terça-feira, novembro 30, 2010

Jean Baudrillard: À sombra das maiorias silenciosas


Bombardeadas de estímulos, mensagens e testes, as massas não são mais do que um jazigo opaco, cego, como os amontoados de gases estelares que só são conhecidos através da análise do seu espectro luminoso - espectro de radiações equivalente às estatísticas e às sondagens. Mais exactamente: já não se trata de expressão ou de representação, mas somente de simulação de um social para sempre inexprimível e inexprimido. Esse é o sentido do seu silêncio. Mas esse silêncio é paradoxal - não é um silêncio que fala, é um silêncio que proíbe que se fale em seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de alienação, é uma arma absoluta.

Ninguém pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta é sua vingança. As massas deixaram de ser uma instância à qual se possa referir como outrora se referia à classe ou ao povo. Isoladas no seu silêncio, deixaram de ser sujeito, não podendo, portanto, ser faladas, articuladas, representadas, nem passar pelo “estágio do espelho” político e pelo ciclo das identificações imaginárias. Percebe-se que poder resulta disso: não sendo sujeito, elas não podem ser alienadas - nem na sua própria linguagem (elas não têm uma), nem em alguma outra que pretendesse falar por elas. Fim das esperanças revolucionárias. Porque estas sempre especularam sobre a possibilidade de as massas, como da classe proletária, se negarem enquanto tais. Mas a massa não é um lugar de negatividade nem de explosão, é um lugar de absorção e de implosão.

(...) Durante muito tempo, a estratégia do poder parecia basear-se na apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lógica só é característica da fase burocrática e centralista do poder. E é ela que hoje se volta contra ele: a inércia que fomentou tornou-se o signo de sua própria morte. É por isso que o poder procura inverter as estratégias: da passividade à participação, do silêncio à palavra. Mas é muito tarde. O limite da “massa crítica”, o da involução do social por inércia, foi transposto.

segunda-feira, novembro 29, 2010

Paul Krugman: The Spanish Prisoner

The best thing about the Irish right now is that there are so few of them. By itself, Ireland can’t do all that much damage to Europe’s prospects. The same can be said of Greece and of Portugal, which is widely regarded as the next potential domino. But then there’s Spain. The others are tapas; Spain is the main course.

What’s striking about Spain, from an American perspective, is how much its economic story resembles our own. Like America, Spain experienced a huge property bubble, accompanied by a huge rise in private-sector debt. Like America, Spain fell into recession when that bubble burst, and has experienced a surge in unemployment. And like America, Spain has seen its budget deficit balloon thanks to plunging revenues and recession-related costs. But unlike America, Spain is on the edge of a debt crisis. The U.S. government is having no trouble financing its deficit, with interest rates on long-term federal debt under 3 percent. Spain, by contrast, has seen its borrowing cost shoot up in recent weeks, reflecting growing fears of a possible future default.

Why is Spain in so much trouble? In a word, it’s the euro.

Spain was among the most enthusiastic adopters of the euro back in 1999, when the currency was introduced. And for a while things seemed to go swimmingly: European funds poured into Spain, powering private-sector spending, and the Spanish economy experienced rapid growth.

Through the good years, by the way, the Spanish government appeared to be a model of both fiscal and financial responsibility: unlike Greece, it ran budget surpluses, and unlike Ireland, it tried hard (though with only partial success) to regulate its banks. At the end of 2007 Spain’s public debt, as a share of the economy, was only about half as high as Germany’s, and even now its banks are in nowhere near as bad shape as Ireland’s. But problems were developing under the surface. During the boom, prices and wages rose more rapidly in Spain than in the rest of Europe, helping to feed a large trade deficit. And when the bubble burst, Spanish industry was left with costs that made it uncompetitive with other nations.

Now what? If Spain still had its own currency, like the United States — or like Britain, which shares some of the same characteristics — it could have let that currency fall, making its industry competitive again. But with Spain on the euro, that option isn’t available. Instead, Spain must achieve “internal devaluation”: it must cut wages and prices until its costs are back in line with its neighbors.

And internal devaluation is an ugly affair. For one thing, it’s slow: it normally take years of high unemployment to push wages down. Beyond that, falling wages mean falling incomes, while debt stays the same. So internal devaluation worsens the private sector’s debt problems.

What all this means for Spain is very poor economic prospects over the next few years. America’s recovery has been disappointing, especially in terms of jobs — but at least we’ve seen some growth, with real G.D.P. more or less back to its pre-crisis peak, and we can reasonably expect future growth to help bring our deficit under control. Spain, on the other hand, hasn’t recovered at all. And the lack of recovery translates into fears about Spain’s fiscal future.

Should Spain try to break out of this trap by leaving the euro, and re-establishing its own currency? Will it? The answer to both questions is, probably not. Spain would be better off now if it had never adopted the euro — but trying to leave would create a huge banking crisis, as depositors raced to move their money elsewhere. Unless there’s a catastrophic bank crisis anyway — which seems plausible for Greece and increasingly possible in Ireland, but unlikely though not impossible for Spain — it’s hard to see any Spanish government taking the risk of “de-euroizing.”

So Spain is in effect a prisoner of the euro, leaving it with no good options.

The good news about America is that we aren’t in that kind of trap: we still have our own currency, with all the flexibility that implies. By the way, so does Britain, whose deficits and debt are comparable to Spain’s, but which investors don’t see as a default risk.

The bad news about America is that a powerful political faction is trying to shackle the Federal Reserve, in effect removing the one big advantage we have over the suffering Spaniards. Republican attacks on the Fed — demands that it stop trying to promote economic recovery and focus instead on keeping the dollar strong and fighting the imaginary risks of inflation — amount to a demand that we voluntarily put ourselves in the Spanish prison. Let’s hope that the Fed doesn’t listen. Things in America are bad, but they could be much worse. And if the hard-money faction gets its way, they will be.

sábado, novembro 27, 2010

Yasunary Kawabata: A beleza e a tristeza


O que eram as memórias? Qual era o passado de que se lembrava tão claramente? Quando Otoko se mudara para Quioto com a mãe, Oki teve a certeza de que se tinham separado. Mas teriam mesmo? Ele não conseguia fugir à dor de lhe ter arruinado a vida, de possivelmente lhe ter roubado todas as suas hipóteses de felicidade. Mas o que é que ela pensara a seu respeito, ao passar todos aqueles anos sozinha? A Otoko das suas recordações era a mulher mais apaixonada que ele alguma vez conhecera. E mesmo agora, a nitidez dessas memórias não significava que ela nunca se separara dele? (...)Oki sabia que aquilo que ela sentira por ele fora o amor desesperado de uma menina. Também ele avançara para outras mulheres. Mas nunca mais voltara a amar com tanta dor.

(...) - No fundo do teu coração, ainda estás apaixonada por ele. E ele também te mantém escondida no fundo do seu coração. (...) Mas não vale a pena pensares no senhor Oki. Esperares pelo senhor Oki é como esperares pelo passado. O tempo e o rio não fluem para trás.
- És mais do que aquilo que mereço. É um amor que nunca sonhei encontrar. Vale a pena morrer por uma felicidade como esta.
Mesmo agora, as palavras de Oki não lhe tinham desaparecido da memoria. Talvez os antigos amantes já não existissem, mas por entre a sua tristeza, Otoko tinha a consolação nostálgica de que o amor de ambos fora para sempre imortalizado numa obra de arte.

