sexta-feira, dezembro 31, 2010

Borda fora

[Gustav Klimt, Mada Primavesi]

No início do ano novo, talvez sejamos despedidos, fruto de uma doença contagiosa que obriga a podar custos. Ou talvez nos despeçamos, cansados de tanto autismo empresarial. E político. E de tão pouca liberdade. Ou, para usar uns termos catitas que entraram no léxico comum pela porta das traseiras, cansados de pouca estabilidade e nenhum crescimento. Seguramente, ser-nos-á reduzido o salário. Depois disso, talvez vendamos a casa, comprada a pensar nos herdeiros que não chegaram, e aluguemos outra, mais pequena, mas provavelmente pelo mesmo preço, que o mercado de arrendamento tem muito que se lhe diga, mas libertando-nos do IMI anual, essa galinha dos ovos de ouro das autarquias, e do condomínio mensal.

Depois de uma verdadeira caça ao tesouro para encontrarmos uma nova empregada, a sexta ou sétima tentativa!, já perdemos a conta (as anteriores renderam-se quase todas ao RSI e nunca perceberam o conceito do brio profissional), talvez a dispensemos e voltemos a passar as folgas agarrados à limpeza e as noites agrafados ao ferro de engomar. Talvez voltemos a adiar a matrícula na universidade, que as propinas são caras, e estudar só pelo prazer de continuar a estudar é um prazer que o actual contexto não permite ter. Talvez deixemos cair para sempre o workshop milionário do senhor Storm. A tese de mestrado, segundo round de mais umas centenas de euros, ficará também provavelmente para as calendas. Talvez deixemos de pensar em engravidar por tempo indeterminado e de pensar em adoptar pelo dobro da indeterminação do tempo.

No próximo ano, talvez deixemos de comprar livros todas as semanas. E jornais. E revistas. E cremes a torto e a direito. Talvez deixemos de ser visita assídua do dentista, do ginecologista e do dermatologista, três companheiros de pelo menos uma década e, num caso, de muitas lutas, mas que no futuro próximo nos desequilibrariam um orçamento que ainda nem sabemos qual vai ser, mas que seguramente não irá engordar. Cinema no cinema já não vemos há muito tempo; teatro e concertos será luxo para dosear. Carro não temos, nem carro nem carta: a mota não tem preço. Vamos, claro, deixar de andar de táxi. Alentejo emagrecido de três vezes por ano para de vez em quando, quando calhar; viagens pelo mundo só a fazer de conta.

Está decretado o nosso plano de austeridade. Mas não podemos deixar de nos questionar se era a isto, a esta vida, que chamam viver acima das possibilidades. Era?! Uma pessoa estuda quase 20 anos com afinco, doze de ensino secundário, mais cinco de superior, mais um de pós-graduação - dá 18. Fora as formações avulsas, os cursos e os cursinhos disto e daquilo, aqui e acolá. Duas décadas para pouco mais do que nada. Não dá direito a expectativas, a ambições, muito menos a liberdade. Só ao dever de manter as pequenas prisões do quotidiano que inelutavelmente se criam. É fraquinho. É pobrezinho, e nem sequer dá direito ao apoio de uma qualquer legião da boa vontade. Não é carência alimentar, não é realmente. Deveríamos sentir-nos felizes?!

Se há dez anos nos perguntassem, a nós, provenientes desse jackpot que é ser do campo, do interior e do norte do país, onde estaríamos com dez anos de trabalho acumulado, teríamos dito qualquer coisa menos a coisa que aconteceu: a estagnação no início do jogo sem qualquer perspectiva de passar para o round seguinte. No imaginário de uma vida em linha recta, estaríamos hoje a devolver a quem tem menos o tanto que teríamos recebido. Um sonho infantil. Ingénuo. Irrealizado.

Em 2011, o lema é portanto saltar borda fora! Em nome da liberdade, de uma vida sem medo de falar, de respirar. De perder. De voltar a erguer. De dar a mão. Dizem-nos a cada passo que devíamos ir para a Austrália, para o el dorado angolano, para Moçambique. Equacionámos as três durante este ano. Ficámos. Porque o maior privilégio da vida é também o maior travão: as três melhores pessoas que conhecemos vivem as três na mesma casa. Não é coisa para se ignorar. Ficar tem um preço, profissionalmente altíssimo; partir teria um preço muito maior para quem acha que a vida inteira será sempre muito curta para viver tão perto quanto possível de um clã cuja generosidade não cabe em palavras.

Pensamos no que nos sobra ficando; no que não é susceptível de inflação nem de cortes. O essencial da vida é de graça. É o lado espantoso disto tudo. 

quinta-feira, dezembro 30, 2010

Livros sublinhados em 2010

Stendhal, O vermelho e o negro
Sophia e Sena, Correspondência 1959/1978
Cormac McCarthy, A Estrada
Eduardo Galeano, Mirrors: Stories of almost everyone
Laurence Durrell, Justine
Laurence Durrell, Baltazar
Apostolos Dixiadis & Christos H. Papadimitriou, Logicomix
Alex Robinson, Box office poison
Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão
John Updike, Pecados e Seduções
Yasunary Kawabata, A beleza e a tristeza
Sylvia Plath, The Bell Jar
Roberto Bolaño, Putas Assassinas
Ana Teresa Pereira, Se nos encontrarmos de novo
Philip Roth, O complexo de Portnoy
Jean Baudrillard, Maiorias silenciosas
Gilles Lipovetsky, A Cultura-Mundo
Naomi Klein, The shock doctrine
(jumping)
Maximo Gorki, Os Vagabundos
August Strindberg, Inferno
William Faulkner, O som e a fúria
Halldór Laxness, Gente Independente
(reading)
Desilusão: Shirley Jackson, Sempre vivemos no castelo

Da plateia em 2010

Alain Platel, Out of Context - For Pina
Nuno Cardoso, T3 + 1
Nuno Cardoso, A Gaivota
Nuno Cardoso, "Jardim zoológico de cristal"
(nos finalzinho de 2009)
Stefan Kaegi, Radio Muezzin
Peeping Tom, 32, rue Vandenbranden
Tiago Guedes, Blackbird
Bruno Beltrão, H3
Rui Horta, Local Geographic
Desilusão: Vera Mantero, Vamos sentir falta de tudo aquilo de que não precisamos

Fitas em pause em 2010

How green was my valley, John Ford
(com 69 anos de atraso!)
A Estrada, John Hillcoat
4 Months, 3 Weeks and 2 Days, Cristian Mungiu
Io sono l'amore, Luca Guadagnino
Synecdoche, Charlie Kaufman
Le Refuge, François Ozon
Enjoy Poverty, Renzo Marteens
A Single man, Tom Ford
Somewhere, Sofia Coppola
La Belle Personne, Christophe Honoré
(com dois anos de atraso)
Young Mr. Lincoln, John Ford
(com 71!!! anos de atraso)
The Social Network, David Fincher
Anti Christ, Lars von Trier

Discos riscados em 2010

The Antlers, Hospice
The National, High Violet
Arcade Fire, The Suburbs
Best Coast, Crazy for you
Beach House, Teen Dream
The Temper Trap, Conditions
The XX, XX
Wild Beasts, Two dancers
Foals, Total Life Forever
Crystal Castles, Crystal Castles
Grinderman, Grinderman II
Blind Zero, Luna Park
Yeah, yeah, yeahs, It's Blitz
(importado de 2009)
Birds are Indie, Life is long
Desilusão: Antony and the Johnsons: Swanlights

