quarta-feira, março 28, 2007

Kameraphoto


(Foto: Rui Xavier)
Para comemorar o seu segundo aniversário a Kgaleria apresenta TXT, um novo projecto do colectivo Kameraphoto. TXT convida o público a confrontar o seu imaginário visual com a realidade das imagens. E permite a aquisição de imagens dos fotógrafos da Kameraphoto - Alexandre Almeida, António Júlio Duarte, Augusto Brázio, Céu Guarda, Guillaume Pazat, João Carvalho Pina, Jordi Burch, Martim Ramos, Nélson D´Aires, Pauliana Valente Pimentel, Pedro Letria, Rui Xavier, Sandra Rocha, Valter Vinagre - a um preço simbólico de 10 euros.
A exposição inaugura hoje às 18.30 horas, na Rua da Vinha, 43A, no Bairro Alto, em Lisboa.

terça-feira, março 27, 2007

Dia Mundial do Teatro

(Foto: Jordi Burch)

"O teatro é apenas uma grande lição de estranheza."

Exercício de cidadania II

Os pontos em discussão não eram extensos nem propriamente palpitantes - não ofereciam muita margem para discórdia ou, pelo menos, para grandes elocubrações verborreicas. Mas, mesmo quando assim é, costuma sobrar espaço para a redundante piada de pacotilha.
Hoje foi diferente. Sem Rui Rio na audiência, a reunião da Assembleia Municipal do Porto pareceu, finalmente, uma câmara de adultos. Decorreu de forma pacífica, educada, correcta. Não foi só a ironia do autarca que faltou, ou os seus comentários laterais de gosto duvidoso; foi também a falta de vontade dos seus parceiros de bancada - Lino Ferreira, postura inatacável em qualquer cenário, invariavelmente excluído desta interpretação -, para mostrar habilidades em tentativas sucessivas de impressionar o mestre. Álvaro Castello-Branco, habitualmente disperso nessas manobras circenses, (a)pareceu reinventado. Pareceu um adulto civilizado em vez de um menino de escola carente.
Escorregou Manuel Monteiro, deputado do PSD, de lição estudada, mas demonstrando imperdoável falta de respeito pelos congéneres mais novos. A referência perjorativa à idade do socialista Pedro Couto, na sequência - ainda por cima - de uma intervenção consistente, não podia ter-lhe ficado pior.
Excepcionalmente, a expectativa esteve concentrada nas alegações do público: a comunidade de ciganos que irá ser despejada das barracas do Freixo. Houve quem reclamasse igualdade de direitos. Lino Ferreira, outra vez superior, respondeu com a igualdade de deveres. E os lesados não contestaram.

segunda-feira, março 26, 2007

The Good Girl`s Stories


"Enredadas na memória, as telas expostas constituem uma viagem da pintora na sua própria vida, sabendo nós que as soluções forjadas na infância e os expedientes criativos podem regressar mais tarde em momentos imprevistos. Há uma marca que fica inscrita no modo como encaramos o mundo e a vida; e a matriz de Evelina Oliveira na criação plástica é certamente tributária desse tempo em que as bonecas de papel protagonizavam histórias entre o mais aventuroso ou o mais recatado.
As figuras, ou a figura feminina, porque se trata quase sempre de uma figura feminina, evocam, naturalmente, a infância de filha única, o tempo de solidão povoada por histórias inventadas, de brincadeiras improvisadas, de esperas intermináveis e férias muito longas que faziam funcionar a imaginação e a criatividade". (Laura Castro)
Evelina Oliveira - pintura
«The Good Girl`s Stories»
Ao Quadrado Galeria de Arte Contemporânea
Santa Maria da Feira
De 31 de Março a 30 de Abril

Porto


O Porto, magnificamente fotografado, para ver aqui.

sábado, março 24, 2007

Direito à felicidade


“Pergunta-se hoje se ser feliz é imoral e proclama-se o direito à felicidade a qualquer preço, ainda que isso signifique a rasura da ética, a substituição da racionalidade pela sedução, a incapacidade de convívio produtivo com a dor, sempre excluída ou anestesiada”.

João Barrento in “A espiral vertiginosa”

sexta-feira, março 23, 2007

Lição número cem

Na Primavera começava a contagem decrescente. Os cadernos pretos encadernados com a arte que à altura admirávamos já quase não tinham páginas brancas, mas sabíamos que não tínhamos que comprar cadernos novos. Juntavam-se umas folhas A4 emprestadas e serviam perfeitamente para apontar uns sumários aos quais já não daríamos grande importância. Como se o sol fosse a fronteira que ditava a matéria que já não sairia nos testes. Os livros, já todos amarrotados, serviam-nos de almofadas nos intervalos. E os intervalos eram cada vez maiores porque descobríamos o prazer de chegar depois do segundo toque, de sentar na última fila, de não esticar o dedo para responder às perguntas só porque não - o sabor de quem sabe que está no fim da linha. De quem tem os pés na sala e a cabeça onde a voz do professor não chega.

Experimentávamos, com a excitação dos rituais clandestinos, os primeiros cigarros atrás dos pavilhões; alguns trocavam os primeiros beijos. Os contínuos, com os olhos dentro dos bolsos das batas, fingiam não ver. Sorriam discretamente, não como guardiães daquele segredo; mas como se só eles soubessem que nenhum amor sobreviveria às férias grandes. Havia sempre só um rapaz desejado - o mais marginal e tendencialmente o mais velho; sempre só uma rapariga - a mais bonita. Ninguém ficava triste com isso. Era assim. No ano seguinte, talvez os eleitos fossem outros. Eram outros. Trocavam-se bilhetes, promessas enigmáticas escritas a giz nos postes pretos dos corredores. E sonhos, que não eram de Verão, mas do próximo campeonato lectivo. E tudo batia sempre certo. Como nos filmes. Nenhuma história capotava.

