terça-feira, agosto 29, 2006

Eduardo Prado Coelho

"O intelectual alemão"
O fio do horizonte, no Público

Um escândalo a preparar um sucesso literário. Günter Grass, esse intelectual alemão mais intelectual do que os outros, anunciou que aos 17 anos tinha feito parte das unidades do Waffen SS, vanguarda militar nazi. Diversas desculpas. O ambiente familiar era demasiado opressivo. Uma amiga dirá que a casa era demasiado pequena. Outra insinuará que ele sempre teve fascinação pelas fardas... Mas as reacções foram imensas e não há escritor que se preze, seja alemão ou português, que se não tenha pronunciado sobre o caso.Lech Walesa pediu que ele renunciasse ao Prémio Nobel.
Adam Micnick lembrou o passado nazi do Papa Bento XVI. E Günter Grass, trocando um bocado os pés pelas mãos, afirmou que toda a sua vida tinha vivido com este sentimento de culpa. E que já não aguentava mais este segredo. Donde, nas vésperas do lançamento da sua autobiografia, vistosamente intitulada Descascando a Cebola, o segredo rebentou-lhe na boca, sem que ninguém tivesse percebido porquê só agora.
De qualquer modo, o lançamento do livro foi antecipado e tornou-se desde logo um extraordinário êxito de vendas.Entre nós, para além do famoso argumento de Saramago, quando pergunta "então o resto da vida não conta?", sem que tome consciência de que não é o alistamento, mas o resto da vida que o compromete, o grande discurso sobre o caso diz fundamentalmente o seguinte: o que conta é o grande escritor, não este episódio infeliz da vida dele.Admito que Günter Grass seja um grande escritor. Confesso que não é o meu registo. Acho este imaginário enxundioso em que se combinam nazis com cebolas bastante insuportável. Confesso mesmo que nunca consegui ler um romance de Günter Grass até ao fim. Irritei-me sempre pelo caminho.Mas esta não é a questão fundamental.
Estamos aqui no mero juízo de gosto. O que eu gostaria de fazer é uma distinção: entre os meros escritores e os intelectuais. Gastão Cruz ou Hélia Correia são, fundamentalmente, escritores. Já António Mega Ferreira é um escritor mas também um intelectual, Se pensarmos em Pacheco Pereira, temos alguém que publica livros, mas sem dimensão literária, e é sobretudo um intelectual. Qualquer intelectual que se preze não prescinde hoje de ter o seu blogue. Muitos têm blogues para ser intelectuais.
Ora acontece que Günter Grass não foi apenas um escritor, tem sido também um intelectual, e que intelectual! Ele pretendeu ser uma espécie de consciência alemã apoiada no dever da memória. Não se deve recalcar, deve-se assumir um passado vergonhoso. E este aspecto de intelectual ajusta-se com dificuldade ao seu percurso pessoal: o de um segredo com que conscientemente se vive ao longo de quase uma existência. É claro que o resto da vida conta, mas conta negativamente. E a questão da qualidade da sua escrita e da composição das suas ficções não está aqui em causa. Professor universitário

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