Há um cheiro comum a todo o território: é uma improvável mistura de fossa e suor; de fritos e fumo; de desinfectante barato e gordura. E é o odor, tão contraditório como a imponência da arquitectura de um país menos-que-pobre, que melhor definirá a Cidade do México. Alberga 24 milhões de pessoas; mais de metade vive como calha, na mais absoluta miséria. Não há banco de jardim onde não se veja alguém acordar. Nem rua onde não haja alguém a pedir esmola. As pessoas são, apesar de tudo, mais gordas do que o gordo normal, o que será fácil de explicar: aqui, tudo o que se come engorda desalmadamente.
Anteontem, o dia foi dedicado a Guadalupe, a santa de todos os milagres mexicanos. É assim a cada dia 28 de cada mês. O povo renova a fé e passeia-se até altas horas com santos de barro debaixo de um braço e algodão doce no outro. O sagrado e o profano saem às ruas, mais negras do que a noite. Hoje, os tablóides fazem todos, sem pudor, a mesma manchete, ilustrada com a mesma fotografia. Sete pessoas executadas em seis dias. Dedicam-lhe a primeira página inteira com um corpo trucidado. Assim, sem dó nem piedade. O Universal e o Excelsior – o Público e o DN aqui do sítio - dedicam-lhe uma breve. As manchetes falam de tráfico de droga: mais de 90% da cocaína que chega aos Estados Unidos passa por aqui.
A cidade acorda cedo, mas devagar. O comércio só abre às 11 horas. É um imenso centro comercial ao ar livre, improvisado com artilharia de segurança duvidosa. Qualquer carrinho de supermercado serve para montar a banca. Nenhuma praça ou beco ficam ilesos. E, aparentemente, só não se vende a alma. De resto, há de tudo. Quem vende relógios também vende colheres de pau; quem vende luvas de boxe também vende bananas; quem vende guloseimas – milhares de sabores e cores diferentes – também vende plantas. Quem engraxa sapatos também vende chupa-chupas e cigarros avulso. E uma série infinita de preciosidades inúteis como nunca me lembro de ter visto. Curiosidade: a maior parte das tendas vende brinquedos, bonecas despidas e, ao lado, roupa em miniatura. Para quem?, pergunto-me, se a maioria não tem sequer dinheiro para comer.
Este tipo de comércio é, apesar de tudo, a única pseudo-salvação de um país que, ao fim de cem dias de Governo, já perdeu a esperança em Filipe Calderon. Gustavo, 21 anos, que nem a escola preparatória concluiu, tem uma teoria – é sempre bom ter uma: a irmã mais velha licenciou-se em Administração de Empresas Turísticas numa faculdade particular. Os pais pagaram quatro mil pesos por mês durante cinco anos, qualquer coisa como 250 euros mensais, um bocadinho menos. Ela está no desemprego e deprimida. A doença de foro psicológico é um luxo a que poucos podem dar-se. Ele vende, em Teotihúacan, toda a espécie de quinquilharia e recordações. “Os americanos e os japoneses são os melhores clientes”. O material é fabricado à noite pelas próprias mãos da família ou comprado na Cidade do México, onde vai duas a três vezes por ano “tentar descobrir coisas novas” – as únicas vezes que sai dali.
Anteontem, o dia foi dedicado a Guadalupe, a santa de todos os milagres mexicanos. É assim a cada dia 28 de cada mês. O povo renova a fé e passeia-se até altas horas com santos de barro debaixo de um braço e algodão doce no outro. O sagrado e o profano saem às ruas, mais negras do que a noite. Hoje, os tablóides fazem todos, sem pudor, a mesma manchete, ilustrada com a mesma fotografia. Sete pessoas executadas em seis dias. Dedicam-lhe a primeira página inteira com um corpo trucidado. Assim, sem dó nem piedade. O Universal e o Excelsior – o Público e o DN aqui do sítio - dedicam-lhe uma breve. As manchetes falam de tráfico de droga: mais de 90% da cocaína que chega aos Estados Unidos passa por aqui.
A cidade acorda cedo, mas devagar. O comércio só abre às 11 horas. É um imenso centro comercial ao ar livre, improvisado com artilharia de segurança duvidosa. Qualquer carrinho de supermercado serve para montar a banca. Nenhuma praça ou beco ficam ilesos. E, aparentemente, só não se vende a alma. De resto, há de tudo. Quem vende relógios também vende colheres de pau; quem vende luvas de boxe também vende bananas; quem vende guloseimas – milhares de sabores e cores diferentes – também vende plantas. Quem engraxa sapatos também vende chupa-chupas e cigarros avulso. E uma série infinita de preciosidades inúteis como nunca me lembro de ter visto. Curiosidade: a maior parte das tendas vende brinquedos, bonecas despidas e, ao lado, roupa em miniatura. Para quem?, pergunto-me, se a maioria não tem sequer dinheiro para comer.