Um dia, saíamos de casa para a escola sabendo que não teríamos escola. A lição número cem de cada disciplina era comemorada com pic-nic e gazeta. E euforia. Não era só o ano lectivo que estava quase a acabar. Eram esses amores, protelados durante três períodos, que floresciam, finalmente. Eram as frases silenciadas que ganhavam forma. Era a súbita confiança com os professores e a argumentação que os convencia a esticar um quatro para um cinco - ou um dois para um três. E eles cediam, certamente convictos de que inflacionar notas na aldeia não haveria de corromper o mundo. Era o contraditório desejo de que não acabasse já ali a maratona das aulas. Embora se faltasse cada vez mais às aulas. Embora ser expulso delas se tornasse num improvável momento de glória. Os inquilinos das cadeiras dispostas atrás das mesas em forma de U mudavam nas últimas semanas: as equipas sexistas eram substituídas por casais.

Íamos para o rio na recta final do percurso. E ninguém se sepultava primeiro dentro de um solário por temer exibir a brancura epidérmica. Ser mais ou menos gordo também não era obstáculo para vestir os biquinis da época anterior. Não era relevante. Não se falava disso. Falava-se de tudo o que se calou durante um programa curricular inteiro. Partilhavam-se ideais, caminhos de futuro. E antecipava-se a viagem anual, onde mais paixões haveriam de surgir. Viagens ali, ao virar da esquina, que nos deslumbravam como cruzeiros. Havia sempre alguém, geralmente o rapaz marginal cobiçado, que saltava da ponte mais alta. E sempre alguém que levava um rádio de pilhas com os hits do momento.

Depois, os viciados como eu, iam jogar Tetris até não haver mais moedas no raio de cinquenta metros. Nem os empregados do café eram poupados ao peditório. Tudo em nome de um novo recorde. Bebia-se café com natas. Aguardava-se o baile de fim de tarde, derradeiro momento para angariação de fundos e slows suados dançados às escuras. O concerto nocturno das bandas de garagem da terra encerraria um capítulo que todos sabiam que haveriam de contar vezes e vezes sem conta pela vida fora.

Voltávamos no ano seguinte. E nunca voltávamos iguais. Voltavam os enérgicos debates para a eleição da associação de estudantes. Vitórias emolduradas. Devagar, talvez com maior vagar do que nos sítios onde viviam as pessoas que conhecíamos Verão-após-Verão, crescíamos mais um bocadinho. Mas continuávamos a acreditar, tão cândidos como no início, que nunca haveríamos de nos separar. No fim dos anos lectivos todos, doze seguidos, candidatámo-nos, os seis do núcleo duro, à mesma cidade. Lisboa era a mais conveniente para um, para o que queria Comunicação Social; logo, a mais conveniente para todos. Donos do nosso pequeno pódio transmontano, não estávamos habituados a ser driblados pela ideia de que há mais mundo além do nosso. Ficámos todos separados.
["Amizade fresca, assim, aos 30 anos, é coisa rara!", disse-me poucas semanas depois de o ter conhecido. Eu senti que foi amor à primeira vista. À primeira vista, o amor dispensa universos comuns. Mas nós até temos alguma identidade nos universos. E, ainda assim, não é isso que é relevante. Redescobri o Porto com ele, que é de Lisboa. Fui feliz durante uma semana como já não me lembrava de ser. E quase adoeci de saudade quando foi embora - ele e o parceiro com nome de whisky. Se houvesse desejos garantidos dentro de lâmpadas mágicas, pedia para morarmos na mesma rua. Como não há, vou respeitando os acasos. Pediu-me um post para pendurar na janela do Arranha-Céus onde vive; partilhei este, insegura. Eu escrevo como calha; ele escreve de forma inatacável: directo, certeiro, ao fundo. E não só na América. Um dia, ouvi alguém dizer que é a alegria que distingue as pessoas que vivem no céu das que vivem na terra. Ele, claro, está no céu. "Amizade fresca, assim, aos 30 anos, é coisa rara", concordo, certa de que o que ainda não partilhámos será maior do que o que já vivemos. O Ricky é amizade sem carapaça.]

