quinta-feira, agosto 05, 2010

Ana Teresa Pereira: A coisa que eu sou

[Kandinsky]

"Sempre tinham dormido juntos. Em quartos de hotel, em cabanas perto do mar, em comboios que atravessavam noites sem fim. Mesmo no tempo em que ele não sabia muito bem onde acabava o seu corpo e começava o dela, onde acabava o seu corpo e começava o mundo. Adormecia com o som da máquina de escrever; e aprendera a ficar em silêncio quando ela se afundava num jardim, num museu, na escuridão de um cinema. Folheavam os dois velhos livros com gravuras a preto e branco: barcos engolidos pelas vagas, anjos que subiam e desciam uma escada, o príncipe no castelo da Bela Adormecida, o Capuchinho Vermelho na cama com o lobo. Por vezes ela lia versos que o menino não compreendia: «E como está perdido o ser que tem de voar e provém de um seio...» E contava-lhe histórias. Contos de fadas, sempre os mesmos, todas as noites."

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