sexta-feira, maio 07, 2010

Filipa Melo: Este é o meu corpo


Poderá um médico legista apaixonar-se pelo dono de um corpo que lentamente vai desmontando para lhe amputar os segredos? Pela pele que descola como se fosse um coelho, pelos órgãos que corta às rodelas como laranjas, pelos negros e longos fios de cabelo que vai minuciosamente colocando no interior de um saco?

Está longe de ser um romance mórbido aquele que marcou, em 2001, a incursão de Filipa Melo pelo romance; mas é um livro que sangra a meio caminho entre a vida e a morte. E sangra porque a história é segura. Desfia os sentimentos provocados pelas várias formas de morrer, sendo que o corpo acaba invariavelmente numa sala de autópsias para a confissão final do defunto, a inescapável e muda confissão, enquanto alguém aprende a viver sem o dono desse corpo. Porque a escrita é absolutamente virtuosa. Aqui e ali emergem descrições tão detalhadas que sugerem imagens rigorosas do interior do corpo humano - sendo científicas, não perdem a intensidade que lhes confere humanidade: o coração do tamanho de um pulso, o cérebro da mulher mais pesado que o do homem... E porque a discreta estrutura que o suporta continua, apesar de tudo, a ser singular.

A história podia ler-se alternadamente - primeiro os capítulos ímpar, depois os par -, porque a escritora introduziu compassos temporais perfeitos: a vida de um lado; a morte do outro. A vida. O neto de António Cernelha dos Santos que acaba de nascer ("O ar a entrar nos pulmões e a vida já a explodir de lá de dentro envolta em golgadas de sangue e muco"); a trivialidade do quotidiano de cada um ("Há muito que aprendo que é em pequenos gestos repartidos por cada dia que permanecemos inteiros, que evitamos desfazer-nos em pedaços."). A morte. A aprendizagem da ausência das pessoas que amámos e que não voltaremos a ver senão em conversas e deambulações interiores. "Todas as mortes são violentas. Sobretudo para os que cá ficam". O rapto dos recados dos mortos num instituto de medicina legal. "Seguro-te nas minhas mãos. Tudo o que foste está aqui. Todos os risos, todas as dores, todos os gestos."

Há cheiros neste livro. É possível senti-los. Tal como a estranheza peganhenta do pacto de lealdade entre um médico e uma defunta. Um confessa-se com palavras; o outro com o corpo. "Serei eu, um homem que não escolheste, quem melhor te conhece por dentro. Sinto-me como um amante desejoso de fazer promessas. Quero dizer-te que respeitarei o que não quiseres contar-me..." É uma espécie de pingue-pongue entre os infortúnios da vida e os desígnios da morte. Sendo que ambos se abraçam. No fim. "Uma autópsia é como um nascimento: nunca se repete."

Filipa Melo nunca mais publicou nada. E eu queria tanto, mas tanto que ela voltasse aqui.

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