quinta-feira, março 22, 2007

Diálogos pueris XX


Ele: Gostava de ter estado mais tempo contigo. Sozinho contigo, digo.
Ela: Pois...
Ele: Aliás, tenho pensado numa carta para ti, mas não sei se alguma vez a vou escrever...
Ela: Então?
Ele: São apenas ideias sobre o que vou pensando de ti...
Ela: Que tens pensado?
Ele: No que conheço de ti... Gostei de estar contigo, apesar de tudo.
Ela: Mas não falaste muito...
Ele: Não. Mas achei graça... vives num mundo tão distante...
Ela: Do teu?
Ele: Sim. As histórias, os assuntos, os personagens, que não são os meus...
Ela: Nada será assim tão diferente...
Ele: A sério que é... Estava a provar o teu mundo e a achar um piadão. Aliás, foi essa perspectiva que me deixou a pensar. A ideia que construí de ti é mesmo contrastante...
Ela: Contrastante?!
Ele: Sim. É difícil explicar e até pode ser que seja fruto da minha imaginação "améliana", mas fiquei com a sensação de que eras um personagem demasiado sensível...
Ela: No meio dos outros?
Ele: Sim. Do tipo: como se sente uma rosa entre os espinhos que a embrulham?
Ela: Essa foi a ideia que ganhaste ou que perdeste?
Ele: Não, não... foi com essa ideia que saí de lá... Não te faz sentido nenhum, pois não?
Ela: Não sei bem...
Ele: Reparei em pequenas coisas que podem não fazer sentido nenhum...
Ela: Por exemplo?
Ele: Lembrei-me daquela vez em que tomámos café no meio de um trabalho teu. Já foi há algum tempo e também não é importante. Mas nesse dia reparei que enquanto falavas o teu maxilar ganhava tensão. E acho que foi a primeira vez que reparei nisso...
Ela: Sim, lembro-me dessa tarde...
Ele: Na semana passada pareceu-me que essa tensão estava lá outra vez.
Ela: É possível.
Ele: Curiosamente, senti o maxilar livre quando falavas do que tinhas sentido...
Ela: É verdade, essa tensão existe volta e meia. E deve realmente notar-se, porque não és a primeira pessoa a dizer isso...
Ele: A minha imaginação disse-me automaticamente que és mais livre quando falas dos sentimentos... Mas os espinhos logo mostraram que existem e tu recolheste-te... Foi aí que surgiu a tensão. Mas achei-te muito bonita.
Ela: Para ti, as outras pessoas são espinhos?
Ele: Não sou eu que as vejo assim. Para ti, algumas pessoas é que parecem funcionar como espinhos. Não digo que o sejam sempre. Aliás, talvez não sejam elas os espinhos. Apenas, talvez, sejas tu a flor: delicada, perfumada, atraente. E bonita, como estava a dizer.
Ela: Isso é muita imaginação. Mas sim, às vezes sinto-me dessintonizada... Como se me tivesse enganado no apeadeiro... Tinha escolhido um feito de coisas mais simples... achava eu, pelo menos.
Ele: Percebo bem o que estás a dizer. Nem sempre o hábito faz o monge. Mas não te sinto escrava do que não queres. Precisamente, por seres mais do que isso.
Ela: Queres que me sente no divã?
Ele: Quero saber o que te apetece...

[Diálogos Pueris]

Young@heart





"This is from a documentary shown on Channel 4 in the UK called 'Young@Heart'; the name of the New England octogenarian chorus line. The performer here is Fred Knittle, who suffers from congestive heart failure. This song was intended to be a duet between Fred and another chorus member, Bob Salvini.
Sadly, Bob died of a heart attack and it was left to Fred to carry the song on his own. If I'm correct, the people you see crying at 01:13 are Bob's family. The lady you occasionally see mouthing the lyrics in the audience is Fred's wife".

Fix You, by Coldplay

When you try your best but you don't succeed
When you get what you want but not what you need
When you feel so tired but you can't sleep
Stuck in reverse

When the tears come streaming down your face
When you lose something you can't replace
When you love someone but it goes to waste
Could it be worse?

Lights will guide you home
And ignite your bones
And I will try to fix you

And high up above or down below
When you're too in love to let it go
If you never try then you'll never know
Just what you're worth

Lights will guide you home
And ignite you bones
And I will try to fix you

Tears stream down your face
When you lose something you cannot replace
Tears stream down your face
And I...

Tears stream down your face
I promise you that I'll learn from my mistakes
Tears stream down your face
And I...

Lights will guide to home
And ignite to bones
And I will try to fix you

quarta-feira, março 21, 2007

Factory girl


Edie Sedgwick, pobre menina rica, queria ser famosa. Andy Warhol, maníaco artista pop, concedeu-lhe 15 minutos. Um dia, todos teriam os seus, apregoava. Edie apaixonou-se inelutavelmente por ele. Andy sugou-lhe impiedosamente a alma. Viveram juntos durante um ano. Enquanto ela teve capital para esbanjar. Depois, ele trocou-a por outra. Por outra parecida com ela. Ela chorou nos braços da heroína. Sem Bob Dylan, por quem se apaixonara, mas de forma carnal. E com o sonho destruído. Suicidou-se aos 28 anos, três meses depois de ter rodado uma espécie de autobiografia da decadência: "Ciao, Manhatthan", realizado por John Palmer e David Weisman, em 1972.
Factory Girl, de George Hickenlooper (com desempenhos absolutamente notáveis de Sienna Miller e Guy Pierce), que deverá chegar a Portugal em Maio, é o impressionante retrato desses 12 meses de 1965, de devaneio semi-conjugal dentro de uma fábrica - dentro da Fábrica. E é o fim do mito Warhol - criatura oportunista, interesseira, insensível, egocêntrica, mesquinha, obstinada, ridícula, no limiar do patético. E de cuja obra, pessoalmente, nunca gostei.
Bob Dylan tentou incompreensivelmente impedir a estreia do filme, no início deste ano, nos Estados Unidos. Mas, se fosse vivo, seria seguramente Andy Warhol a mover uma providência cautelar. Depois de espiar o seu laboratório, como quem inspecciona o seu interior decrépito, é impossível continuar a considerá-lo. Um artista não despreza a sua musa. Não a assassina.
Sem ele, talvez ela, rapidamente reconhecida como rainha do cinema underground, nunca tivesse cumprido o desejo de ser famosa. Foi protagonista de “Poor Little Rich Girl”, “Kitchen”, "Vynil" e “Beauty No. 2” e recrutada para inúmeros editoriais de moda. E talvez até tenha sido feliz. Na vertigem das festas e da transgressão. Pela primeira vez, graças à sua irreverência, a alta sociedade descia à rua, expunha-se, frequentava a Factory.
Mas sem ela, teria Warhol conseguido sobreviver à falência?

terça-feira, março 20, 2007

Michel Houllebecq: Extensão do domínio da luta

Michel Houellebecq, 49 anos, é dos escritores franceses mais cínicos. E dos mais geniais também. Tão cínico e tão genial que não consegue deprimir, apesar da negrura, da mordacidade toda que imprime ao que escreve. Não consegue deprimir porque escreve, literalmente, como quem goza com o leitor - e com a humanidade inteira; como quem retira sórdido prazer das dúvidas que impõe, das provocações afiadas com que espicaça. E o leitor facilmente se deixará levar.