Afonso de Melo: "Quantas mortes há em mim"

[Pedro Zamith]

Quantas despedidas calculas que em mim existam?
Mil? Mil milhões?
Eu digo-te: mil milhões por cada dia, todas elas repetidas, recriadas, revividas.
A porta que bate és tu que sais de manhãzinha para o trabalho deixando-me uma dor fininha por dentro como se não fosses voltar nunca mais, o ranger do elevador no poço em estertores de esforços do seu coração de máquina, o teu cabelo molhado e o teu rosto firme
(- quando voltas?)
um pavor de solidões que me consome por dentro, uma saudade amargurada da tua imagem nervosa na palataforma da estação,
(Atenção, senhores passageiros! Vai dar entrada na linha número um o comboio-alfa proveniente de Lisboa Sta. Apolónia...)
a camisola de lã cinzenta com riscas vermelhas no cós e nas mangas
(- quando voltares, qual de ti serás?)
as tuas mãos de unhas roídas e dedos fortes,
(- às vezes, preciso tanto de falar das tuas mãos!)
o milagre de tocar-te com cuidado para que não desaparecesses do meu sonho real como uma verdade.
Quantas despedidas cabem na vida de cada um de nós?,
pergunto-te sem precisares de me responder.
Tanta gente que morreu e tanta gente que não morreu de morrer mesmo mas que foi morrendo em mim,
- percebes?
e lugares como pessoas, e momentos como pessoas,
e lugares, porque,
- não sei se sabes...,
os lugares e o momentos também podem morrer de forma absoluta sem haver algo que os devolva.
Nunca somos aquilo que os outros julgam de nós.

[in Magnética Magazine]

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Não queiras saber de mim

[Olivia Bee]

Não queiras saber de mim
Esta noite não estou cá
Quando a tristeza bate
Pior do que eu não há
Fico fora de combate
Como se chegasse ao fim
Fico abaixo do tapete
Afundado no serrim

Não queiras saber de mim
Porque eu estou que não me entendo
Dança tu que eu fico assim
Hoje não me recomendo

Mas tu pões esse vestido
E voas até ao topo
E fumas do meu cigarro
E bebes do meu copo
Mas nem isso faz sentido
Só agrava o meu estado
Quanto mais brilha a tua luz
Mais eu fico apagado

Amanhã eu sei já passa
Mas agora estou assim
Hoje perdi toda a graça
Não queiras saber de mim

"... eu fiz o que era possível,

no momento em que

o que precisávamos

era o impossível...”

terça-feira, dezembro 28, 2010

Pedro Lomba: Conhece-te a ti mesmo

De vez em quando imagino como era a vida quando a vida era simples. Não me lembro que para nós, portugueses, alguma vez tivesse sido simples. Mas deixem-me agora idealizar um passado remoto, um passado que não volta, em que a vida era simples porque sabíamos mais o que fazer do que sabemos hoje; e dependíamos menos do que hoje dependemos. Uma vida em que seríamos mais nós próprios daquilo em que nos tornámos.

É impossível pensar nas últimas décadas no Ocidente sem contarmos como a vida se complicou, como cada um de nós ficou sujeito a formas cada vez mais impessoais e poderosas de disciplina: do Estado, das empresas ou mesmo dos partidos. As sociedades modernas, mesmo as sociedades ditas liberais, não expandiram o indivíduo. O que elas criaram foi organizações crescentemente complexas e impermeáveis, dentro das quais esse indivíduo foi arrumado. A vida, de facto, complicou-se.

Como os (bons) sociólogos tiveram oportunidade de explicar, o homem que passou a viver sob o domínio das burocracias do Estado, mas também das empresas ou dos partidos, é um ser organizado e distribuído por múltiplos  papéis, todos eles dependentes de regras, convenções, conhecimentos técnicos, de uma cultura predominantemente objectiva e especializada.

A circunstância de esse homem não dominar essa cultura provocou mudanças consideráveis. Metidos em toda a espécie de organizações e deveres, cidadãos da República, votantes, trabalhadores, consumidores e contribuintes, tornámo-nos indecisos e manipuláveis. Muitas vezes não sabemos o que fazer, nem o que decidir. Quem percebe todos os subterfúgios do sistema legal, dos impostos, dos empréstimos bancários, das regras de publicidade, dos mercados cada vez mais diferenciados, de campanhas políticas mais sofisticadas?

Num passado já muito distante, os astrónomos podiam aconselhar os príncipes sobre o movimento dos astros; os generais sobre o movimento das tropas; e os primeiros "políticos" sobre a arte do governo. Foram eles os primeiros conselheiros quando ninguém, além dos reis, precisava de aconselhamento para o que quer que fosse. Mas a profissão que melhor caracteriza este período é o consultor profissional. É incrível como a sociedade em que temos vivido dependeu dele. Aconselhar transformou-se numa actividade cada vez mais próspera e cobiçada, porque vem associada a informação e conhecimento que a maioria de nós não domina.

Surgiram "conselheiros" de toda a parte e feitio que nos prometeram um mundo mais apreensível, um mundo em que a própria noção de risco e incerteza estivessem ausentes. O conselheiro fiscal, financeiro, comercial ou político ajuda-nos a decifrar os labirintos dessas organizações a que não podemos escapar. Se ele falhasse, era todo um edifício que se desmoronava.

Se pudéssemos imaginar uma vida mais simples, como seria? Seria uma vida em que pudéssemos recapturar a nossa liberdade contra todas as formas de arrogância, venham elas do Estado ou de mercados certificados pela mítica presença do consultor profissional.

Há uma lição que a crise económica nos tem deixado. Não é a de que o capitalismo produz crises mortíferas (sempre produziu), nem de que os mercados devem ser regulados (a regulação não traz forçosamente melhor capitalismo), nem de que o Estado é eticamente superior aos mercados (sabemos que não é). O que podemos aprender com a crise é o velho peso da prudência, do realismo e da desconfiança. Uma vida mais simples seria aquela em que, antes de confiarmos no nosso banco ou no nosso Estado, pudéssemos reaprender o velho peso da responsabilidade, do que somos e não somos capazes de fazer.
(Hoje, no Público)

Sofia Coppola: Somewhere



Não se percebe bem para onde vai. Mas a viagem, para onde quer que seja o destino, é maravilhosa.

domingo, dezembro 26, 2010

Song for my father

If there was ever a man
Who was generous, gracious and good
That was my dad
The man
A human being so true
He could live like a king
'Cause he knew
The real pleasure in life

To be devoted to
And always stand by me
So I’d be unafraid and free

sábado, dezembro 25, 2010

A parábola dos talentos


"Eu sou um homem extremamente privilegiado. Faço seguramente parte dos dois por cento de pessoas com rendimentos mais altos no mundo. Tenho imenso que agradecer a Deus, ao mundo, às pessoas e o mu dever é a Parábola dos Talentos, que sempre foi a questão central da minha vida. O meu dever é, tendo recebido esses "talentos", e nisso não tive nenhum mérito, pôr isso a render a favor dos que não tiveram as mesmas oportunidades na vida. É isso que traz justificação para uma acção política e humanitária e o critério fundamental é saber se somos coerentes com essa visão ou se, porque há sempre um exercício de poder em tudo o que fazemos, nos deixamos corromper por esse mesmo poder e se perdemos a motivação inicial. Penso que no essencial, com falhas aqui e ali, me mantive fiel a esse princípio e que mantive a Parábola dos Talentos como o elemento motor das minhas acções.