(...) Um dia, ao escrever uma carta, aconteceu que Otoko abriu o dicionário no caracter para "pensar". Ao ler os outros significados ("anseio por", "ser incapaz de esquecer", "estar triste"), sentiu o peito a apertar-se. Tinha receio de tocar no dicionário - até ali encontrara Oki. Inúmeras palavras faziam-na recordar-se dele. Associar tudo o que via e ouvia com o seu amor era o mesmo que estar viva. A consciência que tinha do próprio corpo era inseparável da memória do seu abraço.

sexta-feira, novembro 26, 2010

Nuno Cardoso encena Eugene O'Neill



Tiago Bartolomeu Costa
No Ípsilon

Se Eugene O'Neill (1888-1953) fosse um rio, "era um rio largo, aparentemente plácido, com correntes subterrâneas e absolutamente mortal, com uma fúria muito grande". Quem assim descreve o dramaturgo norte-americano é Nuno Cardoso, que amanhã, no Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia, estreia "Jornada para a Noite", peça escrita em 1941 e estreada em Portugal pelo Teatro Experimental do Porto, em 1958, numa mítica encenação de António Pedro, apenas dois anos passados da sua primeira apresentação nos EUA.

A nova "Jornada para a Noite" de Nuno Cardoso é só o início de uma fúria Eugene O'Neill nos palcos portugueses: no espaço de um mês, haverá três estreias, correspondendo a quatro peças do dramaturgo norte-americano. Já na próxima semana, em Almada, com estreia a 25 e carreira até 19 de Dezembro, Joaquim Benite regressa a "Hughie" (1941) e a "Antes do pequeno-almoço" (1916), depois de em 1984 já as ter apresentado também em conjunto. E, também em Almada, mas a partir de 1 de Dezembro, Rogério de Carvalho - que em 2009 encenou "Jornada para Noite" - estreia "O Luto Vai Bem com Electra", a sua versão de "Mourning Becomes Electra" (1931), tríptico inspirado na "Oresteia" de Ésquilo, que Cardoso pensava encenar daqui a uns anos.

Joaquim Benite afirma que a influência de O'Neill, Prémio Nobel da Literatura em 1936, se sente em toda a dramaturgia norte-americana, "de tendência autobiográfica", onde "a experiência de transformação e criação da sociedade é individual", num contraponto à tradição europeia. Essa influência, "sente-se em Arthur Miller e em Tennessee Williams". Mas para Benite, embora fazendo parte da grande família do realismo teatral a que pertencem Ibsen, Strindberg e Tchéckhov, o teatro de O'Neill aproxima-se, por vezes, do "realismo poético" de Lorca. Já Nuno Cardoso diz que o tempo teatral das peças de O'Neill "acompanha o tempo da acção", nomeadamente em "Jornada...", onde "cria uma hipérbole sobre a família que pode existir ao nosso lado".

Segundo Rogério de Carvalho, que já experimentou ambas, a diferença entre "Jornada..." e "Electra" joga-se na relação com o exterior. "'Jornada...' é mais concentracionária", ao passo que em 'Electra' "as personagens "vivem sufocadas pelo passado, e pelos mortos, não se conseguindo libertar da culpa e dos estigmas".  O'Neill "é avassalador", diz Cardoso", e "isso deixa os actores descobrirem como trabalhar as personagens".


Jornada para a Noite, Eugene o'Neill; Encenação: Nuno Cardoso; Cenografia: F. Ribeiro; desenho de luz e sonoplastia: Eduardo Brandão; assistência de encenação: Victor Hugo Pontes. Elenco: Ângela Marques (Mary Cavan Tyrone ), Eduardo Breda (James Tyrone Jr.), João Pedro Vaz (James Tyrone ), Luís Araújo (Edmund Tyrone ) e Susana Sá (criada Cathleen). Auditório Municipal de Gaia, até 12 de Dezembro (de quarta-feira a sábado, às 21h30, e, ao domingo, às 16h).

O beijo

[Auguste Rodin, 1887]

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum.
[Eugénio de Andrade]



Bem-me-quer, mal-me-quer

quinta-feira, novembro 25, 2010

Maximo Gorki: Os Vagabundos


- As minhas palavras são frias como os raios de sol no inverno; raramente os homens as utilizaram, mas quando o fizeram, elas serviram para criar grandes obras. Os autores dessas obras já estão mortos e os monumentos que lhes foram erguidos desmoronar-se-ão em breve sob o insulto do tempo; mas tu vês a vida, conheces os homens e sabes que tudo se mantém igual ao tempo em que cantava o grande Wolfgang, e mesmo ao tempo anterior a ele. Devo lembrar-te isso dado que sou verídica e que para mim não há dor ou alegria, bem ou mal; sirvo a beleza e ela é a verdade suprema, a que não será destruída quer por séculos quer por milénios. Queres apossar-te das minhas palavras sublimes e aceitar-me por tua companhia?
- Para quê?, perguntou o meu poeta com tristeza.
- Para quê, quando tu e ela possuem tão pouca influência sobre a vida. Amo os homens e, nos meus sonhos, quero a felicidade de todos, quero que a vida seja tão bela, tão viva, como o rebentar fragoroso das vagas num dia claro, cheio de sol, e que seja igualmente leve e melodiosa. Quero ensinar os homens a desejar uma única felicidade: a de se respeitarem a si mesmos pela pureza e grandeza dos seus pensamentos e dos seus actos. Queres ajudar-me? 
- A vida é igual a um rio, mas as suas nascentes são turvas porque jorram do seio da terra e é à superfície que lhe correm as águas. Queres purificar as fontes da vida? Transporta-as para os céus. Mas eu sirvo a beleza e sei que o mal é frequentemente mais belo do que o bem. E penso que se o bem fosse tão forte e tão espalhado como o mal, seria o mal o objecto dos teus desejos. Tudo o que abunda é vulgar e aborrecido. E o que vence corrompe-se sempre e perece por orgulho, esgotado pela luta, empanzinado pela vitória. Olha para o sol: é eternamente jovem e brilha com uma luz forte onde quer que os seus raios penetrem; para ele bem e mal não existem... É o que se chama ser objectivo, e nisso consiste a equidade mais elevada que nos é dado atingir sobre a Terra.
Mas a isto o meu poeta exclamou, indignado:
- Em tudo isso não há alma. Já se pensou bastante, o que nos falta é a reaprender a sentir! Na vida não há sentimentos de uma só peça, como de resto não há, geralmente, que seja de um só bloco. Tudo é quebrado e abanado pelos golpes possantes da inteligência, e o espírito humano, penetrante como uma agulha, profundo como uma serpente, já verteu demasiado veneno na taça da vida. Repara, não faltam na vida grandes espíritos, mas onde há - mostra-mas - grandes almas? E a sede de viver desaparece. Como recifes de coral no oceano tais ou tais homens emergem da vida, mas ela, fervilhando à volta deles, quebra contra a sua dureza os nadadores que aspiram a agarrar-se a qualquer coisa. Todos os homens desejam apenas uma coisa, a felicidade, mas procuram-na em sítios diferentes... É necessário abrir-lhes os olhos e mostrar-lhes a verdadeira felicidade. 