Abandonou a família e a função pública há mais de 20 anos para viver sozinho na Irlanda. Escreve sobre isso. Sobre a qualidade da relação com as vacas inversamente proporcional à relação com os humanos. Sobre o isolamento e sobre o fim de quase tudo, a começar pelo amor. "Fenómeno raro, artificial e tardio, o amor não pode desabrochar a não ser que tenha condições especiais, raramente reunidas e em todos os pontos opostas à liberdade de hábitos que caracterizam a época moderna". Escreve como quem não faz parte do mundo; como quem só observa mais e melhor do que outros e, semi-visionário, vai dando pistas, que nunca são soluções para viver, mas instrumentos para morrer. As mulheres odeiam-no; ele trata-as como criaturas mentecaptas e meramente sexuais e, mesmo assim, de usufruto duvidoso. A visão misógina não serve para cativar os homens, que vêem nele um escritor perturbado. Os críticos reduzem-lhe a ficção a sociologia de bolso.

Houellebecq deve rir-se de todos. Traduzido em mais de 40 países, com mais de um milhão de livros vendidos, tornou-se numa incontornável celebridade europeia. Escritor maldito? Ele responde que, quando muito, será uma pessoa maldita. Os seus livros são autobiográficos? Dispara a gargalhada em negação. Diverte-se a inventar factos sobre a sua vida - inventou que a mãe se suicidou só porque "as mentiras são sempre mais sedutoras e sensacionais" e porque "a imprensa não suporta a verdade" -, mas reconhece que trabalha por aproximações. "Escuto muito as pessoas. Ouço-as com atenção e cuidado, mesmo quando pensam que não estou interessado no que dizem. Com frequência, o que as pessoas dizem reaparece, tal e qual, nos meus romances. Talvez possa dizer-se que é um método de prospecção da realidade por contacto directo e informal. Chamo a isso simplesmente ouvir e aproveitar".

"Extensão do domínio da luta", o seu primeiro romance [editado em Portugal pela Quasi, em Outubro 2006], é triste, pessimista - "Só o suicídio inacessível espreita à superfície" -, e é contado pela voz de um personagem de 30 anos, para que ninguém caia na tentação de adiar a desesperança. "Nem a boa vontade pode impedir o retorno cada vez mais frequente destes momentos onde a solidão absoluta, a sensação de vacuidade universal e o pressentimento de que a existência se assemelha a um doloroso e definitivo desastre premeditam o mergulho num estado de verdadeiro sofrimento."

Anuncia com hirta convicção a extinção progressiva das relações humanas - "Tem-se a sensação de que se pode rastejar, cortar os pulsos com golpes de lâmina ou de se masturbar em pleno metro que ninguém há-de reparar; ninguém fará um gesto. Como se estivesse protegido contra o mundo através de uma película transparente, inviolável e perfeita". -, critica o imaginário das sociedades pós-modernas que tende a fingir oferecer felicidade às pessoas e discorre ironicamente sobre os efeitos do consumo. A prostituição, hierarquização do sexo pago, será uma das poucas vantagens que encontra no devir actual. "Precisamos de aventura e erotismo, porque temos necessidade de nos ouvir dizer que a vida é maravilhosa e excitante; e é muito verdade que mesmo assim chegamos a por tudo em causa".

O livro, dividido em três partes e em agonia crescente, é uma obra-prima obrigatória. Não porque ensine a viver com falência que anuncia, não porque ofereça pistas de inversão de marcha, mas porque é terrivelmente bem escrito e porque conterá verdades maiores do que aquelas em que estamos habituados a acreditar. "Se fosse preciso resumir o estado mental contemporâneo com uma só palavra, sem sombra de dúvida que escolhia: amargura".

domingo, março 18, 2007

Daddy's girl

Daqui a 15 dias, o pai terá 69 anos. Vivemos separados por 40 rigorosos anos de diferença. E, no entanto, por distância nenhuma. Cresci a ouvir dizer que somos iguais por dentro, mas não é verdade - ele é melhor. É mais austero do que eu, mas também infinitamente mais altruísta. Cresci com medo de o perder. Ele só muito recentemente confessou que receava não assistir à nossa idade maior.

Na escola, fui sempre a menina do pai mais velho. E, no entanto, fui eu que assisti à morte do pai da minha melhor amiga, do pai meu melhor amigo, e do pai de mais dois amigos que não eram os melhores, mas eram igualmente importantes. De uma dessas vezes, em que a perda dos outros me paralisava durante dias inteiros, o pai pegou em mim e levou-me a passear. Pediu-me para não ficar triste, porque ele nunca haveria de morrer. "Quando fores grande, já terão inventado uma máquina que me fará viver enquanto tu viveres". Eu já não tinha idade para acreditar nessa magia, mas a promessa comove-me até hoje.

Quando tive consciência da imagem do pai, ele que havia sido intensamente ruivo, já tinha só cabelos cinzentos. Não entendia de onde vinha o meu cabelo cor de laranja. E na escola também ninguém entendia. Mas as crianças têm sempre uma teoria. Quando queriam ser más comigo, diziam que eu era adoptada. E eu ficava triste, mesmo sem saber bem o que adoptada queria dizer. Ficava triste porque queria muito ser daquele pai. Daquele pai com quem ia sempre às compras, que tinha o colo em que me sentava - e sento - sempre, que me ensinou a andar depressa, com quem jogava à Geografia e à História nos passeios domingueiros. Quando todos adormeciam, nós ficávamos a adivinhar o nome das terras. E depois ele contava-me histórias sobre elas, sobre as pessoas famosas que tinham pertencido ali: Antero de Quental, Miguel Torga... Do pai com quem aprendi a gostar de música clássica e que, apesar disso, aceitou a minha incompetência para todos os instrumentos que eram dele e agora são meus: o órgão, o cavaquinho, a viola, o trompete...

