A 11 de Setembro de 2001 todos os que até aí não tinham opinião sobre o mundo árabe, passaram a tê-la. Opinião e repulsa, com toda a margem de erro que a generalização sempre transporta. Nós também, claro. Pouco depois, estivemos no Egipto, o território mais próximo dos muçulmanos que conhecemos. Não houve a mais pequena empatia e ainda hoje guardamos na memória a persistência daquele odor ocre a suor e especiarias e pó e sol desbotado. E a igual persistência daquele som rouco dos altifalantes em constante chamamento para as orações. Foi a constatação da nossa intolerância cultural: somos ocidentalíssimos e europeístas. Pequeninos, portanto. Não é muito interessante, talvez nem muito inteligente, mas é assim que somos.
"Radio Muezzin", a peça de Stefan Kaegi, apresentada ontem no Teatro Carlos Alberto, no Porto, no âmbito do Alkantara Festival, é um exercício quase voyeurista sobre o universo dos muezzins, as criaturas contratadas pelo ministério para chamar o povo para as cinco orações diárias que se realizam nas mesquitas em várias partes do mundo à mesma exacta hora (em França e na Alemanha são proibidas). Só no Cairo existem 30 mil mesquitas. E fica-se com a clara impressão de que todo o quotidiano daquela gente é condicionado por esse cíclico apelo. Quotidiano e ambição. Quando não estão em oração, estão à espera dela.
A história, em 80 minutos, é a história de quatro muezzins do Cairo - que não são actores; são mesmo muezzins - e partilham a sua história de vida, as suas ambições, a sua dedicação e a sua aparente redenção. A história do quarto elemento surge apenas em vídeo porque, dizem-nos, ter-se-á desentendido com o resto do grupo. O primeiro sujeito é um professor de Alcorão, cego, que puxa as orelhas a quem não sabe aquilo de cor; o segundo é o filho de um agricultor, cuja função é aspirar a mesquita onde cabem 50 pessoas, chamar para a oração lá dos minaretes e volta e meia dirigir a dita oração; o terceiro é um electricista que depois de ter sido atropelado por um autocarro aprendeu o Corão e rendeu-se; o quarto, o tal do vídeo, é um advogado halterofilista que, seguindo as pisadas do pai, ganhou o segundo lugar no campeonato mundial de recitação do Alcorão.
A peça-documentário, comentava-se no fim, é interessante, porque é neutra. Até pode ser, mas ficámos com algumas dúvidas em relação a essa neutralidade, o que em nada desmerece o trabalho enquanto objecto artístico, que é, desse exclusivo ponto de vista, notável. A ideia do colectivo suíço não é, como facilmente se depreenderá, satisfazer a curiosidade do mundo ocidental explicando e mostrando os rituais da reza; é - pasme-se! -mostrar a preocupação, a indignação diante das novas tecnologias. Os muezzins estão atarantados com as tecnologias (?) chinesas que, em breve, farão com que o apelo para a oração dispense as pessoas, logo, os seus empregos.
Talvez tudo esteja realmente em Deus e Deus seja o mesmo para nós todos e não haja, como eles cantam, outro Deus senão Deus. Mas Deus, visto assim, é um lugar muito estranho.
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