domingo, novembro 21, 2010

Ricardo Reis: A perspectiva dos credores


Há alguns séculos, quando as colheitas não davam fruto culpavam-se as bruxas. Hoje culpamos os especuladores quando chegam más notícias dos mercados. Um bom exercício de sanidade é pormo-nos nos pés de um investidor. Não é assim tão difícil: num instante, qualquer pessoa pode abrir uma conta num corretor e comprar dívida portuguesa. Quem acha injusto e irracional que Portugal pague 4,3% por ano por dívida a dois anos pode dar já uma ordem de compra. Assumindo que o leitor vai deter a dívida durante os dois anos, a rentabilidade do investimento depende de diferentes cenários.

No primeiro cenário, Portugal faz tudo o que for necessário para pagar todas as dívidas. Nesse caso, o leitor acabou de ganhar 4,3%, em vez dos 1,1% que a Alemanha paga hoje. Um fantástico negócio. Claro que, para desesperadamente pagar esta dívida se o país continuar estagnado, talvez o governo português tenha subido de tal forma os impostos que o desemprego tenha chegado aos 20% e a pobreza seja generalizada.

No segundo cenário, Portugal pede dinheiro ao Fundo Europeu de Estabilidade. Porque parte destes fundos são usados para pagar as dívidas anteriores, o credor continua pago e feliz. Portugal ainda deve ao exterior, mas agora a uma taxa de juro mais baixa, pelo que talvez o aumento de impostos e a crise associada sejam menores. Para o credor é indiferente.

No terceiro cenário, Portugal entra em bancarrota. Nesse caso, o investidor sabe que vai passar uns anos à espera que o Estado português chegue a um acordo sobre quanto e quando pagar. O risco é grande, mas os portugueses não conseguem que ninguém lhes empreste um euro durante as negociações. Para um país que pede 11 mil milhões de euros emprestados ao exterior por ano, é difícil imaginar o choque que isto seria.

No quarto cenário, Portugal renegoceia a dívida, digamos, com um perdão de 30%. Nesse caso, o retorno ao fim de dois anos, em vez de 4,3+4,3=8,6%, foi antes de -30%. Afinal teria sido melhor ideia emprestar aos alemães.

Tentemos agora por probabilidades nestes cenários, depois de ler as últimas notícias em Portugal. Digamos que, com 80% de certeza, Portugal vai pagar, ou por si ou usando os fundos europeus. Acredite também que a bancarrota total tem 0% de hipóteses. Por fim, que uma renegociação da dívida tem uma probabilidade de 20%.

Com estes cenários, o retorno esperado no seu investimento é 0,88%, menos que emprestar à Alemanha. Às tantas, o leitor só está disposto a emprestar ao Estado português a uma taxa bem maior. Olhando para estas contas, o comportamento dos "mercados" parece assim tão irracional? Curiosamente, muitos dos comentadores que bradam contra os pérfidos especuladores, no mesmo comentário fazem previsões para Portugal bem mais pessimistas que as probabilidades no exercício acima.

[Na edição de fim-de-semana do i]

2 comentários:

  1. as contas estão mal feitas. o perdão da divida de 30% não implica uma perda de 30% para o investidor da forma apresentada, mas sim: 70%x4,3%+30%x0= (aproximadamente)3,1% o que continua a ser, largamente, superior à divida publica alema, bem como a questão probabilística não aumenta, significativamente, a taxa de juro: 80%x4,3%+20%xK=y. para chegarmos a y=7% o k teria que rondar os 20% (que, diga-se, é taxa de crédito ao consumo)...

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  2. adenda 1: o calculo referente ao cenário de 30% é apenas referente a 1 ano, para ser comparável ao texto exige um multiplicador=2.
    adenda 2: os especuladores não são bruxas, são uma realidade palpável e a actuar de formas disseminada no mercado, muito embora as entidades que regulam o mercado tenham como função a sua erradicação.

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