The Acorn: Blankets

[Stefanie Schneider]

The life you lead
Leads you to distraction
Confusing your desires
With voluntary actions
And a hundred thousand destinations
The plans that you've forgotten
And the fruits of all your labor
Are slowly going rotten
And the blanket of the city
Will never keep you warm
And the pages of our history
Are free and truly worn

Oh, the time we need
Is passing every day
You can't blame it on
The words we never say
Oh, the world is love
Strings and chain reactions
Never-ending fires
Heartache and attractions
And the blanket of the city
Will never keep you warm

quarta-feira, novembro 24, 2010

David Brooks sobre o futuro dos media


Há pouco mais de uma semana, a "Newsweek" anunciou que ia juntar-se à revista online The Daily Beast. Desde essa altura que os comentários pessimistas ao futuro da publicação ecoam pelo ciberespaço. Afinal que razões pode haver para pensar que duas organizações que estão a perder dinheiro vão passar a ganhá-lo simplesmente por se unirem?

A pergunta faz sentido, mas não vejo razão para sermos tão sombrios. Os pessimistas estão a subestimar a maneira como a cultura americana está a mudar no momento actual e como as mudanças recentes vão abrir novas oportunidades para a "Newsweek" e outras velhas revistas generalistas em papel na mesma linha. Não é por acaso que estas revistas resistem há muitas décadas. No fim de contas, as suas raízes vão beber a um veio profundo da cultura americana.

Se quisermos ser pomposos, esta torrente tem origem no século xix com Ralph Waldo Emerson e outras luminárias de menor calibre que ofereciam orientação ao público, ansioso por cultivar-se. O homem e a mulher de carácter, dizia-se, deviam ter uma mente bem preparada. Ao vendedor, ao agricultor ou à dona de casa cabia a responsabilidade de se familiarizar com o melhor que já fora dito e feito.

Para ser respeitável há que ocupar o tempo livre no convívio com as obras-primas da cultura. Para combater o materialismo grosseiro da cultura americana era preciso estar familiarizado com a filosofia, a teologia e os grandes acontecimentos da política internacional.

Foi este o ethos que deu forma à comunicação social nos EUA durante mais de um século. Várias famílias pobres uniam os seus parcos recursos para em conjunto comprar uma enciclopédia, fazer-se membros do Book of the Month Club, para comprar a série "Civilização" de Will e Ariel Durant ou a colecção Grandes Obras de Robert Maynard Hutchins.

Revistas como a "Harper''s", a "Saturday Review", a "Time" ou a "Newsweek" surgiram para satisfazer esta vaga de aspirações culturais. Ao longo de muitas décadas, a "Time" e a "Newsweek" dedicaram mais páginas à ópera, à arte ou à religião do que a Hollywood ou a temas de saúde. Uma pessoa até podia nunca ter posto os pés em Nova Iorque, mas, se quisesse ser respeitável na sua cidade no Wisconsin ou no Arizona, tinha de ter uma ideia das óperas que estreavam nessa semana ou dos livros lidos em Paris. Eram as revistas que proporcionavam esse conhecimento.

Além disso, estas revistas inflamavam a imaginação de milhões de leitores. Proporcionavam a rapazes e raparigas inteligentes a possibilidade de vislumbrarem o vasto mundo. Estava aqui implícito que as suas vidas de todos os dias eram banais, mas a contrapartida era o acesso às vidas de John Foster Dulles ou de Georgia O''Keeffe, e com ele os leitores entreviam um mundo de uma ordem superior à qual mantinham a esperança de um dia virem a pertencer.

Ao longo da última geração, esta ética que orientava as pessoas no esforço de se cultivarem ao longo de uma vida tem estado sob ataque cerrado. As pessoas deixaram de acreditar numa cultura geral que todos os americanos que quisessem ser considerados pessoas cultas devessem estudar e conhecer. Para o novo ethos o importante é sobressair, e não ter classe.

Além disso, o mundo foi varrido pelo furacão do amor-próprio. Não precisamos de ter lido ou ouvido coisas maçadoras para ter carácter. Somos maravilhosos tal como somos. As revistas generalistas passaram a prestar menos atenção ao mundo em que as pessoas sonhavam entrar para passarem a falar dos próprios leitores. Os media segmentaram-se e cada estilo de vida se tornou um nicho com tratamento à parte. A atenção estreitou-se, a tecnologia acelerou o mundo. No meio de tudo isto, as revistas de interesse geral tentaram adaptar-se. No entanto, por vezes os países são surpreendidos por acontecimentos que actuam sobre a cultura. Os EUA sofreram há pouco uma crise financeira e uma recessão. Agra começa a andar no ar uma certa sobriedade. A taxa de poupança aumentou, o consumo baixou, o mundo político parece centrado no défice e na austeridade. Os grandes todo-o-terreno começaram a parecer patetas. As sondagens mostram que os americanos estão profundamente preocupados com o destino do país a longo prazo.

Entretanto, também já chegámos a um veredicto quanto à época da bolha: esta parece deixar as pessoas com vistas mais curtas. Pressente-se um anseio de seriedade, de reflexão acerca do futuro a longo prazo, de regresso ao que é básico. Pressente-se uma nova atenção às coisas. Com este ambiente de fundo devia haver espaço para uma revista de carácter geral que reinventasse a velha fórmula, um pouco pomposa. Devia haver espaço para programas em contracorrente, contra a efemeridade radical oferecida pela maior parte do mundo online, para uma revista que oferecesse coisas que valha a pena recordar, que não viva da perseguição constante do espectáculo, que não sirva para os jornalistas das grandes cidades escreverem acerca uns dos outros, em que a cobertura política não seja alimentada pela corrida de bastidores aos últimos rumores, que não procure o mesmo público de classe média liberal urbana que as outras. Devia haver espaço para uma revista que oferecesse um ideal que correspondesse às aspirações dos quadros médios suburbanos, que servisse de abrigo à tendência das redes sociais para a vulgaridade, que transmitisse a herança cultural do país e o seu modo de vida, seleccionasse para as pessoas muito ocupadas as coisas que vão perdurar e as separasse das que não vão.

No negócio dos media, tal como na política, é importante saber em que ano estamos. E estamos em 2010, não em 1998 ou 1985. A seriedade anda no ar, em busca de um meio de se dar a conhecer.

[Exclusivo i/The New York Times]

Lobotomia IV

Experimentou chás, botijas quentes, ópio legal, ilegal, oriental, yoga, reiki, gongos, acupunctura quase. Era uma lobotomia, se faz favor.