Este tipo de comércio é, apesar de tudo, a única pseudo-salvação de um país que, ao fim de cem dias de Governo, já perdeu a esperança em Filipe Calderon. Gustavo, 21 anos, que nem a escola preparatória concluiu, tem uma teoria – é sempre bom ter uma: a irmã mais velha licenciou-se em Administração de Empresas Turísticas numa faculdade particular. Os pais pagaram quatro mil pesos por mês durante cinco anos, qualquer coisa como 250 euros mensais, um bocadinho menos. Ela está no desemprego e deprimida. A doença de foro psicológico é um luxo a que poucos podem dar-se. Ele vende, em Teotihúacan, toda a espécie de quinquilharia e recordações. “Os americanos e os japoneses são os melhores clientes”. O material é fabricado à noite pelas próprias mãos da família ou comprado na Cidade do México, onde vai duas a três vezes por ano “tentar descobrir coisas novas” – as únicas vezes que sai dali.
Está resignado: “Aqui, ou és administrador ou és pobre. Nós somos pobres. Olha esta rua, toda a gente vende o mesmo que nós. É difícil fazer muito dinheiro”. Ainda assim, os pais estão numa luta com a irmã mais nova: também quer ir para a faculdade; eles estão a tentar convencê-la a não ir. Gustavo não quer sair do país; quer casar e montar o seu próprio negócio. A propósito, pergunta: “O teu noivo – é teu noivo aquele ali ao fundo? - não é ciumento? No México, as mulheres não ficam assim sozinhas a falar com estranhos”. Aliás, até há bem pouco tempo, se quisessem divorciar-se ficavam sem nada. Agora, ficam com metade do património.
A pobreza parece-me igual em todo o lado: é triste, solitária, melancólica, monocolor. O Miguel discorda: “A pobreza é criativa. Aqui, é quase folclórica”. Tenho dificuldade em ver as coisas dessa forma. Não há arco-íris nos chapéus, nas casas, nas malas, na roupa, nem música arranhada numa viola ou num realejo que consiga fazer-me desviar o olhar do que fazem para sobreviver. No México, estima-se que haja entre 250 a 500 mil crianças entre os cinco e os 14 anos entregues à prostituição. E mais de metade do universo total é vítima de agressões por parte da própria família. Os turistas não vêem; as realidades mais cruéis são invisíveis – mas sabem-se, pressentem-se, quase se lhes sente o cheiro. E isso não é criativo. Nem folclórico.
Entro num Metro disposta a cumprir 18 paragens ininterruptas. O destino é Coyocan. Em cada paragem entra um vendedor ambulante diferente, numa espécie de organização tácita: a maioria trás um leitor de Cd numa mochila e a música entoa estridentemente pela carruagem inteira. Há quem venda boleros; quem venda os últimos hits da música electrónica, quem venda o insuportável regaton. Tudo pirateado. Mas há também quem venda livros de sonhos, pomada para unhas encravadas ou caixas de bonecas mágicas. E há os reaccionários: os que vendem o Manchetearte, periódico independente de sátira social, que acusa os media oficiais de ser coniventes com o Governo.
Saio do Metro; experimento o autocarro de vidros fumados com papel autocolante manhoso. O cenário muda – para pior: há cegos a improvisar canções com pandeiretas e um número sórdido de deficiências ambulantes a solicitar ajuda para as operações e os tratamentos. O Miguel diz que “isto faz doer o coração e condiciona o olhar”. Faz doer mais do que é possível dizer.
A pobreza parece-me igual em todo o lado: é triste, solitária, melancólica, monocolor. O Miguel discorda: “A pobreza é criativa. Aqui, é quase folclórica”. Tenho dificuldade em ver as coisas dessa forma. Não há arco-íris nos chapéus, nas casas, nas malas, na roupa, nem música arranhada numa viola ou num realejo que consiga fazer-me desviar o olhar do que fazem para sobreviver. No México, estima-se que haja entre 250 a 500 mil crianças entre os cinco e os 14 anos entregues à prostituição. E mais de metade do universo total é vítima de agressões por parte da própria família. Os turistas não vêem; as realidades mais cruéis são invisíveis – mas sabem-se, pressentem-se, quase se lhes sente o cheiro. E isso não é criativo. Nem folclórico.
Entro num Metro disposta a cumprir 18 paragens ininterruptas. O destino é Coyocan. Em cada paragem entra um vendedor ambulante diferente, numa espécie de organização tácita: a maioria trás um leitor de Cd numa mochila e a música entoa estridentemente pela carruagem inteira. Há quem venda boleros; quem venda os últimos hits da música electrónica, quem venda o insuportável regaton. Tudo pirateado. Mas há também quem venda livros de sonhos, pomada para unhas encravadas ou caixas de bonecas mágicas. E há os reaccionários: os que vendem o Manchetearte, periódico independente de sátira social, que acusa os media oficiais de ser coniventes com o Governo.
Saio do Metro; experimento o autocarro de vidros fumados com papel autocolante manhoso. O cenário muda – para pior: há cegos a improvisar canções com pandeiretas e um número sórdido de deficiências ambulantes a solicitar ajuda para as operações e os tratamentos. O Miguel diz que “isto faz doer o coração e condiciona o olhar”. Faz doer mais do que é possível dizer.
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