Queria ser do pai que acreditou em mim quando aos oito anos lhe disse que queria ser jornalista. Queria ser como ele, na altura correspondente de não sei quantos jornais. Foi com ele que aprendi a lê-los desde o "Cantinho do Nicolau", no Comércio do Porto. Quando estávamos sozinhos à mesa, obrigava-me a fazer exercícios que nunca desprezei. Pedia-me para descrever um garfo em 15 frases sem nunca repetir palavras e eu esmerava-me para dizer tudo o que sabia sobre garfos. Depois, pedia-me o contrário: para descrever o garfo sem ultrapassar duas frases. E extrapolava isso aos objectos todos. Aprendia-se o vocabulário e, ao mesmo tempo, o poder de síntese.

O pai sempre soube que eu queria só escrever. Mas ainda hoje fica triste por eu não arriscar a televisão. Por não gostar de aparecer em nada, nem sequer nas fotografias. Às vezes, diz que tem "um bocadinho de pena" que eu não seja mais vaidosa. Acho que não se conforma por eu não usar maquilhagem, saias, cabelo penteado, saltos altos a condizer com as carteiras e a bijuteria. Mas lida com isso da forma que sabe, a única forma, que é cega, de um pai gostar de uma filha: diz-me sempre que sou bonita de qualquer maneira.

Quando um dia, não há demasiado tempo, cheguei a casa como uma menina pequenina a dizer que me doía a barriga e que por isso não podia trabalhar nas semanas seguintes, o pai levou-me outra vez a passear. "Eu sei que não estás doente. Estás só apaixonada. Não sei por quem, mas sei que seja quem for não está apaixonado por ti. É por isso que te dói a barriga". A barriga deixou de doer nesse preciso instante. Reiterei-lhe o que sei desde sempre: "Posso apaixonar-me muitas vezes, mas não fico com ninguém que não seja como tu".

A nossa cumplicidade, o nosso amor maior que o amor, nem sempre foi bem entendido. Na terrível adolescência, as regras eram demasiado rígidas. Quase tudo era proibido. Namorar, tirar negativas ou reprovar o ano eram proibições incontornáveis. Sair à noite, dormir fora de casa ou não cumprir horários eram proibições que beneficiavam de algumas excepções. A transgressão das regras era alvo de severa punição oral. Nunca me zangava com isso. Mas os meus amigos zangavam, diziam que ele era injusto e exagerado. Eu explicava sempre que não queria perder tempo a zangar-me com o pai. Sabia como ele era - e como ele é: meio minuto depois já se esqueceu de tudo o que disse. O meu irmão chamava-me sacristão por causa disso. Por nunca me zangar e por ser como ele: católica convicta, portista, socialista e soarista. Em quase três décadas deu-me três estalos, curiosamente todos no mesmo ano. Todos por coisas que nem sequer existiram. Eu rio-me quando falamos disso; ele quase chora.

O pai nunca, nunca esteve doente. Mas, há quatro meses, um acidente roubou-lhe a visão esquerda quase inteira. Nunca falou da dor que sentia. Perguntava-me só, vezes e vezes e repetidas, como poderia continuar a ler e a escrever se ficasse cego. Porque saber ler e escrever, continuava, é, a seguir à família, a melhor coisa que temos. E eu, sozinha com ele no hospital, tinha de falar de costas voltadas para a cama para que ele não me visse chorar. O pai sempre disse de temos de estar preparados para morrer amanhã. Isso, diz ele, significa duas coisas: "Nunca dever um tostão a ninguém e mesmo que os outros falem mal de nós, mesmo que os outros não gostem de nós por qualquer motivo, ter sempre a consciência tranquila. Temos que poder desaparecer a qualquer momento sabendo que nunca prejudicámos ninguém".

Ultimamente criámos defesas - defesas relativamente parvas - para não sofrermos um com o outro. Estamos sempre a contrariar-nos, mesmo naquilo que sabemos que defendemos da mesma forma. Se eu falo bem do Sócrates, ele fala mal. Se eu falo mal, ele fala bem. Nas últimas presidenciais, eu votei Soares; ele, até ao último dia, disse que votaria Alegre. Votou Soares. Se eu quero contar uma história qualquer sem interesse, ele diz que não tem tempo para mim. Se é ele que quer contar a história, eu mostro desinteresse. Se eu lhe mostro um texto que acho que me saiu bem, ele diz que não está nada bem, que não estou a evoluir e que X e Y escrevem muito melhor do que eu. Mas se ando desmotivada, se acho que nunca hei-de conseguir ser melhor, ele diz-me que eu ainda mal comecei e que hei-de descobrir formas de superar-me. A competição, insiste sempre, "nunca é com os outros; é contigo". Se eu digo que quero ajudar o mundo, ele diz, furioso, que eu não posso continuar a ser a Alice no país das maravilhas; se ando mais concentrada em coisas fúteis, ele lembra-me que é preciso ajudar os outros. Amuamos como crianças. Eu digo: "Tu já não gostas de mim". E ele responde: "Tu é que já não gostas de mim".