terça-feira, novembro 23, 2010

Infância à venda por 220 mil euros


Há infâncias assim, abençoadas e inimitáveis. Nunca nenhum livro ou filme ou canção me deu alguma vez a imagem de uma infância mais bonita do que a infância que vivi naquela casa. E sei aquela casa de cor. Ainda sonho com ela milhares de vezes. O portão das traseiras, entrada principal afinal, cor de ferrugem, sem campainha. Bater nele como em pratos de bateria, com muita força. A A. vinha buscar-me, entrávamos, as duas pequeninas, bracitos a esconder a cara para não sermos mordidas pelo enxame de abelhas. Às vezes, acontecia. À esquerda, uma casa a fazer de garagem, com telhas e e janelas e tudo, a casa do carro amarelo. Em frente, um terraço a perder de vista, o terraço onde construíamos cabanas no Verão, cabanas onde morávamos durante o dia. Um tanque grande, a nossa piscina quando por alguma razão nos vetavam a  ida ao rio, e outro mais pequeno. Uma oliveira e um galinheiro. E uma adega. Sei de cor o cheiro da adega. E, se fechar os olhos, ainda sinto aquele frio que vinha daquelas paredes de pedra. A adega que guardava o vinho, o mel, a roupa que já não servia, os brinquedos e que nos guardava a nós dos dias muito quentes. Subir as escadas, também de pedra, até à porta da cozinha que cheirava sempre a bolo de iogurte e a doce de abóbora. A porta laranja, os balcões brancos e azul bebé, como as paredes. E um escano de madeira a separar a lareira, a lareira onde todos os dias, depois do jantar, rezávamos o terço. Era o tempo em que a Sagrada Família ainda rodava semanalmente de casa e o leite era comprado ao litro num recipiente próprio. A cozinha dava para um corredor, à direita uma casa de banho verde-água a cheirar a shampoo de maçãs verdes e a sabonete de amêndoas doces; à esquerda, um quarto. Tudo tinha portas brancas. Seguir o corredor, subir três degraus, outro quarto enorme, pé altíssimo, duas janelas para a rua debruadas a varanda fina, gradeamento de ferro todo trabalhado. Noites e noites passadas ali a conversar (que raio se conversará aos seis, sete, oito anos?) e a jogar Monopólio. Foi ali, naquela varanda, que pela primeira vez ouvimos "O ideal social" dos Ban, som difuso vindo de um pub (há quanto tempo já ninguém diz pub?), lugar ao qual só tivemos acesso muitos anos depois. A M. primeiro (e a choradeira que foi quando se foi), a I. depois, empregadas que eram amigas de sangue e davam o coração a tempo inteiro. Do quarto acedia-se ao salão, gigantesco, alcatifado, as pratas, as porcelanas, a louça da China, o almoço de domingo. A porta principal, mais escadas de pedra, outro terraço. Caminhava-se em círculo. Outra sala, mais pequena, onde a empregada tratava da roupa e onde, na altura devida, se tratava do mel, nós ali felizes como não é possível ser, a lamber os favos das colmeias que ainda eram de cortiça. Outra sala, chão espelhado em cera, mesa para seis, sofá, televisão desligada à hora da refeição, acção de graças, armários brancos com portas de vidrinhos de onde espreitavam cortinas de quadrados vermelhos e brancos. Cozinha outra vez. E na cozinha, uma porta mágica, a do sótão de mil histórias. Escadas íngremes (quantas vezes as descemos com a cabeça?) até lá cima. E no cume, uma janela secreta. Arrancar as grades e passar para o lado de lá. Como a Alice.

Entre os cinco e os onze anos dormi nesta casa muitas, mas muitas mais vezes do que na minha. Esta casa é a casa de uma família imaculada, grande por dentro. Uma família única, como nunca tinha conhecido antes, como nunca mais conheci depois. Mas é sobretudo a casa de duas amigas inseparáveis, A. e  R., duas marias-rapazes tomadas como exemplo de fidelidade, amizade considerada por todos como indestrutível. É a casa de duas crianças que não sabiam viver separadas um minuto, que faziam directas para se não perderem de vista, que cresceram juntas, que caminharam no tempo de mãos dadas, que partilharam sonhos e ideais comuns, gestos, atitudes, gargalhadas, tantas!, caminhos de futuro, amigos, momentos de tristeza e de extrema alegria, de evasão. As melhores amigas, a crítica de excepcional competência, o ideal uma da outra. Inseparáveis até ao dia em que um coração parou (haverá sempre um coração que pára?), e no interior do país quando um coração pára é sempre tarde demais para o reverter. Foi o fim de tudo. O fim tatuado num papel escrito por A. no dia em que a casa ficou desabitada para sempre. "Talvez um dia o rumo e a ironia do destino venham a separar-nos, mas eu creio e espero que isso nunca venha a acontecer". Acontece sempre, mesmo quando a infância é um privilégio incomensurável, mesmo quando uma terra inteira chora a injusta separação de duas crianças assim, mesmo quando a adolescência se alimenta de intermináveis viagens de autocarro todas as semanas e o Verão, ano após ano, é vivido com comoção por duas famílias solidárias com aquela amizade, duas famílias incapazes de travar o luxo dos telefonemas diários. Acontece sempre, mesmo quando tenta atrasar-se a entrada na lufada da vida adulta. Acontece, mas não apaga.

Numa das esquinas desta casa há pendurado um brasão. Casa brasonada, pedra de armas barrocas dos Azevedos, com 830 metros quadrados, diz o anúncio em que tropeçei com a sensação de quem escorrega num tapete de pregos. A casa da minha infância abençoada e inimitável está à venda. Vale 220 mil euros. Quem a comprar não sabe, mas vale muito mais do que isso. Há casas com corações demasiado grandes. Corações que nunca deixam de bater.

segunda-feira, novembro 22, 2010

Lobotomia III

Guardou-o como um vestido de Verão por estrear.

domingo, novembro 21, 2010

De quantos ingredientes é feita uma coligação?

Num cenário cada vez mais imprevisível para Portugal, sem sabermos ainda se para nos salvarmos será necessária a entrada do FMI e imperiosa a saída do Euro, uma única certeza parece fazer parte do futuro: o actual primeiro-ministro não fará parte dele. Esta legislatura, que leva pouco mais de um ano, há muito se percebeu que não chegará a 2013. E mesmo que no início do próximo ano, cumpridas as presidenciais, muito provavelmente reeleito Cavaco Silva, reaberto o período eleitoral, e com congresso do PS agendado para Março, José Sócrates volte a recandidatar-se a secretário-geral do partido, e possa até ganhar, perderá sempre depois na corrida antecipada das legislativas.

Sem ida às urnas, dando largas à hipótese de entendimento político avançada há uma semana, ao Expresso, por Luís Amado, ministro dos Negócios Estrangeiros, Sócrates continuará a ser carta fora do baralho, porque é visto como causa da dimensão de fragilidade que o país atingiu e como obstáculo para ultrapassar a situação. Paulo Portas já antes propusera, num debate parlamentar, um governo de salvação nacional que incluísse PS, PSD e CDS, e logo nessa altura o líder do CDS/PP apontou como condição para a coligação a eliminação de Sócrates.

É facto que Portugal precisa de estabilidade, de executar o plano de austeridade, de acalmar os credores internacionais, de cumprir a redução do défice (de 7,3% para 4,6%), de fazer reformas determinantes, mas é improvável que Sócrates, com ou sem FMI, saia do poder pelo seu pé. E o PSD, imparável nas sondagens, também não quer ouvir falar de coligações. “É extemporâneo, descabido e insensato”, avisou Miguel Relvas, secretário-geral dos sociais-democratas, em reacção “ao estado de alma” de Amado. Assim sendo, para já, uma aliança não passará de uma hipótese teórica com poucas pernas para andar, concordam os analistas políticos ouvidos pelo JN. Mas a partir do próximo ano, a história é outra.

“De momento, o cenário é impraticável: Sócrates não sai, Passos Coelho não entra”, resume João Pereira Coutinho. O comentador político não exclui, no entanto, “que a possibilidade de um governo de coligação seja uma inevitabilidade em 2011, caso o país recorra ao fundo Europeu e ao FMI – e precisar, aí sim, de um largo consenso parlamentar e governamental para aprovar as medidas impostas pelo exterior”. Numa situação dessas, justifica, “e tendo em conta o evidente fracasso deste governo e deste primeiro-ministro, a decência mandaria que Sócrates fosse substituído na chefia do governo, antes mesmo de haver eleições, por outro nome da maioria parlamentar. Mas com Sócrates”, ressalva, “nunca se sabe, e o mais provável era termos a situação aberrante de um primeiro-ministro que nos trouxe o FMI e que continuaria a governar-nos com o FMI.”

