1986. Portugal estava a um passo de entrar na CEE, Mário Soares e Freitas do Amaral digladiavam-se na segunda volta das terceiras presidenciais após o 25 de Abril. A democracia era fruto novo e apetecido, a abstenção figura inócua. O voto era arma e armadura. O país à beira mar plantado somava e seguia.
1986. A Ucrânia ainda não era suculenta economia da Europa, não era sequer independente, a União Soviética só viria a colapsar cinco anos mais tarde. No dia em que Portugal celebrava o 12º ano de liberdade, na Ucrânia, a norte de Kiev capital, acontecia o pior desastre nuclear de que há memória. Chernobyl.
Simula-se uma emergência. Mais de cem trabalhadores fazem testes num dos reactores da central. Corre mal, há sucessão de explosões, o chão treme, o céu derrete, uma nuvem de fumo atinge o inferno numa altura de um quilómetro. Não se fala em desastre nuclear, muito menos em fuga de radioactividade; fala-se em incêndio, mesmo se nada consegue apagá-lo. Dois bombeiros morrem no primeiro dia, 28 alguns meses depois. No dia seguinte, Pripyat, a cidade com nome de rio, abrigo de sete mil trabalhadores, acordava com níveis de radioactividade 15 mil vezes acima do normal; 600 mil vezes ao adormecer.
A população só seria evacuada no dia seguinte. 50 mil em mil autocarros. 500 mil homens recrutados para evitar nova explosão. Sete meses, dia e noite. Atiraram terra, chumbo, combustível inocente a acelerar a contaminação. Destes homens, nenhum sobra para contar a história. E a história continua imprecisa. Quantos morreram logo, nos dias, nos meses, nos anos seguintes? Ninguém sabe. Quantos ficaram deficientes? Cem mil, duzentos mil? Ninguém sabe. Não há número que atenue o horror. E o horror está longe de acabar. [ver documentário Media Storm]
Em Dezembro do mesmo ano, conferência mundial em Viena para discutir as sequelas. Para a posteridade apenas um homem: Valery Legasov. O cientista soviético, responsável pela investigação ao desastre, falou durante três horas. Alertou para as causas, riscos e consequências, impôs a evacuação integral de Pripyat, trabalhou para evitar réplicas, facultou informação. E estimou que pelo menos 40 mil pessoas teriam sido ou viriam a ser fatalmente afectadas. A comunidade internacional não aceitou o diagnóstico, desceu o número para quatro mil. O resto do que foi camuflado não se sabe. Sabe-se que dois anos depois, a 26 de Abril de 1988, Legasov suicidou-se. Enforcou-se. A morte, viria saber-se depois através de um vídeo que o próprio gravou, deveu-se ao facto de o terem impedido de contar toda a verdade. Dez anos depois, Boris Yeltsin atribuiu-lhe o título de Herói da Rússia, louvando-lhe a coragem.
Quando a verdade de uma história é escondida, não há lições a tirar da História, mesmo se a história se repete. E 25 anos depois do 25 de Abril de Chernobyl, Fukushima, Japão. Dura há 25 dias. Já com a clássica conferência mundial, em Viena, para discutir o mesmo. Lá, estão os homens que hão-de perpetuar mentiras e catástrofes; cá fora, os Heróis de verdade, sem dormir, sem tomar banho, a comer biscoitos e arroz duas vezes por dia. 300 homens, agora como antes proibidos de divulgar o que quer que seja, que decidiram, literalmente e em consciência, morrer para tentar salvar um país. Já, a curto, a médio prazo, conforme a sentença da doença a que não escaparão. Mas agora há redes sociais, é lá que desabafam com travo a despedida. "A minha cidade desapareceu, os meus pais também. Ainda não consegui procurá-los devido à ordem de evacuação. É com este estado de espírito que trabalho. Estou no meu limite", escreveu Emiko Ueno numa mensagem que o The New York Times publicou. Outro trabalhador, Murizo, noutro qualquer recanto da internet, citado pela New Scientist: "Carregamos às costas uma cruz para o resto da nossa vida. Não conseguimos proteger a nossa saúde, muito menos a da nossa família. Mas estamos a fazer o melhor que podemos."
Estes homens fazem o melhor que podem, dão a vida. A Tokyo Electric Power Co., empresa responsável pela central nuclear de Fukushima, faz o que convém: pede desculpa e oferece oito mil euros (!!!) a cada um dos 20 mil habitantes evacuados daquela província. As palavras são como os números - faltam.
Quantos morreram na Pripyat fantasma? Ninguém sabe. Quantos morrerão agora? Ninguém sabe. Quantos sofrerão consequências? Ninguém sabe. Não consigo ver, ler ou escrever sobre o Japão, sobre isto, sem chorar. De raiva, também. E sem me perguntar o que significa, onde quer que seja, esta liberdade (há liberdade sem verdade?) que Portugal conquistou no dia em que Chernobyl para sempre se perdeu. Michiko Otsuki, outro funcionário: "É inútil chorar. Se estamos no inferno, só nos resta trabalhar para chegar ao céu. Mas, por favor, nunca se esqueçam que existem aqui pessoas a trocar a própria vida pela dos outros."
Pedindo o post muito mais reflexão do que o comentário colocado, 1986 foi o ano em que ganhei consciência de que o mundo existia para além de mim, tais os inúmeros acontecimentos desse ano.
ResponderEliminaralém das eleições, da CEE, de Chernobyl, também o desastre do Challenger (parecia que todos navegávamos na explosão daquele foguetão) e, claro, o Mundial de el Pibe Maradona, o último Mundial digno desse nome.
bj