No fim, sabemos os dois como é. Só os dois. Os outros continuam a achar tudo muito estranho. Estranho que estejamos sempre a discutir quando nunca discutimos na vida. O fim-de-semana acaba, despedimo-nos sempre a correr e sem falar muito para não denunciar o nó. O nó que se solta invariavelmente depois. Eu faço cem quilómetros a chorar. Ele também. Mas para dentro. Tal e qual como no dia em que foi buscar-me à Universidade: tinha morrido uma das minhas melhores amigas e eu estava inconsolável. Chorei o caminho inteiro. Ele gritou-me o caminho inteiro. E eu sabia, e sei e soube sempre, que ele só gritava por não suportar ver-me daquela maneira. Como eu grito com ele agora por continuar a não suportar a falta diária que ele me faz.

sábado, março 17, 2007

Pobreza de espírito


(Fotos: José Mota)

Ser pobre não significa ser louco, mas às vezes é difícil encontrar a diferença. Os pais da Andreia de 13 meses serão pobres de carteira; as centenas de pessoas anónimas que vi a insultá-los só porque queriam preservar a sua própria privacidade e a da filha sofrem claramente de uma pobreza que nenhum rendimento mínimo pode atenuar.

sexta-feira, março 16, 2007

Da idade. E do tempo.

A idade serve mais para aprender a fazer de conta do que para outra coisa qualquer. Serve para aprender a calar - o que se sente, o que se pensa. Ensina a saber esperar por coisa nenhuma, a cultivar a paciência dos vencidos. Não serve para deixar de ter medo, nem para se ser mais feliz. A associação proporcional da idade à liberdade prevalece como um extraordinário mistério. Porque não existe adição de liberdade no galgar dos anos. Quanto mais velhos menos livres. Ou mais condicionados. A mesma coisa, portanto.
É como o tempo. O tempo que, quando passar, cura tudo. Mas nunca ninguém sabe quanto tempo é necessário. Não existe uma tabela. Quanto tempo é preciso para esquecer um grande amor? Ou para aprender a viver com a ausência imposta pela morte de alguém? E para um braço partido deixar de doer? Ou para o cabelo voltar a crescer?... Se o tempo fosse realmente eficaz havia tabelas temáticas.
A idade e o tempo são, talvez, as duas maiores mentiras da história da humanidade. Não sei se as perpetuam para que não fiquemos tristes - tão tristes, pelo menos; se para que nos tornemos mais idiotas.

sexta-feira, março 09, 2007

Eyes wide shut


Tive a infelicidade de experimentar pela primeira vez um resort - eufemismo para jardim zoológico -, há três anos, no Egipto. Uma experiência traumatizante que jurei, nem louca nem morta, repetir. Apaguei tudo da memória, com excepção do Massimo Ali, muçulmano de ambições europeias que, aos 16 anos, ganhava a vida a fazer tatuagens aos turistas. Um menino. Levou-nos a casa dele, um rés-do-chão despido numa rua sem luz, apresentou-nos aos pais e às não sei quantas irmãs. Ofereceu-nos chá. Em troca, só pediu umas sapatilhas de marca. E histórias do nosso país. Ficámos amigos. Volta e meia aparece no Messenger com um inglês aprendido de ouvido, que se presta a inúmeros equívocos quando escrito. Da última vez, contou que tem sete namoradas, mas que não gosta de nenhuma. Continua à espera da “special one”. Ainda faz tatoos, mas agora diz ter também uma loja de "roupa de marca". "Uen iu cam beck to Egypt?"

Esta semana, por obra do pior diabo, fui novamente parar a um resort, algures em CanCun, lugarejo odioso, ao nível do Algarve – outro lugarejo igualmente odioso. Uma lição a pagar pela ignorância. Aquilo, dizem-me depois, era uma selva até há 40 anos. Os empresários começaram a construir hotéis de massas e a apropriar-se das ruas e das praias. Não há praias públicas. Ou melhor, há, mas não há acessos a não ser pelos empreendimentos hoteleiros. Genial! Ao fim dos primeiros 15 minutos já não consigo respirar, sufocada, aturdida. E os minutos do relógio parecem cristalizados.

Olho em redor e tudo me parece um extraordinário mistério: as pessoas, casais em lua-de-mel, excursões de velhinhos, de adolescentes, de finalistas, do raio que os parta têm um ar embevecido, cheio de si, feliz. E bastante estúpido, também. Passeiam as insolações, tiram fotografias com os empregados escuros que usam redes sinistras no cabelo e com os animadores vestidos de índios, comem invariavelmente num dos cinco restaurantes de plástico ali plantados. Juram a pés juntos conhecer um lugar a partir de um hotel. De olhos bem fechados. Abrem-nos para qualquer uma das excursões que eventualmente compram e que há ali à venda aos pontapés. Olhar intermitente como os dos americanos reformados que nos deram boleia. "Um país define-sepelos seus museus". Ok.

Cada um lá saberá do que precisa e o que o faz feliz. Não faço juízos de valor. Tento, pelo menos. Mas eu não sei definitivamente ser feliz ali. Restam duas soluções: cortar os pulsos, o que não seria lá muito edificante, ou arquitectar planos de fuga. Cuba à distância de 45 minutos e 390 euros; Chiapas a 900 quilómetros com carros alugados a 100 euros ao dia mais seguro; Cidade do México a 26 horas de viagem dentro de um autocarro. Mérida, Tulum e todas as outras cidades antropológicas fora de questão. Tudo impossível para o próprio dia e para o dia seguinte também. A burocracia é talvez o serviço mais globalizado. Atascada em CanCun sem porta de saída. É pior do que um filme de terror. A última hipótese, que implica um encurtamento na viagem de quase uma semana, é regressar a casa. Pagar taxas escandalosas pela troca dos voos e esperar horas inteiras pelas ligações. Do mal o menor. Viagem abortada. Regresso à Cidade do México primeiro, e a casa depois. Não exactamente a casa, fisicamente. A casa é onde está o coração. E o coração está onde estão as pessoas de quem gostamos. Home, sweet home.

