quinta-feira, agosto 03, 2006

Gisberta I




"Condene-se o Poço", por Amílcar Correia, hoje, no Público:
"A Lei Tutelar Educativa, criada na sequência de uma série de assaltos cometidos por menores, que alarmou um pacato Verão, envolveu figuras públicas e provocou a demissão do então ministro da Administração Interna, foi criada com a nobre intenção de conciliar o modelo de protecção de menores com o modelo de justiça, defendendo-os da repressão penal, mas conferindo ao Estado o dever de intervir correctivamente quando aqueles praticam delitos.
Qualquer um dos regimes de internamentos previstos pela nova lei (aberto, semiaberto ou fechado), a mais grave das medidas tutelares, prevê o acompanhamento pedagógico ao abrigo da protecção do Estado no sentido da "educação para o Direito" dos menores em causa. A aplicação da Lei Tutelar Educativa aos jovens com mais de 14 anos envolvidos nas agressões à transexual Gisberta implicava a aplicação da medida mais gravosa, o internamento em regime fechado, se... Se o Tribunal de Menores do Porto, que julgou o caso, entendesse tratar-se de homicídio. O que não aconteceu.
Lê-se e não se acredita. Os maus tratos continuados a que Gisberta foi sujeita durante uma semana - agredida a murro e a pontapé, com paus e com pedras, até ficar inanimada - foram uma "brincadeira de mau gosto" de um grupo de jovens que actuou de forma leviana. E que não agiu daquela forma pelo simples facto de se tratar de uma transexual, quando o mesmo tribunal deu como provada que foi a curiosidade sexual pelo corpo da brasileira que motivou as agressões. Depois de espancada várias vezes (e se não abandonou o local foi porque se encontrava num estado que a impedia de o fazer), o seu corpo foi atirado para um poço com a profundidade de 15 metros, juntamente com um barrote e certamente com alguma intenção, mas Gisberta terá morrido porque não sabia nadar ou porque, sabendo-o, não o quis fazer, pelo que só se pode concluir que este foi um suicídio. Condene-se, pois, a água ou, melhor, o poço. E por que não a câmara municipal da cidade, que é quem gere o parque de estacionamento naquele local?
O que estava em causa era muito mais a qualificação do crime do que as medidas a aplicar e o mais natural era que, no mínimo, embora mesmo assim isso fosse duvidoso, tivessem sido acatadas as punições pedidas pelo Ministério Público, que defendia um agravamento devido à morte da vítima. A sentença branda do tribunal, que deu como provados crimes de ofensas à integridade física qualificada na forma consumada e crimes de profanação de cadáver na forma tentada, em nada contribui para a "educação para o Direito" de que fala a Lei Tutelar Educativa e legitima todas as dúvidas sobre se não terá sido o estatuto da vítima a ditar o desfecho do caso.
A negação da existência de homicídio, como se quem matasse fosse a bala e não quem prime o gatilho, é o corolário de uma acumulação de exclusões: Gisberta, nascida Gisberto Júnior, há 46 anos em S. Paulo, imigrante ilegal, seropositiva, com hepatite, prostituta, toxicodependente e sem-abrigo. E sem ninguém que defendesse a sua dignidade afogada num poço de um prédio inacabado do Porto. O desfecho deste grave e inédito caso é tudo menos pedagógico, quer para a justiça, quer para os menores."

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