Nem Mário Soares lhes valeu. Em meados de 1988, quando o então presidente da República, no rescaldo de uma vitória suada, visitava Barca D’Alva, terra de socialistas e de funcionários ferroviários, “o povo pediu-lhe que não acabasse a linha do Douro. Ele prometeu que não fechava, mas fechou”. A primeira dama, Maria Barroso, terá sido uma das últimas pessoas a fazer a viagem. O troço entre Pocinho e Barca D’Alva foi desactivado a 19 de Outubro desse ano. A data é dita de cor pelos funcionários.
“Foi um assalto. O inspector ligou-me a dizer que se a comunicação social viesse cá e me perguntasse alguma coisa, que eu não sabia de nada. Nesse dia, o comboio foi embora e já não voltou”, recorda Luís Patrício, homem de 72 anos, ex-revisor de material, que haveria de esperar longos anos pela reforma. Mais de 30 famílias, como a dele, saíram dali, destacadas para outras localidades. Cerca de 42 funcionários – maquinistas, revisores, condutores, guardas fiscais –, abandonaram a estação, que agora é habitada por ciganos.
O tempo em que dezenas de vagões enchiam a ponte internacional – tractores, electrodomésticos e toda a maquinaria da indústria têxtil do Minho –, é recordado como o tempo em que foram felizes. “Havia aqui um movimento que ninguém imagina. Tínhamos a melhor estação do país, com polícia internacional e tudo. E o país inteiro vinha aqui só para comprar laranja, amêndoa, azeite”.“O que nos fizeram foi um crime”, acentua António Messias que, desmotivado, pediu a reforma mais cedo. Chefiava a equipa de factores quando tudo acabou. “Já fomos felizes aqui. Barca D’Alva já foi uma grande terra, mas quiseram dar cabo de tudo e conseguiram. Hoje, vivemos sem pernas”.
Recentemente, no arranque das obras do Museu do Côa, Isabel Pires de Lima defendeu a reactivação da linha-férrea entre Pocinho e Barca D’Alva. Mas a intenção da ministra da Cultura, além de não suscitar “confiança” em terra de quem precisa “ver para crer”, chega já demasiado tarde. “Até podem deitar fogo à linha; agora, tanto faz”, diz a voz magoada de Messias.
“O comboio faz-nos tanta falta como o pão para a boca. Vivemos aqui enfiados sem ter onde ir distrair”, juntam-se à conversa os 72 anos de Carlos Salgado. “Mas se querem que a linha seja só para os turistas, então bem podem ficar quietos. É como os barcos: só anda neles quem dinheiro. E só andam no Verão. Nós vamos continuar aqui esquecidos”, insiste. “Tão esquecidos que daqui a dez ou quinze anos a terra deixará de existir”, reforça Patrício. “Ou alguém acredita que a CP vai aqui investir os milhões necessários? O problema não são as linhas; são as pontes”. Serão as duas coisas: as linhas estão todas desdentadas e os pilares das pontes já não oferecem segurança.
Foi o encerramento da linha que provocou a desertificação do Douro ou a imigração da região que levou à anulação da rede ferroviária?
Em Figueira de Castelo Rodrigo, num café onde a única pessoa com menos de 25 anos é o proprietário, Nicolas Lage, não há dúvidas. “A culpa é do poder político que deixou ir tudo abaixo. No Verão, a população dobra. Mas os turistas vão dormir a Vegaterron, em Espanha, porque aqui não há hotéis”. O país vizinho terá percebido o sinal e já começou a fazer obras na sua parte da rede. “Estão a recuperar 80 quilómetros de linha; nós temos 28 e não fazemos nada”.
Revolta-se, mas não desiste. Em 1976 residiam ali três mil habitantes; hoje resistem 600. Nicolas diz que existem na freguesia cerca de 50 pessoas da idade dele. Se existem, não se vêem. Ele já foi embora várias vezes, mas voltou sempre. “Gosto disto e acredito que pode haver aqui futuro. O que puder fazer, farei”, promete. Já faz: num sítio onde “os horários de comboio não coincidem com nada”, ele recolhe as receitas médicas da população inteira. Ali, os medicamentos são pagos no bacão do café.
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