O politólogo António Costa Pinto também não vê como possível uma aliança nesta altura e faz depender a sua concretização da evolução do cenário internacional. “O passado das coligações, em Portugal, remete para uma situação de emergência perante o exterior e para uma necessidade mínima de estabilidade. As variáveis fundamentais para um pacto são a dívida soberana e o Euro, questões de que ninguém falava há um ano. Mas se tudo se mantiver estável”, alerta, “há um problema inultrapassável para uma coligação, que é a expectativa do PSD em transformar-se em alternativa de poder.” Ou seja, para o PSD, quanto pior agora melhor para cumprir esta ambição.

“Em termos puramente partidários, uma coligação sem o FMI seria um suicídio para o PSD e um brinde para o PS, que teria finalmente um cúmplice”, corrobora Pereira Coutinho. José Adelino Maltez vai mais longe e afirma que “o PSD, tendo decidido apoiar Cavaco Silva nas presidenciais, não pode mostrar o seu plano de mudança – tem soberania condicionada.” Pelo que tudo se decidirá na fase pós-Cavaco e pós-Sócrates. Ou, como ele diz, “na fase pós-eucaliptos”. E nunca a correr, como também frisou, esta semana, na Trofa, Mário Soares. “Sei o que é um governo de bloco central, necessita de meses de negociações prévias e de avanços. Eu andei a negociar isso com o professor Mota Pinto muito antes das eleições”.

Mas se para Costa Pinto, um eventual entendimento entre PS e PSD seriam “mais do que suficientes”, já para Adelino Maltez “a coisa é de tal monta”, que já não vai lá com o que designou como “Bloco Central sem dor”. O professor e politólogo, sugere um entendimento de espectro muito mais alargado. Até porque, considera, “se houvesse uma coligação agora, para os mercados era igual ao litro, uma vez que só representamos 2% da população da União Europeia.” E com isto, o professor quer dizer que “um país que tem apenas este poder tem de defender melhor a sua independência – e não é com pactos com os bancários que o vai conseguir”, critica.

Na convicção de que só “só haverá salvação com um grande pacto de regime”, Maltez defende que ele deve representar um “acordo moral e social”, e, para isso, “incluir sindicatos, Igreja, maçonaria e PCP”, disse, recordando os governos provisórios integrados pelos comunistas. “A democracia está suficientemente madura para celebrar este tipo de contrato”. Pereira Coutinho discorda. “O PCP não é parceiro de coisa nenhuma, como se percebe pelo irrealismo das suas propostas. À esquerda do PS, é o deserto.” E Viriato Soromenho-Marques, politólogo, corrobora. “À esquerda do PS, os partidos querem tudo menos ser opção.”

De resto, o professor está mais preocupado com os factores que não podemos antecipar nem controlar. “Mesmo no quadro de uma boa execução orçamental, 95% da situação económica e financeira não depende de nós, mas dos mercados.” Recorde-se que os títulos da última emissão de dívida pública portuguesa chegaram ao mercado com uma taxa de 6,8%, o que significa que, enquanto bálsamo, a viabilização do Orçamento de Estado teve um efeito praticamente nulo.

Os olhos ficam, portanto, todos postos na Alemanha de Angela Merkel, de quem parece depender não só a absolvição de Portugal, mas de boa parte da Europa. Soromenho-Marques traça três cenários possíveis: “O ideal seria aquele em que a Alemanha assumiria a defesa política do Euro, fazendo da generosidade uma estratégia e transformando a chanceler alemã numa heroína Europeia; uma segunda hipótese passa pela restruturação do Euro, expulsando países da UE como a Irlanda, a Grécia e, quem sabe?, Portugal; por fim, há a possibilidade de a Alemanha entrar em pânico por razões histórias (basta que para isso se lembre da hiperinflação de 1922), decidir salvar-se sozinha e esquecer o projecto Europeu.”

Sendo impossível, hoje, pensar Portugal de forma isolada, este quadro mostra, conclui o professor, duas coisas: “que as pessoas ainda não perceberam o momento único – e grave, muito mais grave que o PREC de 1975 - que estamos a viver; e que a Alemanha, aconteça o que acontecer, salvar-se-á sempre.” Isto conduz-nos aos 5% de responsabilidade que nos cabem. “Os 100% desses 5% têm de ter sucesso. E isso passa pelos sinais que serão dados para o exterior e por deixar de tomar medidas de curto prazo, como todas aquelas a que temos assistido ultimamente”.

Costa Pinto vem ao encontro de Soromenho-Marques neste aspecto. “Sob pena de assistirmos a uma estagnação ainda maior do país, é preciso que exista um programa de reforma”. E lamenta que tenham havido “medidas de urgência aquando do OE, mas nenhuma reforma na Administração Pública nem mesmo sobre o fim dos governos civis”. Pereira Coutinho subscreve a urgência reformista, mas não acredita “que exista ‘cá dentro’ capacidade ou vontade políticas para isso”. Daí que, insiste, “a intervenção do FMI seria uma oportunidade para que a classe política fizesse as ditas reformas tendo o FMI como bode expiatório. E é por isso que uma eventual coligação, sem o FMI, não resolve coisa nenhuma”. 

Ricardo Reis: A perspectiva dos credores


Há alguns séculos, quando as colheitas não davam fruto culpavam-se as bruxas. Hoje culpamos os especuladores quando chegam más notícias dos mercados. Um bom exercício de sanidade é pormo-nos nos pés de um investidor. Não é assim tão difícil: num instante, qualquer pessoa pode abrir uma conta num corretor e comprar dívida portuguesa. Quem acha injusto e irracional que Portugal pague 4,3% por ano por dívida a dois anos pode dar já uma ordem de compra. Assumindo que o leitor vai deter a dívida durante os dois anos, a rentabilidade do investimento depende de diferentes cenários.

No primeiro cenário, Portugal faz tudo o que for necessário para pagar todas as dívidas. Nesse caso, o leitor acabou de ganhar 4,3%, em vez dos 1,1% que a Alemanha paga hoje. Um fantástico negócio. Claro que, para desesperadamente pagar esta dívida se o país continuar estagnado, talvez o governo português tenha subido de tal forma os impostos que o desemprego tenha chegado aos 20% e a pobreza seja generalizada.

No segundo cenário, Portugal pede dinheiro ao Fundo Europeu de Estabilidade. Porque parte destes fundos são usados para pagar as dívidas anteriores, o credor continua pago e feliz. Portugal ainda deve ao exterior, mas agora a uma taxa de juro mais baixa, pelo que talvez o aumento de impostos e a crise associada sejam menores. Para o credor é indiferente.

No terceiro cenário, Portugal entra em bancarrota. Nesse caso, o investidor sabe que vai passar uns anos à espera que o Estado português chegue a um acordo sobre quanto e quando pagar. O risco é grande, mas os portugueses não conseguem que ninguém lhes empreste um euro durante as negociações. Para um país que pede 11 mil milhões de euros emprestados ao exterior por ano, é difícil imaginar o choque que isto seria.

No quarto cenário, Portugal renegoceia a dívida, digamos, com um perdão de 30%. Nesse caso, o retorno ao fim de dois anos, em vez de 4,3+4,3=8,6%, foi antes de -30%. Afinal teria sido melhor ideia emprestar aos alemães.