O ilustre senhor Poppe diz que "a viagem é o viajante". E é verdade. Mas é também o companheiro do viajante. O companheiro de todas as viagens, de todos os percalços, de todos os segredos, de todos os silêncios, de todos os cansaços. O companheiro que faz com que tudo seja bom, mesmo quando é mau.

quarta-feira, março 07, 2007

Frida Kahlo vs Diego Rivera



Na Europa, Diego Rivera é o homem de Frida Kahlo. O amante que a inspirou e a quem ela dedicou a vida. No México, Frida Kahlo é a mulher, a terceira, do muralista. A popularidade dele esmaga-a. Ninguém sabe, de cor, onde fica qualquer um dos quatro museus onde existem obras dela. Ou a casa, de inspiração paupérrima, onde viveu. “Na escola, quase ninguém sabe quem ela é. O Governo não a considera importante”, assegura Enrique Jisberto, ele próprio surpreendido com o interesse. Com Diego Rivera é diferente: a localidade dos murais está na ponta da língua. Não é um artista; é um reaccionário político. O que ficou não é bem arte; é o reflexo das suas batalhas.

A vida de Frida será efectivamente mais impressionante do que a obra. A história dos auto-retratos pintados na horizontal rende o mundo, mas não parece comover os mexicanos. Muito menos as famílias do casal que agora, por altura do centenário do nascimento dela e do cinquentenário da morte dele, se digladiam pela popularidade dos defuntos. Quem foi mais importante? Quem vale mais?
Esta semana, a Aeroméxico, obedecendo a uma votação dos funcionários, baptizou dois dos seus aviões boeing 777 como Frida Y Diego. Alegadamente, um sozinho não permitiria criar com o consumidor uma conexão emocional. O Banco do México, o Banxico, também já anunciou que, a partir de 2009, a nota de 500 pesos, que ainda exibe o rosto do general Ignacio Zaragoze, passará a ser ilustrada com as caras de Rivera e Kahlo. Juntos parecem valer mais, mas os herdeiros não se conformam.
A Fundação Diego Rivera, fundada em 2000, tem um único objectivo, nas palavras da sua descendente de mais de 80 anos: "Provar que o meu pai foi mais importante do que Frida, que sempre foi independente dela e que não foi um depravado como foi sugerido num filme. Queremos que ele ocupe o lugar que merece. Sem ela". A Corporação Frida Kahlo, inaugurada dois anos depois, dedica-se a comercializar o nome da pintora: é tequilha, é boneca, é livro íntimo da autoria da sobrinha, Isolda P. Kahlo. É exposição "Todos somos Frida", actualmente patente no Colégio de Arquitectos de Cordoba. E outras que virão a partir de Julho.
Na casa que foi dela há bilhetes de amor eterno. Dele para ela, para a "niña Fisita"; e dela para ele: "Te ofrezo todo lo que es mio y todo desde siempre, mi cariño, qui nade y vive todas las horas, solamente porque tu existes y lo recibes". E se os respeitassem?

segunda-feira, março 05, 2007

By night


Percorro as ruas escuras no encalço de uma coisa chamada "Dos Naciones". Tenho a estranha impressão de ser a única criatura de pele deslavada e cabelo descolorado que circula por estes lados. Avanço. "Só paga o que beber. A comida é oferta". Há sopa de marisco intensa servida em chávenas de chá e coisas esquisitas e picantes de que não sei o nome. Uma irresistível juke box obriga os homens a fazer fila para escolher músicas românticas para damas de mini-saia e perna bojuda. Nessa altura, ainda não tinha percebido que a casa possui um segundo andar. Os "Tigres do Norte", inúmeras vezes grafitados nos muros da rua, estão ali, em todo o seu esplendor, a conquistar as mulheres. Elas, de perna cruzada ao balcão, encurtando-lhes a roupa de pouco pano; eles, hirtos, com a mão generosa a afagar-lhes as carnes. Cada escolha custa cinco pesos. Sai Elvis Presley, só para contrariar. A prata da casa não aprecia o gesto e investe moedas seguidas.
Arrisco o andar de cima. Outra juke box, mas digital. Uma plateia inteira de homens. Em cada mesa, uma mulher. As regras são simples quando a música sai da caixa para a pista: elas podem provocar, abanar a anca e o resto; eles aceitam ser conduzidos, mas não podem tocar-lhes. Tocar-lhes como desejariam, pelo menos. Parecem felizes ainda assim. Elas, nem por isso.
Não levanto o pé do chão. "Como se diz propina no teu país?", pergunta o rapaz de patilhas afiadas e cabelo minuciosamente desenhado com gel, como o de todos os rapazes. "Gorjeta". Ele pisca o olho. Eu abro uma excepção.

domingo, março 04, 2007

Are we safe?


Na Cidade do México todas as horas são horas de ponta. As estradas são quase todas de sentido único, mas isso não impede o caos. Há três milhões de carros em direcção onde só eles saberão. Os taxis oficiais são brancos com uma lista vermelha; os outros, carochas antigos e de três lugares, são brancos com uma lista verde. São semi-ilegais, mas são os mais bonitos. E os de bandeirada mais barata. Há mulheres sinaleiras a tentar, em vão, impor alguma ordem. E polícias-homens, aos cachos, invariavelmente de mãos nos bolsos ou com as mãos num naco de comida. Não será, por isso, de estranhar, que um estudo divulgado hoje indique que o México, em termos de segurança, está apenas acima da Colômbia e do Paquistão. É também o país onde morrem mais jornalistas. Mais do que no Iraque. No Metro, entre as seis da tarde e as nove da noite, o acesso fica vedado à ala masculina. Pergunto porquê. "Para evitar roubos e apalpões", respondem-me.

sexta-feira, março 02, 2007

A pobreza é criativa?

