domingo, maio 09, 2010

O que pode correr mal se um dia ficares feliz?



Qual é a probabilidade de em quase cem músicas da última década tropeçarmos numa que um dia nos arrancou do peito o coração à dentada? Que nos obrigava a concentrarmo-nos no chão para não chorar? Qual é a probabilidade de ela voltar, impiedosa, numa audição inesperada, a importar da memória aquela dor, aquela aparente ausência de Deus?

A agulha na aparelhagem onde já choraram tantos vinis, horas seguidas, a escarafunchar todos os amores perdidos. Bob Dylan, com "sangue nos olhos", a perguntar: "Entendes a minha dor? Estás disposta a arriscar o amor em vão?". Elvis Costello a protestar: "Deixaste-me sozinho no escuro, apesar de eu achar que nunca iríamos separar-nos". Jeff Buckley a despedir-se: "Este é o nosso último adeus. Odeio sentir que o nosso amor morreu. Mas morreu". E Marvin Gaye e os Chash e os Cure e os Smiths...

Hoje, ao tropeçar numa dessas canções, lembrei-me de "A vida cheia de som & fúria", adaptação de Alta Fidelidade, de Nick Hornby, encenada por Filipe Hirsh, da Subtil Companhia de Teatro de Curitiba, apresentada no Teatro Nacional S. João, no Porto, em Maio de 2004. "Som & Fúria" era um patchwork sonoro a dizer que a angústia não acaba quando se entra na idade adulta. Porque não há manuais para aprender a perder alguém. Porque não há poesia sem angústia.

"No momento em que olhei para o relógio percebi que, a partir daquele momento, a minha vida dividir-se-ia entre o antes e o depois do momento em que ela me deixou", confessava, na peça, o DJ Rob Fleming (numa mais do que perfeita interpretação de Guilherme Weber), abandonado pelo menos seis vezes. Alison, Penny, Jacky, Charlie e Sarah. As mulheres que lhe haviam destruído a vida. E Laura, que insistia em ir... e voltar. "Estou demasiado cansada para te deixar", explicou numa das vezes em que voltou. E o regresso sabia a desistência. Dela? Do amor? Não se percebia. Entrava então Costello a perguntar: O que pode correr mal se um dia ficares feliz?

Do melhor teatro contemporâneo do Brasil, dos tempos em que o Porto fazia parte desse roteiro, Filipe Hirsh transformou uma peça sobre "a geração das 501 e das DcMarteens" num concerto de bar clandestino. Com droga, sexo e suicídios. "As pessoas preocupam-se com a influência que os filmes violentos e as séries de televisão têm nas crianças, mas ninguém se preocupa com a juventude que passa o tempo todo a ouvir músicas tristes." Diz quem sabe. Rob Fleming.

Sem comentários:

Enviar um comentário