Tentemos agora por probabilidades nestes cenários, depois de ler as últimas notícias em Portugal. Digamos que, com 80% de certeza, Portugal vai pagar, ou por si ou usando os fundos europeus. Acredite também que a bancarrota total tem 0% de hipóteses. Por fim, que uma renegociação da dívida tem uma probabilidade de 20%.

Com estes cenários, o retorno esperado no seu investimento é 0,88%, menos que emprestar à Alemanha. Às tantas, o leitor só está disposto a emprestar ao Estado português a uma taxa bem maior. Olhando para estas contas, o comportamento dos "mercados" parece assim tão irracional? Curiosamente, muitos dos comentadores que bradam contra os pérfidos especuladores, no mesmo comentário fazem previsões para Portugal bem mais pessimistas que as probabilidades no exercício acima.

[Na edição de fim-de-semana do i]

sábado, novembro 20, 2010

Para a posteridade: "O homem errado no momento que podia ter sido certo"

Por Helena Matos
no Público

Esse homem foi José Sócrates em 2005. A maioria absoluta conseguida pelo PS nas legislativas de 2005 podia ter sido o momento de viragem de Portugal. O PS tem (ou tinha, antes deste desastre moral em que se atolou) condições únicas para reformar Portugal.

Com uma direita que vive mais ou menos sob o estigma de não ser de esquerda e a ter de provar todos os dias que, apesar desse defeito genético, tem propostas que não representam um atentado aos trabalhadores, reformados, artistas, activistas, à sociedade em geral e à cultura em particular, o PS ocupa o centro – o tal que dá as vitórias eleitorais em Portugal. E ocupa-o com desenvoltura. Porque é de esquerda, o PS relaciona-se sem complexos com o capital e, porque é de esquerda, impõe aos sindicatos medidas que o PSD nem ousa equacionar.

No fim, os patrões agradecem, porque, assim, ao menos sabe-se quem manda e os sindicatos e demais activistas, quando muito, lastimam que o PS não seja suficientemente de esquerda. Tristeza essa que rapidamente se desvanece com um acordo em matéria de causas fracturantes, daquelas que não resolvem problema algum mas têm o inegável mérito de ressuscitar o fantasma da direita ultra-montana.

Dotado de uma maioria absoluta e ocupando esse tal centro, o PS teve condições em 2005 para fazer a diferença. A isto junta-se a enorme disponibilidade então existente no país para fazer sacrifícios e aceitar mudanças, pois, após o psicodrama representado por Sampaio-Santana, parecia não só imprescindível mas sobretudo higiénico mudar de vida.

O que falhou, então? José Sócrates. Ao contrário de outros chefes de Governo, não teve ministros a criarem-lhe problemas. O PSD esteve em crise a maior parte do tempo ou, melhor dizendo, esteve no seu estado natural que é o de combater, acima de tudo, o líder do momento. O Presidente da República manifestou um entendimento muito restrito dos seus poderes. E os socialistas apoiaram Sócrates indefectivelmente, mesmo em circunstâncias pessoais e decisões políticas que, antes desta sua alienação ao líder, teriam rejeitado em absoluto. José Sócrates governou como quis. O resultado está à vista, não tanto no desastre dos números da economia mas sobretudo nessa tralha de fim de feira de vaidades que lançou pelo país: é a anedótica cobrança das Scut, os Magalhães que não servem para nada, a fraude das Novas Oportunidades…

Mas o maior problema de José Sócrates não foi ter governado mal tendo condições únicas para governar bem. E nem sequer é a catadupa de casos em que o seu nome é referido aquilo que mais o distingue negativamente dos anteriores chefes de executivo portugueses. O mais grave do balanço da sua actividade enquanto primeiro-ministro é que a sua defesa foi sempre feita à custa da credibilidade dos outros e da credibilidade das instituições.José Sócrates salvou melhor ou pior a sua face nos casos da licenciatura, das casinhas do Fundão, do Freeport e do Face Oculta, mas nós ficámos cheios de dúvidas e de suspeitas sobre os procedimentos adoptados nas universidades, nas autarquias, no Ministério do Ambiente, no Instituto de Conservação da Natureza, na Procuradoria-Geral da República, na Polícia Judiciária e no Supremo Tribunal. No fim, acabámos a duvidar de tudo e de todos. E, neste momento em que o Governo agoniza, com o TGV a avançar nos dias ímpares pela voz do ministro das Obras Públicas e a parar nos dias pares pela voz do ministro Teixeira dos Santos, assistimos mais uma vez ao exercício de resgate de José Sócrates. Desta vez à custa da credibilidade da classe política, da esquerda à direita, no seu todo. De repente, fazer oposição passou a ser sinónimo de atitude antipatriótica. Manifestar divergências é estar a contribuir para a crispação. E sobretudo as responsabilidades de cada um não existem, antes se insinua uma culpa generalizada. Com as culpas assim devidamente distribuídas, as de José Sócrates são diminuídas e naturalmente a sua vida política ganha um novo balão de oxigénio. E, para nossa maior desgraça, fica implícito que, se vivêssemos sem oposições, certamente que estaríamos melhor governados. Creio que jamais em Portugal se fez tanto para salvar a imagem de um político!

Um líder é certamente muito importante para um partido, mas quando um partido com a representatividade e a transversalidade do PS fica refém de alguém como José Sócrates, não é apenas esse partido que fica com um problema. É o país. Por isso, neste final de 2010, o nosso maior problema não é o económico, é o moral. Sócrates, o homem que transformou a mentira em inverdade, conduziu-nos a esse pântano que a todos parece querer sugar para que assim fiquemos todos irmãos.

Os países pequenos sobrevivem a muita coisa, caso contrário nem existiam sequer. O caso português ilustra que conseguem superar a geografia e os azares da História. Mas nunca poderão dar-se ao luxo de não saberem dizer não a tempo e de confundirem a verdade com a mentira. Nós demo-nos a esse luxo e agora não sabemos como pagar esse deficit de valores que é certamente muito superior ao da dívida.

Lobotomia II

Nunca mais voltarão a ver-se, mesmo que voltem a cruzar-se.

quinta-feira, novembro 18, 2010

88 anos depois da morte de Marcel Proust

[Gunter Rossler]

E a doença que era o amor de Swann havia-se multiplicado tanto, estava tão estreitamente amarrada a todos os seus hábitos, a todos os seus actos, ao seu pensamento, à sua saúde, ao seu sono, à sua vida, até mesmo àquilo que desejava para depois da sua morte, formava com ele tão praticamente um todo, que não seria possível arrancá-la dele sem destruí-lo quase por inteiro: como se diz em cirurgia, o seu amor já não era operável.

Marcel Proust in Um amor de Swann

Lobotomia I

Se tivesse morrido, a autópsia diria: desgosto de amor.

Sombras: A nossa tristeza é uma imensa alegria


O Teatro Nacional São João, no Porto, apresenta hoje em estreia absoluta a nova criação de Ricardo Pais: Sombras – A nossa tristeza é uma imensa alegria. Dois anos depois de ali ter estreado a sua última criação, ainda na qualidade de Director Artístico do TNSJ, Ricardo Pais regressa a casa para criar Sombras.

