de glórias sempre fugazes. A outra, a luz do dia, não é para elas.
À luz do dia apontam-lhes o dedo - às vezes, apontam pedras -, e a má-língua. Mesmo que elas vivam a driblar os traços masculinos e de envelhecimento. O dedo esticado dos outros, sempre fértil em etiquetas para catalogar aquilo que não podem ou não sabem compreender e assimilar, dói quase tanto como serem atiradas para um poço. Mesmo para quem escolheu viver a vida de outra forma. Sobretudo para quem escolheu viver a vida de outra forma.
"Ele, ela, ele", excelente reportagem assinada por Ricardo J. Rodrigues, este domingo, na Notícias Magazine, é sobre isso. Sobre as mulheres-homens, cuja vida é comandada pelos sonhos. Sobre mulheres como Gisberta, jackpot de exclusões-sociais-pós-ambições-falidas, que morreu faz amanhã exactamente um ano. É sobre todas as outras que morreram também e ninguém sabe. É sobre as amigas de Gisberta: Katty Wandolly, Wanda Morelli, Tânia Star e Agripina.
"As amigas da Gi, pioneiras da transexualidade na Invicta, encontraram no Porto o palco e o esconderijo para a sua inevitável extravagância. Sabem que a cidade é capaz de venerá-las, ignorá-las, desprezá-las. E todas sabem que o simples facto de estarem vivas é um teste à sua resistência".
A morte de Gisberta não será propriamente uma efeméride, mas há episódios que convém não esquecer. A escumalha imberbe que a assassinou estará em liberdade daqui a menos de um ano.
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