terça-feira, novembro 23, 2010

Infância à venda por 220 mil euros


Há infâncias assim, abençoadas e inimitáveis. Nunca nenhum livro ou filme ou canção me deu alguma vez a imagem de uma infância mais bonita do que a infância que vivi naquela casa. E sei aquela casa de cor. Ainda sonho com ela milhares de vezes. O portão das traseiras, entrada principal afinal, cor de ferrugem, sem campainha. Bater nele como em pratos de bateria, com muita força. A A. vinha buscar-me, entrávamos, as duas pequeninas, bracitos a esconder a cara para não sermos mordidas pelo enxame de abelhas. Às vezes, acontecia. À esquerda, uma casa a fazer de garagem, com telhas e e janelas e tudo, a casa do carro amarelo. Em frente, um terraço a perder de vista, o terraço onde construíamos cabanas no Verão, cabanas onde morávamos durante o dia. Um tanque grande, a nossa piscina quando por alguma razão nos vetavam a  ida ao rio, e outro mais pequeno. Uma oliveira e um galinheiro. E uma adega. Sei de cor o cheiro da adega. E, se fechar os olhos, ainda sinto aquele frio que vinha daquelas paredes de pedra. A adega que guardava o vinho, o mel, a roupa que já não servia, os brinquedos e que nos guardava a nós dos dias muito quentes. Subir as escadas, também de pedra, até à porta da cozinha que cheirava sempre a bolo de iogurte e a doce de abóbora. A porta laranja, os balcões brancos e azul bebé, como as paredes. E um escano de madeira a separar a lareira, a lareira onde todos os dias, depois do jantar, rezávamos o terço. Era o tempo em que a Sagrada Família ainda rodava semanalmente de casa e o leite era comprado ao litro num recipiente próprio. A cozinha dava para um corredor, à direita uma casa de banho verde-água a cheirar a shampoo de maçãs verdes e a sabonete de amêndoas doces; à esquerda, um quarto. Tudo tinha portas brancas. Seguir o corredor, subir três degraus, outro quarto enorme, pé altíssimo, duas janelas para a rua debruadas a varanda fina, gradeamento de ferro todo trabalhado. Noites e noites passadas ali a conversar (que raio se conversará aos seis, sete, oito anos?) e a jogar Monopólio. Foi ali, naquela varanda, que pela primeira vez ouvimos "O ideal social" dos Ban, som difuso vindo de um pub (há quanto tempo já ninguém diz pub?), lugar ao qual só tivemos acesso muitos anos depois. A M. primeiro (e a choradeira que foi quando se foi), a I. depois, empregadas que eram amigas de sangue e davam o coração a tempo inteiro. Do quarto acedia-se ao salão, gigantesco, alcatifado, as pratas, as porcelanas, a louça da China, o almoço de domingo. A porta principal, mais escadas de pedra, outro terraço. Caminhava-se em círculo. Outra sala, mais pequena, onde a empregada tratava da roupa e onde, na altura devida, se tratava do mel, nós ali felizes como não é possível ser, a lamber os favos das colmeias que ainda eram de cortiça. Outra sala, chão espelhado em cera, mesa para seis, sofá, televisão desligada à hora da refeição, acção de graças, armários brancos com portas de vidrinhos de onde espreitavam cortinas de quadrados vermelhos e brancos. Cozinha outra vez. E na cozinha, uma porta mágica, a do sótão de mil histórias. Escadas íngremes (quantas vezes as descemos com a cabeça?) até lá cima. E no cume, uma janela secreta. Arrancar as grades e passar para o lado de lá. Como a Alice.

Entre os cinco e os onze anos dormi nesta casa muitas, mas muitas mais vezes do que na minha. Esta casa é a casa de uma família imaculada, grande por dentro. Uma família única, como nunca tinha conhecido antes, como nunca mais conheci depois. Mas é sobretudo a casa de duas amigas inseparáveis, A. e  R., duas marias-rapazes tomadas como exemplo de fidelidade, amizade considerada por todos como indestrutível. É a casa de duas crianças que não sabiam viver separadas um minuto, que faziam directas para se não perderem de vista, que cresceram juntas, que caminharam no tempo de mãos dadas, que partilharam sonhos e ideais comuns, gestos, atitudes, gargalhadas, tantas!, caminhos de futuro, amigos, momentos de tristeza e de extrema alegria, de evasão. As melhores amigas, a crítica de excepcional competência, o ideal uma da outra. Inseparáveis até ao dia em que um coração parou (haverá sempre um coração que pára?), e no interior do país quando um coração pára é sempre tarde demais para o reverter. Foi o fim de tudo. O fim tatuado num papel escrito por A. no dia em que a casa ficou desabitada para sempre. "Talvez um dia o rumo e a ironia do destino venham a separar-nos, mas eu creio e espero que isso nunca venha a acontecer". Acontece sempre, mesmo quando a infância é um privilégio incomensurável, mesmo quando uma terra inteira chora a injusta separação de duas crianças assim, mesmo quando a adolescência se alimenta de intermináveis viagens de autocarro todas as semanas e o Verão, ano após ano, é vivido com comoção por duas famílias solidárias com aquela amizade, duas famílias incapazes de travar o luxo dos telefonemas diários. Acontece sempre, mesmo quando tenta atrasar-se a entrada na lufada da vida adulta. Acontece, mas não apaga.

Numa das esquinas desta casa há pendurado um brasão. Casa brasonada, pedra de armas barrocas dos Azevedos, com 830 metros quadrados, diz o anúncio em que tropeçei com a sensação de quem escorrega num tapete de pregos. A casa da minha infância abençoada e inimitável está à venda. Vale 220 mil euros. Quem a comprar não sabe, mas vale muito mais do que isso. Há casas com corações demasiado grandes. Corações que nunca deixam de bater.

1 comentário:

  1. "Subir as escadas, também de pedra, até à porta da cozinha que cheirava sempre a bolo de iogurte e a doce de abóbora." eu tb tinha casas assim e tenho receio que nunca vou proporcionar isso às gerações que ai vêm...ou então as pessoas mudam.

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