Hoje vejo Deus de uma forma que não é compatível com a ideia de um Deus interventor, a quem se rezam dois pais-nossos a ver se temos um exame melhor, mas como um criador e um inspirador. E, depois, como uma mensagem evangélica, que continuo a considerar uma mensagem de verdade, fundamental para a vida. Esta ideia de que Deus pode estar por detrás das desgraças a que eu assisto não seria compatível com eu acreditar em Deus."

[António Guterres em entrevista à revista Única, do Expresso, de 23 de Dezembro de 2010]

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Lobotomia IX

[Olivia Bee]
O que mais gostava nela? A forma como ela gostava dele.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

2010: O ano político entre aspas


"Podemos estar a caminhar para uma situação explosiva."
Cavaco Silva, na mensagem de Ano Novo, 1 de Janeiro
"Cavaco Silva é um ditador. Mandou quatro amigos meus, dos melhores ministros, para a rua, assim de mão directa."
Belmiro de Azevedo, Visão, 28 de Janeiro
"Acho absolutamente lamentável esse jornalismo, que pode classificar-se como jornalismo de buraco de fechadura, baseado em escutas telefónicas e em conversas telefónicas que, não tendo relevância criminal, devem ser privadas."
José Sócrates, 6 de Fevereiro
"Preferia uma dona de casa nas Finanças."
Medina Carreira
Correio da Manhã, 7 de Fevereiro
"Não sabia nem desconfiava [do envolvimento da PT no alegado plano do Governo para controlar a Comunicação Social]. Pode ter acontecido, à minha revelia. [Sinto-me] encornado."
Henrique Granadeiro
Visão online, 12 de Fevereiro
"É muito difícil manter um mentiroso como primeiro-ministro."
Marcelo Rebelo de Sousa
RTP1, 14 de Fevereiro
"Novos líderes políticos demoram tempo a aparecer. Não se arranjam já feitos na antiga fábrica de cerâmica do Bordalo, nas Caldas da Rainha."
Mário Soares, Diário de Notícias, 16 de Fevereiro
"O que é a Ongoing? É um grupo de media? (...) Ainda ontem alguém dizia que se vai ao site e se vê uma série de coisas, mas que não se consegue perceber o que é a Ongoing."
Agostinho Branquinho. Assembleia da República, 18 de Fevereiro
"A continuar assim não há orçamento que resista e acabaremos por ser fabricantes de criadas e criados para a Europa e para o mundo."
Ilídio Pinho, Expresso, 27 de Fevereiro
"Ofereci não só robalos como também pescada, chicharros e até sardinhas."
Manuel Godinho, (comentando o facto de ter oferecido uma caixa de robalos a Armando Vara)
Diário de Notícias, 6 de Março
"Cada vez que Cavaco Silva fala sentimos um mau hálito político do lado de cá da televisão."
Nuno Morais Sarmento
Diário Económico, 8 de Março
"Sabia que a história nos iria dar razão e também sabia dos enormes custos de ter razão antes do tempo."
Manuela Ferreira Leite, (no discurso de despedido no Congresso)
14 de Março
"Como se pode explicar que um homem que fracassou no seu país seja responsável pela supervisão na Europa? Seria como dar barras de dinamite a um pirómano."
Astrid Lulling, eurodeputada do PPE, na audição de Vítor Constâncio, uma senhora que claramente não foi aoresentada a Durão Barroso)
23 de Março
"Não há relação entre celibato e pedofilia. Mas há relação entre homossexualidade e pedofilia. Este é o problema."
Tarcisio Bertone, Número dois do Vaticano, AFP, 13 de Abril
"Não haverá aumento de impostos. (...) E não aumentamos os impostos pela simples razão de que isso teria um efeito recessivo na nossa economia."
José Sócrates, 16 de Abril
"Quero, em primeiro lugar, começar por pedir desculpa aos portugueses por ter dado o meu acordo ao primeiro ministro para este conjunto de medidas."
Pedro Passos Coelho, 13 de Maio
"Tornar obrigatório o ensino da educação sexual resume-se a dizer. Forniquem à vontade, divirtam-se, façam o que quiserem mas com higiene."
D. Duarte de Bragança, Notícias Sábado, 15 de Maio
"Este homem [Pedro Passos Coelho] vive em Massamá, não vive em condomínio fechado. ... Este homem compreende o povo porque vem do povo."
Mendes Bota, líder do PSD do Algarve, na Festa do Pontal, 17 de Agosto
"O modelo cubano não serve, nem para nós."
Fidel Castro, The Atlantic, 9 de Setembro
"Dormi muito mal para tomar estas medidas [de austeridade]. Mas se não as tomasse não sei se conseguiria dormir."
Teixeira dos Santos, 30 de Setembro
"Cavaco Silva fez-nos o favor de não ir ao funeral. E Saramago agradece."
Pilar del Rio, I, 16 de Outubro
"Se se tornar inevitável a ajuda externa, ela será bem-vinda."
Pedro Passos Coelho, 20 de Outubro
"Em que situação se encontraria o país sem a ação intensa e ponderada que desenvolvi ao longo do mandato? (...) Os portugueses sabem distinguir quem fala verdade e quem semeia ilusões e utopias."
Cavaco Silva, na apresentação da sua recandidatura, 26 de Outubro
"Sou uma pessoa que trabalho muito, que trabalha como mais ninguém (...) De vez em quando, apetece-me relaxar uma noite ou outra, e ninguém pode impedir-me. Amo a vida e amo as mulheres, não devo explicações a ninguém."
Sílvio Berlusconi, 29 de Outubro
"Agostinho Branquinho não foi contratado [pela Ongoing]. Vendeu a alma."
Nicolau Santos, o único jornalista a escrever sobre o assunto!!!!
Expresso, 30 de Outubro
"Gostaria de ter tirado uma foto com Eduardo Catroga aqui. Não foi possível, ficaram nos telemóveis, mas é pena que os portugueses não possam ter essa fotografia."
Teixeira dos Santos, 30 de Outubro
"Mandei tropas americanas para a guerra [no Iraque] com base em informações falsas."
George W. Bush, The Times, 9 de Novembro
"Se o euro falhar, então a Europa falhará."
Angela Merkel, 15 de Novembro
"A utilização do preservativo pode ser um primeiro passo para a moralização, uma primeira parcela de responsabilidade para voltar a desenvolver a consciência de que nem tudo é permito."
Bento XVI, 20 de Novembro
"Este Governo vai chegar ao fim da legislatura."
José Sócrates
Diário de Notícias, 12 de Dezembro

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Rui Tavares: De onde vem o poder?

Volta e meia, vem-me esta imagem à cabeça: um primeiro-ministro, jovem, bem-falante, elegante e poderoso, fazendo um discurso no parlamento do seu país. Os gestos são estudados, mas adquiriram com o tempo uma certa naturalidade - o que significa que estamos perante um político muito profissional, que sabe distinguir-se da massa dos políticos meramente profissionais. As palavras saem bem articuladas, as frases aparecem moduladas, os parágrafos terminam enfáticos - e tudo isto aparece como se fosse convicção. Ele é um político de sucesso e sabe que o é. Tem o partido e o país na mão, graças a uma fórmula que foi afinando ao longo da vida, combinando carisma, oratória e sobretudo lealdades disciplinadas.