Há um cheiro comum a todo o território: é uma improvável mistura de fossa e suor; de fritos e fumo; de desinfectante barato e gordura. E é o odor, tão contraditório como a imponência da arquitectura de um país menos-que-pobre, que melhor definirá a Cidade do México. Alberga 24 milhões de pessoas; mais de metade vive como calha, na mais absoluta miséria. Não há banco de jardim onde não se veja alguém acordar. Nem rua onde não haja alguém a pedir esmola. As pessoas são, apesar de tudo, mais gordas do que o gordo normal, o que será fácil de explicar: aqui, tudo o que se come engorda desalmadamente.

Anteontem, o dia foi dedicado a Guadalupe, a santa de todos os milagres mexicanos. É assim a cada dia 28 de cada mês. O povo renova a fé e passeia-se até altas horas com santos de barro debaixo de um braço e algodão doce no outro. O sagrado e o profano saem às ruas, mais negras do que a noite. Hoje, os tablóides fazem todos, sem pudor, a mesma manchete, ilustrada com a mesma fotografia. Sete pessoas executadas em seis dias. Dedicam-lhe a primeira página inteira com um corpo trucidado. Assim, sem dó nem piedade. O Universal e o Excelsior – o Público e o DN aqui do sítio - dedicam-lhe uma breve. As manchetes falam de tráfico de droga: mais de 90% da cocaína que chega aos Estados Unidos passa por aqui.

A cidade acorda cedo, mas devagar. O comércio só abre às 11 horas. É um imenso centro comercial ao ar livre, improvisado com artilharia de segurança duvidosa. Qualquer carrinho de supermercado serve para montar a banca. Nenhuma praça ou beco ficam ilesos. E, aparentemente, só não se vende a alma. De resto, há de tudo. Quem vende relógios também vende colheres de pau; quem vende luvas de boxe também vende bananas; quem vende guloseimas – milhares de sabores e cores diferentes – também vende plantas. Quem engraxa sapatos também vende chupa-chupas e cigarros avulso. E uma série infinita de preciosidades inúteis como nunca me lembro de ter visto. Curiosidade: a maior parte das tendas vende brinquedos, bonecas despidas e, ao lado, roupa em miniatura. Para quem?, pergunto-me, se a maioria não tem sequer dinheiro para comer.

Este tipo de comércio é, apesar de tudo, a única pseudo-salvação de um país que, ao fim de cem dias de Governo, já perdeu a esperança em Filipe Calderon. Gustavo, 21 anos, que nem a escola preparatória concluiu, tem uma teoria – é sempre bom ter uma: a irmã mais velha licenciou-se em Administração de Empresas Turísticas numa faculdade particular. Os pais pagaram quatro mil pesos por mês durante cinco anos, qualquer coisa como 250 euros mensais, um bocadinho menos. Ela está no desemprego e deprimida. A doença de foro psicológico é um luxo a que poucos podem dar-se. Ele vende, em Teotihúacan, toda a espécie de quinquilharia e recordações. “Os americanos e os japoneses são os melhores clientes”. O material é fabricado à noite pelas próprias mãos da família ou comprado na Cidade do México, onde vai duas a três vezes por ano “tentar descobrir coisas novas” – as únicas vezes que sai dali.
Está resignado: “Aqui, ou és administrador ou és pobre. Nós somos pobres. Olha esta rua, toda a gente vende o mesmo que nós. É difícil fazer muito dinheiro”. Ainda assim, os pais estão numa luta com a irmã mais nova: também quer ir para a faculdade; eles estão a tentar convencê-la a não ir. Gustavo não quer sair do país; quer casar e montar o seu próprio negócio. A propósito, pergunta: “O teu noivo – é teu noivo aquele ali ao fundo? - não é ciumento? No México, as mulheres não ficam assim sozinhas a falar com estranhos”. Aliás, até há bem pouco tempo, se quisessem divorciar-se ficavam sem nada. Agora, ficam com metade do património.

A pobreza parece-me igual em todo o lado: é triste, solitária, melancólica, monocolor. O Miguel discorda: “A pobreza é criativa. Aqui, é quase folclórica”. Tenho dificuldade em ver as coisas dessa forma. Não há arco-íris nos chapéus, nas casas, nas malas, na roupa, nem música arranhada numa viola ou num realejo que consiga fazer-me desviar o olhar do que fazem para sobreviver. No México, estima-se que haja entre 250 a 500 mil crianças entre os cinco e os 14 anos entregues à prostituição. E mais de metade do universo total é vítima de agressões por parte da própria família. Os turistas não vêem; as realidades mais cruéis são invisíveis – mas sabem-se, pressentem-se, quase se lhes sente o cheiro. E isso não é criativo. Nem folclórico.

Entro num Metro disposta a cumprir 18 paragens ininterruptas. O destino é Coyocan. Em cada paragem entra um vendedor ambulante diferente, numa espécie de organização tácita: a maioria trás um leitor de Cd numa mochila e a música entoa estridentemente pela carruagem inteira. Há quem venda boleros; quem venda os últimos hits da música electrónica, quem venda o insuportável regaton. Tudo pirateado. Mas há também quem venda livros de sonhos, pomada para unhas encravadas ou caixas de bonecas mágicas. E há os reaccionários: os que vendem o Manchetearte, periódico independente de sátira social, que acusa os media oficiais de ser coniventes com o Governo.

Saio do Metro; experimento o autocarro de vidros fumados com papel autocolante manhoso. O cenário muda – para pior: há cegos a improvisar canções com pandeiretas e um número sórdido de deficiências ambulantes a solicitar ajuda para as operações e os tratamentos. O Miguel diz que “isto faz doer o coração e condiciona o olhar”. Faz doer mais do que é possível dizer.