domingo, maio 02, 2010

Mar é roleta russa


O mar é uma roleta russa, um jogo de azar, espécie de suicídio encomendado. É colocar uma só bala no tambor de uma arma de seis tiros, fechar o tambor, girá-lo até perder a localização da bala, apontar a arma à cabeça e depois disparar. É uma hipótese em seis de morrer. Parece pouco; é muito. Em Portugal, desde Janeiro, já morreram 13 pescadores – é uma morte a cada duas semanas.

A vida dos homens do mar é essa incerteza ditada pela roleta: às vezes morrem; às vezes sobrevivem. Cada faina é uma rodada nesse jogo que a lenda enaltece como exemplo de bravura e coragem. Pescar todos os dias durante uma vida inteira, torneando o mar e o medo, é justamente isso: bravo e corajoso. Mas sobreviver, contra tantas evidências em sentido contrário, será um mistério muito maior.

Assistir a esse exemplo de perto, dentro de uma embarcação, não é experiência que deixe a salivar pela repetição. Mas foi essa viagem que testemunhámos uma semana antes do acidente que na última quinta-feira voltou a roubar a vida a dois pescadores das Caxinas. O barco, menos de dez metros, que habitualmente leva dois homens, alojou cinco: dois pescadores, dois repórteres e o mestre José Festas, presidente da Associação para a Segurança dos Homens do Mar. “Anjo da guarda nos guie”, o nome do barco de madeira. A motor.

Perto da meia-noite, a noite era de trovoada. Supunha a ignorância o cancelamento da pesca. Cinco horas depois, ainda noite cerrada, na zona piscatória da Apúlia, em Esposende, Júlio Ferreira, o mestre, e António Marques, o tripulante, riam da hipótese aventada. “Não deixamos de ir para o mar só porque o mar está mau”, dizia um, os dois num vaivém constante: preparar baldes, cestos, sacos, oleados, ferramentas, cordas, colocar tudo no “anjo” é tarefa que leva tempo. Para eles, o dia começa às três, quatro horas da madrugada.

Às cinco, a tempestade já passou. Mas a saída ainda parece perigosa. Para inexperientes. Atravessar às escuras a zona da praia, onde rebentam as ondas, pode impressionar. Todos, menos os pescadores, habituados a equilibrarem-se em mar alto como em terra firme. “Quando o mar está bravo é preciso esperar pelo dia para ver melhor. Mas hoje o mar está bom, não vai custar nada. A chegada, vão ver, é mais brusca do que a partida”, avisa António, 40 anos de idade, 30 de mar. “Quem nasce no mar está sempre à vontade, é como se estivesse em terra”.

Palavra de pescador é palavra de escuteiro. A pouco mais de uma milha da costa, Júlio, homem de poucas palavras, um gigante de quase dois metros, idade de Cristo e 22 de mar, desliga o motor da embarcação. Silêncio absoluto. Confirma-se: mar manso, sem nervos, a exalar o cheiro imaginado a algas, a sal, a peixe. Mar de um azul escuro de onde só sobressaem, ao longe, as luzes de outros barcos. Passa pouco das seis horas. Frio ameno, suportável.

Para estreantes, ergue-se outro desafio: não enjoar naquela dança lenta das águas. E esperar que o truque de fixar um ponto no vazio funcione como bálsamo. Truque que os pescadores não podem usar, porque não têm tempo para se entregar à contemplação. Mal o barco estaciona naquele infinito sem chão, o barco já com dois dedos de água dentro, os homens inauguram um frenético exercício de braços sem nunca parar para descansar: colocar ferros na embarcação, lançar cordas, puxar cordas, prender cordas, abrir cestas (chamam-lhe mijonas ou cobres), lançá-las, recolhê-las, fechá-las, as mãos no ar como um arco sempre a balançar entre a esquerda e a direita. Exercício ininterrupto. Pode chegar a demorar quatro horas. E demorou.

António, que já andou pelo mar de Espanha, de Marrocos, da Irlanda, de Inglaterra, ainda tenta usar colete insuflável, o mesmo que o governo português quer agora tornar obrigatório. Mas desiste logo a seguir. “É impossível trabalhar assim, não me deixa fazer os movimentos que preciso”, explica enquanto só com uma mão agarra um polvo, que golpeia com outra. O colete “pega, engata, atrapalha” mais do que ajuda, que o homem não pára de mexer, de se debruçar sobre o barco, de executar mil tarefas por minuto, coreografia ensaiada ao milímetro. É o ensaio da experiência.

E é a falta dela, dessa experiência, que Júlio Ferreira, a usar fato insuflável, lamenta na resolução governativa: “Nunca ninguém falou connosco, ninguém veio ver como é que se faz. Se tivessem vindo, perceberiam que com o fato trabalha-se à vontade, porque não prende. E se a gente, por qualquer razão cair ao mar, fica a boiar."

O dia nasce em câmara lenta, entre as sete e as oito horas, e com ele chegam as gaivotas. A pesca ganha banda sonora. O céu muda de cor, colado ao mar é uma aguarela azul e verde a desbotar. É absolutamente poético, mas só para quem não depende da generosidade do mar, do que ele dá – e do que ele tira. Nas Caxinas, mais de 70% da população vive disso. O Norte todo alberga cerca sete mil pescadores. A lei diz que só podem lançar 200 cestas e 50 redes por cada pesca; eles lançam mais. “Temos de fugir à lei se não não ganhamos para os gastos do dia-a-dia”, confessa mestre Júlio. Quer pesque muito ou pouco ou nada, de cada vez que vai ao mar gasta sempre 100 euros distribuídos por gasolina, iscas e salário diário do tripulante.

Nesta viagem, alou, claro, mais de 200 mijonas. Conseguiu cabaz e meio de polvo e meia dúzia de navalheiras. “Não é bom, não é mau, é o que é”, diz sem desgosto nem entusiasmo.

São quase dez horas quando se regressa à Apúlia, o sol ainda mal aquece e o dia deles, de Júlio e António, já poderia estar ganho. Mas não está. Largam o peixe na praça onde as mulheres já montaram a banca, mulheres que já não vestem de negros, que os tempos são outros, e o peixe não preenche os espaços da bancada. Eles voltam para o mar, repetem tudo outra vez.

Roleta russa. Risco desajustado, muito perigo, demasiado esforço para tão pouco lucro às vezes. Ainda por cima, “o peixe está mais barato do que há dez anos”.A chegada, avisava António, é mais brusca do que a partida. É pior. O barco empina-se todo para dar uma chapada na areia.

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