Ele termina o seu discurso elevando a voz e sincopando as últimas palavras e, depois - silêncio. Acontece nada. Na plateia ninguém aplaude. Não apenas a oposição, que não aplaude, mas também não apupa, não vaia, não protesta - nada. Mas acima de tudo a maioria, o partido de governo, com os fiéis correligionários do chefe, não levanta as mãos para o aplaudir. A única coisa que se segue ao discurso do chefe é silêncio, e a seguir a esse silêncio, mais silêncio.

No meu sonho não ficam claras as razões para este fenómeno. Talvez se tenham distraído todos. Talvez se tenham aborrecido. Talvez cada um dos seguidores do chefe tenha achado que, naquele dia, se poderia dar ao luxo de não aplaudir porque certamente todos os seus colegas o fariam. Talvez, sem sequer considerar o fundo e a forma do discurso, tenham sentido que aplaudir era apenas uma obrigação de trabalho, como picar o ponto, ou de cortesia - e, de repente, não lhes tenha apetecido fazê-lo, como quem decide ligar para o emprego e inventar uma doença para ficar o dia de pijama. E agora já é tarde. Ninguém bateu palmas e o silêncio durou já uma semibreve a mais, e agora ninguém se atreve a ser o primeiro, nem consegue aliás levantar os braços, porque estão todos hipnotizados pelo sucedido.

O que acontece de imediato não sei. A imagem seguinte que tenho é somente a do chefe de governo chegando a casa, tirando os sapatos, e ficando pensativo sentado no sofá. Ele sabe que está acabado. Todos sabem que ele está acabado. Mas - se é que alguém falou desde que aconteceu o que não aconteceu - não sabem dizer com precisão porquê.

Não tendo aqui o meu Plutarco, não sei onde ele - se é que foi ele - inventa um diálogo com um homem importante. Pergunta-lhe: mas afinal porque és tu importante? E o homem importante diz-lhe: porque todos me prestam atenção. E Plutarco - ou o perguntador - responde: mas não prestamos todos atenção a um cão raivoso? E o homem importante retorque: não é isso; a mim, toda a gente tem de ouvir o que digo. E Plutarco - ou a outra personagem do diálogo - responde: mas não acontece isso com os loucos nos mercados, e com aquelas pessoas que nos agarram no braço até acabarem de contar a sua estória?

E o homem importante: mas não quererás tu entender, ó impertinente? Eu sou importante porque aquilo que eu faço tem consequências. Sim, responde Plutarco: e não terá também consequências um púcaro com leite que está prestes a ferver? Implicitamente, o que o homem importante pretende é dizer o seguinte: eu sou importante porque tenho poder. E a pergunta de Plutarco é: e esse tal poder, de onde vem?

(Enquanto eu te responder com uma pergunta, nunca o receberás.)

[Hoje, no Público]

Sylvia Plath: The Bell Jar


"Come on, give us a smile."
 I had tried concealing myself in the powder room, but it didn't work. I didn't want my picture taken because i was going to cry. I didn't know why i was going to cry, but i knew that if anybody spoke to me or looked at me too closely the tears would fly out of my eyes and the sobs would fly out of my throat and i'd cry for a week. I could feel the tears brimming and sloshing in me like water in a glass that is unsteady and too full. (...) We were supposed to be photographed with props to show what we wanted to be. When they asked me what i wanted to be, i said i didn't know.
"Oh, sure you know", the photographer said.
"She wants", said Jay Cee wittily, "to be everything."
I said i want to be a poet. 

"Give us a smile."
At last, obediently, like the mouth of a ventriloquist's dummy, my own mouth started to quirk up.
"Hey", the photographer protested, with sudden foreboding, "you look like you're going to cry."
I couldn't stop.

Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um encontro contigo,
num sítio em que ambos nos possamos falar, de facto,
sem que nenhuma das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

terça-feira, dezembro 21, 2010

Lobotomia VIII

[Olivia Bee]
Sobreviveu a tudo menos ao mais simples: o teste do algodão.

Love condoms

[Olivia Bee]

Usava um preservativo no coração. Ia a todas, mas nunca se apaixonava. E quando o preservativo rompia, deixando indefesa a muralha que assegurava a impossibilidade do amor, tomava rapidamente a pílula do dia seguinte. E se o contraceptivo de emergência também falhava, não descansava enquanto não estragasse tudo. Era um aleijado emocional. Orgulhosamente só.

Soneto do amor e da morte

[Kai Stuht]

Quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. Quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

Quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Eclipse Lunar total


Amanhã, durante a madrugada, teremos eclipse lunar total.
Em Portugal, poderá ser visto durante pouquinhos minutos (algures entre as 7h41 e as 7h51). O fenómeno começa às 5h29 e duas horas depois atingirá o seu pico, quando a sombra da Terra cobrir por completo a Lua. Durante o eclipse, a Lua poderá não desaparecer totalmente. Os raios solares, reflectidos na atmosfera terrestre, irão dar uma cor alaranjada que pode variar entre tons claros e escuros, dependendo do estado de poluição da atmosfera. A NASA vai transmitir em directo.

domingo, dezembro 19, 2010

A mão que abriu a caixa de pandora

Enquanto o mundo se entretém a conjecturar, a dizer mal ou bem ou assim-assim de Julian Assange, o fundador do site WikiLeaks que virou o mundo do avesso com a publicação massiva de informação classificada, o soldado Bradley Manning, de 23 anos, vai somando, isolado e em silêncio, dias atrás das grades. Mais de 200 desde o final de Maio, altura em que foi detido. E mesmo se tudo indica que um não existiria sem o outro – foi Manning quem roubou os documentos que depois Assange colocou num portal de acesso livre –, a verdade é que enquanto o cada vez mais mediático australiano de 39 anos conseguiu angariar 280 mil euros para pagar uma caução que lhe assegura, no mínimo, uma liberdade condicional, o americano arrisca-se a passar o resto da vida na prisão. À sua espera, num julgamento que deverá ocorrer no próximo ano num Tribunal Militar, terá uma pena nunca inferior a 50 anos. E há mesmo quem considere que o cárcere, mesmo se perpétuo, não basta, e defenda a sua execução como castigo.

Mais dia menos dia, a história há-de ser contada no cinema. Ou não fosse Michael Moore, o mais crítico documentarista americano, um dos beneméritos de Assange. Ofereceu-lhe 20 mil euros para a caução com a seguinte justificação: “Embarcámos na guerra no Iraque com base em mentiras. Centenas de milhares de pessoas morreram. Imaginem apenas o que teria ocorrido se os homens que planearam este crime de guerra em 2002 tivessem que lidar com o WikiLeaks”. As pessoas até podem imaginar isto, que o mundo teria sido melhor se os esquemas políticos que uma decisão de guerra sempre encobre tivessem sido descobertos mais cedo. Mas num passado que já não se pode transformar vertido num putativo filme chamado WikiLeaks, quem será o personagem principal? E quem será designado como o bom e o vilão?