Escreve Ricardo Pais:
Sombras constrói-se numa espécie de paisagem cénica insólita, cheia de eventos inesperados e contrastantes. É um espectáculo multidisciplinar, decididamente contra os tiques da “fusão” ou da “world music”. Tem no fado o seu coração sofrido e no fandango uma espécie de cavalgada eufórica. Assenta em música original, parte de uma banda sonora de missão unificadora.

Retomamos, num tom mais evocativo do que narrativo, alguns momentos dos grandes textos portugueses que visitámos nestes últimos anos, sublinhando a insistência em alguns temas da chamada mitologia portuguesa, do seu pano de fundo lendário e da relação destes com alguns dos temas mais recorrentes no Fado: a passagem inexorável do tempo; o regresso de um Rei Encoberto; a timidez em enfrentar o nosso próprio retrato ou o vício, a pressa de perdoar, de aplacar; o desejo complacente da separação dos corpos e a intolerância anti-espanhola (na Castro, a história de amor, seminal de todas as perdas que o fado celebra); a ganga lisboeta nos escassos mas vibrantes textos populares de Pessoa; as apoteoses alcoólicas de Álvaro de Campos; a vertigem da culpa e do desejo nos poemas de Pedro Homem de Mello…

Ensombramentos e incandescências da nossa natureza teimosa e periférica a que o olhar do videasta Fabio Iaquone acrescenta uma destemida fantasmização. Sombras, como o nome indica, exalta todos os jogos de equívoco de que o Teatro nunca parece saciar-se.

quarta-feira, novembro 17, 2010

The morning glories make me miss you

Nuno Cardoso no lugar do actor


Encenou primeiro Platónov (2008), peça inaugural de Tchékhov, objecto de sucessivas reformulações (e rejeições) pelo dramaturgo, para sempre inacabada como a catedral de Gaudí. Na abertura da presente temporada, encena outro monumento dramático: A Gaivota, peça matricial da dramaturgia tchekhoviana que se tornaria a imagem de marca – estampada na cortina de cena e na capa dos programas – do Teatro de Arte de Moscovo. Em T3+1 opera-se uma súbita inversão: Nuno Cardoso abandona a cadeira do encenador e passa para o palco para interpretar um par de peças curtas de Tchékhov. Em vez de edifícios de fachada mais ou menos imponente, duas pequenas assoalhadas. Dirigem o actor-encenador três dos seus mais regulares colaboradores: Victor Hugo Pontes, assistente de encenação de Nuno Cardoso desde 2005, e José Eduardo Silva e Luís Araújo, actores que integraram os elencos de Platónov e A Gaivota. Exemplos de leveza e acuidade dramática, estas peças breves são miniaturas em que Tchékhov condensou, com precisão de ourives, muito da sua arte dramática, e com que Nuno Cardoso e seus encenadores montam T3+1.

De Anton Tchékhov ("Canto do Cisne", "Os Malefícios do Tabaco"); tradução António Pescada; encenação José Eduardo Silva, Luís Araújo, Victor Hugo Pontes; dispositivo cénico Nuno Carinhas;desenho de luz Wilma Moutinho; interpretação Nuno Cardoso; co-produção Ao Cabo Teatro, TNSJ

valter hugo mãe: As mais belas coisas do mundo


Vale sempre a pena, cada vez mais, voltar aos livros de infância. Está lá tudo o que precisamos saber e mais cedo ou mais tarde acabamos por esquecer. "As mais belas coisas do mundo", de valter hugo mãe, provavelmente o melhor escritor português da sua geração, é uma história belíssima, que se lê num sopro. E quando se chega ao fim é impossível não voltar ao princípio. É um livro infantil, acho. É obrigatório, tenho a certeza.

Esta é a história de um menino que, desafiado pelo avô, procura conhecer os mistérios da vida. Avô e neto vivem num jogo sem fim de perguntas e respostas, enigmas e soluções, procurando, adivinhando e aprendendo sempre. Certo dia, o menino fica sem resposta quando o avô lhe pergunta: Quais são para ti as coisas mais belas do mundo? São as coisas de verdade, como tanto quanto se vê e toca, Ou as coisas invisíveis, aquelas que pensamos, sentimos e sonhamos?

terça-feira, novembro 16, 2010

Roberto Bolaño: The romantic dogs: 1980-1998


Sobre las bolsas de basura y sobre las pistolas abandonadas
En las bolsas de basura,
La lluvia que todo lo lava
Menos la memoria y la razón.
Vestidos, chaquetas de cuero, botas italianas, lencería para volverse loco,
Para volverla loca,
Aparecían y desaparecían en nuestra habitación fosforescente y pulsátil,
Y trazos rápidos de otras aventuras menos íntimas
Fulguraban en sus ojos heridos como luciérnagas.
Un amor que no iba a durar mucho
Pero que a la postre resultaría inolvidable.
Eso dijo,
Sentada junto a la ventana,
Su rostro suspendido en el tiempo,
Sus labios: los labios de una estatua.
Un amor inolvidable
Bajo la lluvia,
Bajo ese cielo erizado de antenas en donde convivían
Los artesonados del Siglo XVII
Con las cagadas de palomas del Siglo XX.
Y en medio
Toda la inextinguible capacidad de provocar dolor,
Invicta a través de los años,
Invicta a través de los amores
Inolvidables.
Eso dijo, sí.
Un amor inolvidable
Y breve,
¿Como un huracán?,
No, un amor breve como el suspiro de una cabeza guillotinada,
La cabeza de un rey o un conde bretón,
Breve como la belleza,
La belleza absoluta,
La que contiene toda la grandeza y la miseria del mundo
Y que sólo es visible para quienes aman. 

Em repeat, repeat, repeat...


“The blanket of this city will never keep you warm.”

Plates & saucers
Sent (awake the kraken)
Blankets
Books

Ortega Y Gasset: A rebelião das massas


As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os comboios, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espectáculos, desde que não sejam muito extemporâneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo quase de contínuo: encontrar lugar. (...) A multidão, de repente, tornou-se visível, e instalou-se nos melhores lugares da sociedade. Antes, se existia, passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social; agora adiantou-se até às gambiarras, ela é o personagem principal. Já não há protagonistas: só há coro.

segunda-feira, novembro 15, 2010

Niqabizar a publicidade


Chama-se princesa Hijab, recusa revelar se é homem ou mulher, é apenas artista e, desde 2006, dedica-se a pintar com caneta preta véus islâmicos nos cartazes publicitários que abundam em Paris. Uma intervenção de rua que está a intrigar os franceses. O metro é a tela principal da princesa Hijab, artista misteriosa de voz andrógina, que aparece sempre em público de capuz e encobre o rosto com madeixas de cabelo afro, dificultando a descoberta da sua identidade. Uma espécie de Banksy, mas de provocação dirigida, uma vez que a proibição do véu, em França, deu aso a longo debate e controvérsia.

 A artista dedica-se a vestir os rostos femininos e masculinos das campanhas publicitárias com véus islâmicos: hijabs e niqabs. "Aproprio-me de símbolos, no caso, a publicidade e o véu. E com isso construo a minha alegoria", explicou, por telefone, à BBC Brasil. "No início, esperava para ver a reacção das pessoas. Algumas ficavam chocadas, outras espantavam-se ou ficavam intrigadas com aquilo", afirma.


Hijab explica ainda que a ideia de “niqabizar” (niqab é o véu que deixa apenas os olhos de fora) modelos em anúncios na estação de metro surgiu em 2006, quando trabalhava com moda. “Fazia roupas que cobriam o corpo. Era um pouco como uma burca, mas mais colada ao corpo”, conta. Consciente do impacto do que agora faz, adianta: "Paris é a capital da moda. É um acto forte fazer isso aqui".