Cenário incontornável: uma América que antes de ser de Barack Obama era de George W. Bush, o mentor da invasão do Afeganistão em 2001. E do ataque ao Iraque em 2003. Uma América que é de tal forma o coração do mundo, que quando sofre uma derrocada – financeira ou bélica ou outra – , provoca danos em vários continentes. Sobretudo nos que alojam os seus aliados. Como agora, em pleno desvario provocado pelas informações libertadas pelo portal WikiLeaks. Quantos governos temem os estilhaços desses documentos tanto quanto o de Portugal teme o desfecho do capítulo sobre os voos da CIA?

A história do WikiLeaks é a história da caixa de pandora que, tal e qual como na lenda, contém todos os males da humanidade e, paradoxalmente, também, uma esperança, sendo que esta só pode ser concretizada através da superação da adversidade. Parecia ser esta a expectativa – ingénua? – de Bradley Manning, o rapaz que abriu a caixa, e em quem apostamos para actor principal.

Bradley Manning, hoje com 23 anos, completados esta semana, é o detonador do que o líder cubano Fidel Castro caracterizou como “uma América moralmente de joelhos”. Manning nasceu na região de Potomac, no estado americano de Maryland, no Condado de Montgomery. A sua cidade-berço é fértil numa população abastada, pautada por níveis de formação elevados, quase toda empregada em Washington DC. Em 2009, Potomac foi mesmo considerada a quarta cidade mais rica dos Estados Unidos. Mas não é neste padrão bem sucedido de fausto que se desenrola a vida do rapaz sobre quem pende a acusação de ter passado documentos confidenciais para o WikiLeaks. O jovem norte-americano cresceu no seio de uma família cujos laços se quebraram quando tinha 13 anos. Depois do divórcio dos pais, Manning vai viver com a mãe para o País de Gales, em Inglaterra. Três anos depois, aos 16, troca o Reino Unido pela sua América natal e a escola por um emprego numa pizzaria. Aos 18 anos, seguindo as pisadas do pai, também soldado americano, decide alistar-se no Exército. Corria o ano de 2007. Até aí, a história de Manning é a história banal de qualquer rapaz americano sem estudos nem dinheiro.

Altera-se tudo quando, integrado na 2ª Brigada da 10ª Divisão de Montana, Manning é designado analista da Inteligência Militar, permitindo-lhe, como o próprio haveria de dizer, “ter acesso sem precedentes a redes confidenciais durante 14 horas por dia, sete dias por semana durante mais de oito meses”. O soldado entrava no edifício com um CD de Lady Gaga e fingia trautear as canções enquanto as apagava e substituía por ficheiros de duas redes confidenciais do governo americano. Ao tomar conhecimento de “coisas incríveis, coisas horrorosas”, Manning ter-se-á porventura confrontado com dois dos maiores dilemas morais da sua ainda curta vida: por um lado, a inutilidade do sacrifício de estar disposto a dar a vida pela Pátria julgando defender e fazer parte dos bons quando afinal descobre que os bons também são maus, corruptos e sanguinários; por outro lado, decidir o que fazer com o que descobrira: guardar ou partilhar? Partilhou.

Da primeira vez, em Abril deste ano, o mundo inteiro viu um vídeo, filmado a partir de um helicóptero, que mostra o ataque de um Apache dos Estados Unidos a vários civis numa praça de Bagdade, no Iraque, em 2007. No total, morreram 12 pessoas, nenhum terrorista. Duas eram crianças, outras duas jornalistas da agência Reuters. O vídeo é a prova cabal da mentira contada pelo Exército americano, cuja versão oficial relatava um ataque a anti-rebeldes iraquianos. Manning terá visto milhares de documentos desta craveira, milhares de mentiras militares e diplomáticas. Tanto que, pouco depois, cerca de 75 mil documentos foram libertados pelo WikiLeaks dando conta de todas as mentiras que envolveram a guerra no Afeganistão.

Posteriormente, Manning confessou tudo a Adrian Lambo, um ex-hacker que se tornou conhecido em 2002 por ter conseguido entrar nos arquivos digitais do jornal “The New York Times”. Lambo, que haveria de o denunciar, é um personagem secundário neste filme, embora para muitos talvez o único vilão. Mas é através dele que se percebe a inquietação e o desapontamento em que o jovem Manning está mergulhado. “Já não acredito que haja pessoas boas e pessoas más. Há uma série de países que actuam sempre em favor de seus próprios interesses”, escreveu-lhe, anunciando que não poderia guardar aquela informação só para si. “Enviei tudo para o WikiLeaks. Deus sabe o que vai ocorrer a partir de agora. Espero que haja uma grande discussão mundial, com debates e reformas. Se não for assim, estamos condenados como espécie”. A correspondência privada entre os dois acabaria por se tornar também do conhecimento público, tendo sido publicada em Junho deste ano na revista americana “Wired”.

A partir daí, Bradley Manning, que já se encontrava detido numa base militar do Kuwait por suspeita de acesso e divulgação de informação sigilosa, passou a ser oficialmente considerado um dos maiores inimigos da América. A 5 de Julho, o Pentágono acusou-o de ser a fonte do WikiLeaks. Começa então uma discussão nos média americanos sobre as razões que terão levado Manning a trair (?) o seu país. E, ao bom modo conservador americano, a vida banal daquele rapaz transformou-se subitamente num problema clínico, de divã. O imberbe génio da informática que fora digno da confiança do Exército para analisar informações secretas rapidamente se transformou apenas num personagem tímido, que afinal até teria dificuldades de relacionamento social e, pasme-se, é homossexual.

Bradley Manning ainda nada disse em sua defesa. Aliás, não tem sido sequer alvo de atenção mediática. No passado dia 7, surgiu uma notícia nas redes sociais dando conta de que se teria suicidado, mas a notícia foi rapidamente desmentida. Ainda assim, a sua coragem divide a opinião pública. Na América e no mundo. Para alguns, com destaque para os familiares dos militares mortos nas guerras do Iraque (mais de quatro mil) e do Afeganistão (mais de dois mil), Manning é um herói que deve ser defendido a qualquer custo; para outros, sobretudo para quem desempenha ou desempenhou cargos diplomáticos na América, Manning é um traidor que deve ser “obviamente executado”. John Bolton, antigo embaixador dos EUA na ONU, afirmou à “National Review Online” que “se ele for declarado culpado, deve ser executado.” Bolton, à semelhança de vários estadistas, considera que Manning colocou em risco a vida de várias pessoas. Ainda que ninguém tenha explicado exactamente de que forma.

Ao contrário, a Câmara Municipal de Berkeley, no estado americano da Califórnia, votará depois de amanhã, dia 21, uma resolução que proclama “herói” o soldado Manning, e pede sua libertação imediata. De resto, já em Setembro, centenas de manifestantes estiveram reunidos em 21 cidades, do Canadá à Austrália, a pedir a sua libertação. “Denunciar crimes de guerra não é crime”, alegam.

Perante isto, a importância de Julian Assange, que esta semana, depois de libertado, afirmou estar a ser “vítima de uma campanha de difamação”, é pouco maior do que a dos jornais que têm estado a trabalhar os documentos do WikiLeaks. Na virtude ou no defeito desta cadeia informativa, ele será apenas a cauda de um cometa, exageradamente mediatizada. Como esclareceu, anteontem, o editor-executivo do “New York Times”, Bill Keller, “Assange não é mais do que uma fonte – e as fontes raramente são puras e simples.” Até agora, apenas 300 dos 251.287 documentos colocados em domínio público pelo WikiLeaks são conhecidos. A história, seguramente, continua.

sábado, dezembro 18, 2010

Cinco graus negativos

[Milly Tsai, 'Reading']

Há abraços em forma de literatura. E literatura em forma de açucareiro.
É o que nos adoça. A ausência.
E nos aquece. Os dias frios.  

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Alain Platel: "Out of context - for Pina"


A companhia belga les ballets C de la B regressa hoje, às 22 horas, ao Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, para apresentar a mais recente criação de Alain Platel, “Out of Context – For Pina”, um espectáculo dedicado à lendária coreógrafa e bailarina alemã Pina Bausch.

Em “Out of Context – For Pina”, Alain Platel regressa ao essencial da dança, partindo da convicção de que o corpo humano é uma ferramenta emotiva, um detentor de memórias, uma matéria-prima para a arte. O corpo é a sua base de trabalho. São privilegiados os movimentos que surgem do inconsciente e do descontrolado, como espasmos, bater de dentes, expressões faciais, desequilíbrio e todos os andares estranhos. Em palco, os bailarinos exploram todos os movimentos do corpo em estado de histeria.

A propósito deste espectáculo, Alain Platel confessa “um dos temas que, de forma mais proeminente, tem sobressaído no meu trabalho em  anos mais  recentes é o do ‘corpo em estado de histeria’. Não me refiro à histeria como doença, mas antes  como expressão da ultra-sensibilidade em relação à vida. Sempre que as palavras não conseguem exprimir as nossas mais íntimas emoções, o corpo toma conta. A dança deve ter tido esta  função ao longo dos tempos: lutar para ser uma tradução física de sentimentos exacerbados.”

Aclamado nome da dança contemporânea, Alain Platel faz assim uma homenagem a Pina Bausch, sem dúvida uma das maiores coreógrafas da história da dança mundial, tornando “Out of Context - For Pina” um dos melhores espectáculos a passar pelas salas portuguesas este ano.

10 anos

Só passaram os anos...

Lembro-me do primeiro dia em que fui lá. Atrasada. Fim de tarde escura e chuvosa numa cidade tão próxima, que me era, apesar de tudo, tão estranha. Levava o ego infinitamente menos cheio do que julgou depois a maioria. E umas calças de ganga rasgadas, ingenuamente convencida de que isso bastaria para me proteger dos estereotipos do mundo. Esperei quase meia hora numa sala pequena de óleos apagados. Depois, lá apareceu alguém, folhas brancas na mão, ar de quem luta contra o tempo, tom acelerado. Ideias, muitas; projectos, mais; futuro. Conversa boa. Quase bajuladora. Lembro-me perfeitamente de ter pensado nela assim, nesses termos. E de ter pensado que não entendia por que razão me tinham chamado, a mim, se eu era apenas mais uma, muito longe de ser das melhores, como tantos outros, a enviar currículos no fim do curso. Não era suposto sofrer pelo menos uns meses no desemprego? Equacionar alternativas ou gastar o dinheiro que não tinha numa viagem qualquer? Matriculei-me num segundo curso, Direito, ainda antes de começar a procurar emprego. Fá-lo-ia de qualquer maneira.

Eu queria mudar o mundo. Cresci a ouvir as pessoas dizerem-me que eu ia mesmo mudar o mundo. Mas não poderiam estar a contratar-me por isso. A menos que também quisessem mudar o mundo. Quereriam? Nas grandes empresas não deve raciocinar-se nesses termos, reconsiderei. Por isso, à saída da minha primeira entrevista de emprego, determinada a recusar a proposta caso a minha hipótese se confirmasse, perguntei se alguém tinha metido uma cunha por mim. “Se me conhecesse, não teria feito a pergunta”, responderam-me. Seja.

Lá estava eu, 23 anos acabadíssimos de fazer. Os sonhos todos no peito. E à minha frente uma equipa inteira com a qual nunca tinha sonhado, à espera que me espatifasse na primeira curva sem que eu percebesse muito bem porquê. Ainda nem sabia o nome deles. Saberiam eles o meu? E como poderia haver logo tantos rótulos e tão má vontade para com alguém que ainda mal tinha chegado? (Deviam ensinar-nos na escola que a timidez é facilmente confundida com arrogância e a arrogância não é bom cartão de visita para ninguém.)

Houve um senhor que se apresentou logo no primeiro dia, não exactamente pelo nome: “Aqui, menina, as pessoas não se sentam em cima das secretárias!” Ops! Levantei-me, vermelhíssima, engasgada com os insultos que, isso sabia, não podia disparar. Lembro-me perfeitamente de um trio masculino, sentado ao lado da janela. Absolutamente sinistra a forma como se impunha pela pose, pelos fatos, pela altivez do olhar, pelo cheiro das cigarrilhas. Sempre tive dificuldade em respeitar hierarquias só porque sim. E percebi que ali o desafio seria esse: aprender a respeitar sem questionar. Seria capaz? Havia ali uma espécie de código de comportamento que me atirava completamente para fora do que até então tinha aprendido a reconhecer como certo. Era demasiado nova para entender. Demasiado nova para quase tudo. Por muito que achasse que não. Era sobretudo demasiado nova para saber jogar. Uma "inábil social" haveria de dizer alguém. E também há preço para isso. Sobretudo quando nunca se aprende.

Aceitei o horário da manhã, consciente de que nunca o haveria de cumprir, porque era aquele em que via menos gente. Não devem ver-se pessoas que não estão dispostas a aceitar os outros. De cada vez que chegava, com uma hora de atraso, lá tinha o recado de sempre: “Quando chegar, ligue-me. Tem isto e isto e isto para fazer”. E depois, os discursos oscilavam entre uma hospitalidade que me soava estranha ("Eu mostro-te como é...; "Eu digo-te como se faz.."; "Ah, filha, se eu tivesse a tua idade!..."), algumas abordagens de comparação académica ("No meu tempo era assim..."; "Agora é assado...") e as clássicas tentativas de sedução sexista. Rezava sempre para que não me convidassem para almoçar. Às vezes, convidavam. Nesses dias só me apetecia fugir! Culpa dos outros? Mais minha, seguramente.

Saía às seis da tarde a jurar que não voltaria no dia seguinte. Recebia telefonemas repetidos. Amigos me queriam brindar-me com uma palavra de consolo. Que nunca consolava... Sentia que me tinha enganado (mas assim tão depressa? Seria possível?): que me tinha achado melhor do que realmente era. E que era aquele local onde por mil e um motivos nunca pensei trabalhar, que mo estava a demonstrar. Não era só o despenhamento do ego. Era sobretudo o despenhamento de um futuro que, pela primeira vez, não estava a conseguir controlar. No meu imaginário, aquilo deveria ser uma fábrica de operários transformadores de mundos. E nunca de alpinistas profissionais. Se era isso, como poderia ser feliz ali?