Forte porque o véu islâmico contraria, na opinião de vários políticos franceses, os princípios "republicanos" e os valores de laicidade do país. A sua proibição, em Setembro deste ano, causou protestos em parte da comunidade muçulmana e tem sido utilizada por militantes islâmicos como motivo de ameaças de actos extremistas contra o território francês. Princess Hijab admite que o seu trabalho "causou incómodo no início" e que, por isso, "poucas pessoas queriam falar dele". A artista prefere manter-se à margem do debate. "Sou artista", insiste. "Nunca pretendi ser a bandeira de uma comunidade".

Habibi is finished!!!



Habibi já tem capa e já está terminado! Craig Thompson anunciou no blogue que terminou, finalmente, o livro de 700 páginas no dia 15 de Setembro! Durante este mês, poderá anunciar a data exacta de lançamento, mas enquanto isso não acontece, promete ir libertando trechos da história. Aqui: http://www.dootdootgarden.com/

Erasmo de Roterdão: O elogio da loucura


"Os que tiveram o raro privilégio de tais sentimentos sofrem qualquer coisa de semelhante à demência; falam sem bastante coerência, sem modo humano, pronunciam palavras sem sentido e subitamente transformam todo o aspecto do rosto. Os álacres, ora tristes, ora lacrimejando, ora sorrindo, ora suspirando, estão verdadeiramente fora de si. Quando regressam a si, não sabem dizer onde estiveram, se no corpo ou fora do corpo, se vigilantes ou dormentes. Que viram, que disseram, que fizeram? Não se lembram, tudo se passou como entre nuvens, como num sonho. Sabem só que foram felicíssimos durante a sua loucura. Deploram ter voltado a si e nada mais desejam do que a perpétua insânia. E dessa felicidade futura não gozaram mais do que a ténue prova. Também eu já me esqueci de mim, porque ultrapassei os limites."

domingo, novembro 14, 2010

The social network by David Fincher



Parece um filme, mas é um documentário. E não documenta exactamente a vida daquele rapaz de Harvard que se tornou bilionário aos 20 anos por ter percebido que o buraco da fechadura é tanto mais apetecível quanto menor for a distância do alvo. O filme de David Fincher não documenta a vida de Mark Zuckerberg; documenta a nossa própria vida neste tempo. É isso que é terrível e magnitizante em The Social Network, que está longe de ser, como dizem, o melhor filme do ano, mas que é de uma pertinência absolutamente avassaladora. Muito mais pelas questões que levanta do que pelo mais-ou-menos-furto da ideia que já gerou mais de meio milhão de adictos. De que serve ser um génio como será o autor do Facebook se não aprendeu os valores que devem ser intrínsecos às pessoas bem formadas? De que serve criar uma máquina de multiplicar amigos imaginários se não se é capaz de ser leal a um amigo real? E porque temos todos tanta necessidade de pertencer a algum lugar, a um grupo, a uma comunidade? E porque achamos todos que as nossas opiniões são tão importantes que devem ser públicas? Ou por que razão pode ser a necessidade de partilha tão ambígua? E a que distância fica o nosso comportamento da vida adulta do nosso comportamento da adolescência? Há milhares de questões que ficam a ressoar muitas horas depois de o filme ter acabado... Muitas das que me passaram pela cabeça levaram-me quase automaticamente para Ortega Y Gasset n'"A rebelião das massas". O Facebook não é bem uma rede social que alarga o leque das relações; é um mecanismo preguiçoso para enganar a solidão e outros medos e ambições mais ou menos comuns a todos. O rapaz que o criou é o mais sozinho de todos.

(Clara Ferreira Alves escreveu crónica excelente sobre o filme ontem no Expresso.) 

Fuck you, Cassia Eller

domingo, novembro 07, 2010

20 anos depois da morte de Lawrence Durrell

[Dunya Zakharova]

"E assim, lentamente, relutantemente, regressei ao ponto de partida, como um homem que no fim de uma terrível e inevitável jornada descobre que percorreu todo o caminho a dormir. A verdade é o que mais se contradiz com o decorrer do tempo."
Lawrence Durrell in Baltasar

quinta-feira, novembro 04, 2010

Lobo Antunes: Sôbolos rios que vão


"Deixou de ser pessoa sem dar conta, era um peixe numa água mais espessa que a água, a que os outros chamavam ar e ele chamava ar igualmente antes da dor que não chegava a dor
- Garanto-lhe que não vai ter dores
e por não chegar a dor incomodava mais, queria a sua dor ali, achar-se vivo através do sofrimento e afinal ele um peixe movendo de quando em quando não um braço ou uma perna, uma barbatana vaga e a abrir a boca sem uma palavra, os outros
- Que disse ele?
e não dizia fosse o que fosse salvo bolhas mudas, nas bolhas
- Dêem-me a minha dor
e recusavam-lhe a dignidade da dor, acima da água o reflexo das luzes a decompor-se e a reconstruir-se para se decompor de novo, por um momento julgou ter-se afogado no poço e que a corda do balde o iria buscar mas faltavam o cheiro dos pinheiros e o bafo da serra, a dor aproximou-se a observá-lo e desapareceu sem lhe mexer, outrs formas na água além dele e da dor"

quarta-feira, novembro 03, 2010

Hilda Hilst: Cartas de um sedutor


"Era telúrico e único. Sonhava. Sonhava adeuses e sombras. Sonhava deuses. Era cruel porque desde sempre foi desesperado. Encontrou um homem-anjo. Para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, ele cortou-lhe as asas. O outro matou-se, mergulhando nas águas. Estou vivo até hoje. Estou velho. Às noites bebo muito e olho as estrelas. Muitas vezes, escrevo. Aí repenso aquele, o hálito de neve, a desesperança. Deito-me. Austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola."

terça-feira, novembro 02, 2010

Cuidados paliativos

[Alice Lemarin]

Há fases da vida que não deviam ser baptizadas. O sofrimento intenso e incurável, se não acaba logo, e devia acabar, não devia ter nome. Cuidados paliativos significa empalear o alívio quando já não há vida. Até ao sedativo final.  

segunda-feira, novembro 01, 2010

La estrañeza de existir: Martín Sampedro


"El silencio del desierto o el silencio del agua; la poesia que rodeo al viajero o el dialogo que se establece entre dos estructuras primigenias; la inmovilidad de los sueños en el verano de Madrid o el stupor de seres digitales ante restos arqueologicos; el epacio irreal de los cuentos de hadas transformados en el espacio del terror; la búsqueda de lugares únicos en el mundo; la mirada descarnada hacia la propria efigie; el deseo y la pasión entendidos como un juego. Se trata de delimitar la sutil frontera que separa nuestro ser, da forma a la intuición de la heterotopia; cercar los sueños para transformalos en materia."

(...) La cultura como espacio en el que habitar, la poesia o el relato como la idea que nos redime; el silencio que queda tras el fragor de la batalla. El viaje, el ritual, que nos transforma en unicos. Deseo, pasión, pero tambien reposo, huida. Fuera queda el ruido, la velocidad incesante: dentro, en el espacio privado e imaginado, el pensamiento y el deseo."
Angeles Alemán

Centro de Arte La Regenta
Espacio privado, espacio imaginado
Até 7 de Novembro