E, no entanto, quando pouco depois surgiu o convite para Lisboa, não tive coragem de ir. Ainda hoje não sei bem porquê. Era o ano da Capital Europeia da Cultura e não queria sair da cidade nesse ano. Deslumbrada por conhecer o Seamus Heaney, o Lobo Antunes (mesmo que ele não tenha achado o mesmo), o Sepúlveda; febril e infantilmente entusiasmada com tudo o que estava a acontecer, achava mesmo que naquele ano não poderia sair. Era um ano fundamental para compensar a minha falta de bagagem cultural e de quase tudo. Havia demasiados nomes (do teatro, da dança, das artes plásticas...) que só conhecia dos livros e dos jornais a fazer escala ali, como poderia não querer ficar? Ainda por cima, diziam que era o início de um novo ciclo. E eu não sabia que não podia acreditar. Como não sabia que não era possível mudar o mundo.

O tempo é como uma picada de abelha. Vem tão depressa que nunca ninguém consegue fugir. Quando se dá conta, já o ferrão se nos enterrou no corpo. Terá valido a pena ter ficado? Terá valido a pena ter ficado quando percebo que, afinal, as impressões que colhi aos 23 anos não são muito diferentes das que tenho agora, aos 30? Traduzem-se nesta frase: "O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons."

... só passaram os anos. Mais três. A história continua a mesma. Dez anos somados hoje, mesmo se havia prometido no primeiro dia que, corresse muito bem ou muito mal, ficaria sempre só cinco. Correu muito bem. E correu muito mal. E correu muitas vezes assim-assim. E dez anos dão-nos outro olhar, outra perspectiva, outra ponderação. Outra serenidade. Basicamente, aprende-se a deixar de apontar o dedo ao outro e a virá-lo para nós. E a cultivar o respeito. Pela diferença. E até pelo que mói e dói. Dez anos depois, não há ali quase ninguém que não preze. E muitos a quem não esteja grata. Seja como for, como o iogurte, estou há cinco anos fora do prazo de validade. E é estranho pensar nisto assim. E triste, como só a impotência pode ser. Mas pelo menos não me enganei.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Os heróis já não são o que eram

Lobotomia VII

[Sylvie Blum]
Ela escondia-se nos livros. Ele revelava-se neles. Era a mesma coisa.

"O meu coração está onde eu estou"


"Não sei onde está o meu coração. O coração está onde eu estou naquele momento, em cada dia. Sou um homem sem pátria, um homem sem terra, sou um homem sem raiz, sem sítio, um homem do tempo, do dia, do momento. Cresci noutras longuras bem distantes: em África fiz-me gente, estudei e criei laços de robustez intelectual em Lisboa, mas sou filho de uma família profundamente nortenha. A minha mãe era da Rua de Cedofeita, no Porto, e o meu pai era de Mondim de Basto. Os meus pais levaram-me pequeno para África, fiz Direito em Lisboa. Não me licenciei, mas fui até ao fim. E tenho corrido mundo à conta da minha carteira de jornalista. Conheci tanta coisa nova, enriqueceu-me tanto. Não é aqui, onde estou de passagem, que tenho o meu coração. Tenho-o no sítio onde estou, no momento em que estou. E não sei qual será o último e onde estarei quando morrer."

Carlos Pinto Coelho
1944-2010



Carlos Pinto Coelho (1944 - 2010)

[Carlos Pinto Coelho, na Vidigueira]

Aconteceu de forma inesperada. Carlos Pinto Coelho, lisboeta de 66 anos, sucumbiu ontem a problemas cardíacos. O autor do "Acontece", o telejornal cultural que maior longevidade conheceu na televisão do Estado, faleceu depois de uma intervenção cirúrgica à aorta, no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Era tratado pelo nome do programa, era o “Senhor Acontece”.

“Morreu um libertino numa altura em que cada vez temos menos liberdades”. Se o magazine cultural “Acontece” ainda estivesse no ar no dia em que morreu o polémico escritor Luiz Pacheco, Carlos Pinto Coelho tê-lo-ia anunciado desta forma. Mas em Janeiro de 2008, o “Acontece” já não acontecia diariamente na RTP 2 há cinco anos. Para “luto intenso, mas não prolongado” do seu autor e apresentador. O epitáfio que escolheria para o autor de “Textos malditos” cabe na perfeição no comunicador que era também jornalista que era também fotógrafo.

Pinto Coelho não era um libertino no sentido estrito do termo ou de Pacheco; era libertino num sentido mais lato, eventualmente mais poético, no sentido de eleger o belo como fonte de prazer. Foi isto que fez a vida toda ao defender, como poucos, a cultura em Portugal. Ao defender, fazendo. Coisa ainda mais rara.

O “senhor Acontece” tem uma longa história antes do programa que o mediatizou – no Diário de Notícias, como repórter; no Jornal Novo, como co-fundador; na RTP, onde desempenhou vários cargos, desde director de informação a director de programas – e uma história igualmente longa, longe dos holofotes, depois de o terem afastado televisão, onde trabalhou durante 23 anos. O “Acontece” continuou a ser emitido todas as semanas em 92 rádios nacionais. E os livros adiados começaram, nos últimos anos, a ver a luz do dia. No ano passado, encabeçou também a  candidatura para o quinto canal de televisão. O Telecinco SA, como se apresentava, era constituído, entre outros, por Ana Paula Rangel, filha de Emídio Rangel, e pelo jornalista  David Borges.

Mas não era o ecrã da televisão que lhe fazia falta – “Não me faz falta nenhuma. Aquela ideia que se tem de que quem apareceu todas as noites na televisão fica muito triste, comigo não aconteceu”, afirmou em 2008 numa entrevista ao JN –; o que lhe fazia falta, o que realmente o preenchia, era o ecrã da máquina fotográfica. “A esse não resisto dia nenhum”, confessou. “Não há dia nenhum que chegue à minha varanda do Alentejo e olhe para o céu – e o céu todos os dias está diferente – em que não tenha de ir procurar a minha câmara fotográfica, porque desta vez", riu ao dizer isto, "desta vez é que estas nuvens são as melhores de sempre”.

Pinto Coelho deixou forte impressão digital em África, onde cresceu, e definitivamente a mãe África nele. Mas quando lhe perguntámos se era lá que estava o seu coração, negou. “Sou um homem sem pátria, sem terra, sem raiz, sem sítio, um homem do tempo, do dia, do momento. Corri mundo, conheci muita gente e muita coisa que me enriqueceu. Não é aqui, onde estou de passagem, que tenho o meu coração. Tenho-o no sítio onde estou, no momento em que estou. E não sei qual será o último e onde estarei quando morrer.”

Carlos Pinto Coelho: "Quando não triunfo fico muito zangado"

[Carlos Pinto Coelho em S. Tomé]

Entrevista publicada no JN, na série Farpas, a 13 de Janeiro de 2008

Na televisão portuguesa, foi ícone da África lusófona e da Cultura, das frases encadeadas quase ditas como poesia. O magazine 'Acontece', que produziu e apresentou durante nove anos, na RTP 2, foi caso raro de longevidade. Mais raro ainda, de sucesso. Carlos Pinto Coelho, 63 anos, não desapareceu. Faz o que fazia antes, mas sem holofotes.

Há quem o trate por 'senhor Acontece'?
Há quem me trate dessa forma gentilíssima e que me dá imensa alegria.

Conhece alguma outra pessoa que seja tratada dessa forma associada a um programa?
Conheço. O Raul Solnado não desdenhará que o tratem ainda pela fórmula do seu querido 'Zip Zip' e penso que, se fosse vivo, Vitorino Nemésio não desdenharia que na rua alguém lhe dissesse "Se bem me lembro".

Consegue adormecer sem ler ou lê só fora da cama?
Ler é uma actividade que me é orgânica. Leio como respiro. Leio quando estou de vigília e seguramente não consigo adormecer sem uma página de leitura.

De que forma anunciaria no 'Acontece' a morte de Luiz Pacheco?
"Morreu um libertino numa altura em que cada vez temos menos liberdades".

Quem salva hoje a honra da cultura em Portugal: Isabel Pires de Lima, Joe Berardo ou José Sócrates?
Nenhum deles. A cultura nunca se faz por essas vias.


Quer dizer que, em Portugal, o rei vai nu?
Não. O rei está bem vestido, só que não se mostra.


Nuno Santos é a luz ao fundo do túnel da Sic?
Não conheço.
E qual é o calcanhar de Aquiles da nova administração da RTP?
É herdar uma situação equívoca: por um lado, uma estação de serviço público que se descaracterizou e deixou de ser uma estação de serviço público para ser uma empresa comercialmente com êxito; por outro lado, a necessidade de manter o êxito comercial quando toda a gente espera que uma estação de serviço público dê dinheiro.

O futuro canal de televisão poderá ser um valor acrescentado ou o mais provável é ser mais do mesmo?
Ai, não faço eu ideia. Nem ninguém faz ideia, nem quem o criou. O futuro canal de televisão surgirá quando surgir a Televisão Digital Terrestre e nenhum português poderá dizer-lhe com rigor em que dia isso acontecerá.

A rádio foi o seu ombro amigo quando foi deixado pela televisão?
A rádio é o meu ombro amigo, hoje, que a televisão se afastou de mim. Gravei ontem o programa 448 do 'Acontece', que orgulhosamente continuamos a oferecer ao país todas as semanas em 92 rádios.

De que forma aconteceu a sua vida quando o 'Acontece' acabou na RTP2?
Voltei a ter a vida que tinha, só que sem televisão. Ou seja, pude abraçar com mais vigor, com mais tempo, e até com mais requinte, tudo aquilo que eu já era, sem os constrangimentos, e também sem as alegrias de colocar um programa no ar logo à noite.

O programa acabou em 2003, quando José Rodrigues dos Santos era director de programas. Nada fez por si. Ligou-lhe agora, solidarizando-se com ele?
A informação que tem não é correcta. O José Rodrigues dos Santos era director de informação e bateu-se até ao fim pelo 'Acontece'. O programa continuaria ainda hoje, esta noite, se por cima do José Rodrigues dos Santos não estivessem outras políticas e outros desígnios. Porque ele foi sempre de uma grande honestidade comigo. Isso não esqueço e jamais permitirei que se diga o contrário.

Ligou-lhe, então?
Logo que li o que aconteceu, aqui, na minha casa do Alentejo, pela Internet, a primeira coisa que fiz foi ligar ao Zé a dizer: "Tens-me aqui para aquilo que precisares, como tu estiveste comigo na minha altura". Ele ouviu e penso que registou.

O 'Acontece' nasceu e morreu com um governo PSD. As alternâncias partidárias ainda lhe criam algum tipo de expectativa?
Ainda me criaram alguma expectativa com uma eleição por maioria absoluta de um outro partido – por acaso, o PS – e é público e notório que cheguei a apoiar o partido socialista em algumas acções públicas. Criaram-me expectativa porque ainda acreditava que o Bloco Central não fosse tão central e tão bloco como na realidade é.

Foi Herman José quem, no Tal Canal, enfatizou o seu estilo de comunicação. Parece-lhe que são os humoristas quem melhor fazem a preservação da memória de algumas figuras?
Começo pelo Herman com quem tive sempre uma atitude de grande cordialidade. Sempre me ri muito com a personagem que ele criou, com aquilo que eu era quando apresentava todas as noites o Telejornal. Deixei de ser isso há muitos anos - o tal Carlos Filinto Botelho que ele inventou e que me fez rir e sorrir com muita simpatia. Nunca o Herman foi menos respeitoso comigo ou com o meu trabalho. A segunda parte da resposta é pedir-lhe que me recorde de alguma vez algum bobo da corte ter feito História. Que me recorde, a História que nós fazemos e lemos foi sempre feita pelos cronistas, pelos historiadores e nunca pelos bobos da corte.

Precisa mais do ecrã da televisão ou do ecrã da máquina fotográfica?
O ecrã da televisão não me faz falta nenhuma. Aquela ideia que se tem de que quem apareceu todas as noites na televisão fica muito triste, comigo não aconteceu. De todo. Não me faz falta nenhuma. Outra coisa diferente é se me faz falta, ou não, o trabalho que estava por detrás do ecrã da televisão. Eu seria um completo ingénuo se não reconhecesse que me faz falta. Porque quereria dizer que aqueles 23 anos que trabalhei na televisão não serviram para nada. Faz-me falta preparar um programa, conceber um programa, estruturá-lo na minha cabeça, pô-lo depois em acção, escolher as pessoas para o fazer, dirigir uma equipa e todas as noites conceber um alinhamento de um programa escolhendo prioridades editoriais, que assuntos vou mandar tratar, que reportagens vou mandar fazer e que entrevistados vou pedir que venham ao meu estúdio. Isso com certeza que me faz falta. Sou jornalista de corpo inteiro. Agora, aquela fase final mais emblemática de aparecer no ecrã, essa não me faz falta nenhuma.

Em relação ao ecrã da máquina fotográfica…
A esse não resisto dia nenhum. Porque não há dia nenhum que chegue aqui à minha varanda do Alentejo e olhe para o céu, e o céu todos os dias está diferente, porque nunca vemos as nuvens iguais em nenhum dia. Então, não há nenhum dia em que não tenha que ir procurar a minha câmara fotográfica porque desta vez é que estas nuvens são as melhores de sempre [risos].

No Brasil, em Olinda, fotografou um barbeiro que disse ser um guardador de memórias. O seu também guarda as suas?
Eu não deveria pôr a público aquilo que vou revelar pela primeira vez, mas vou fazê-lo. O meu barbeiro é a minha mulher há muitos anos.

Alguma vez foi ver os seus vídeos ao Youtube?
Quando amigos se lembram de mos mandar, sim. Vejo-os e as minhas reacções são as mais diversas consoante aquilo que estava ali recordado. Vejo-os, mas não os procuro. Não tenho esse espírito. Agora, outra coisa é – aproveitando a deixa - declarar-lhe com a maior surpresa como tanto eu como toda a minha equipa, que ainda está toda ela felizmente viva e actuante, nos interrogamos com a maior perplexidade, por que é que um canal chamado "Memória" da Rádio Televisão Portuguesa ainda não conseguiu arranjar tempo ao fim destes anos todos de existência para nos dar sequer um minuto de memória. Porque é que a memória da RTP ainda teve ainda um minuto de memória para quase dez anos de programa "Acontece".

Se houvesse caminhos para o passado, onde voltava a colocar a fita? Ou só pensa no futuro?
Seguramente no futuro. Alguns orientais chineses têm uma expressão que me serve muito no meu dia-a-dia. Vale a pena partilhá-la com amigos. Olhando para a cabeça de um ser humano, onde é que se situa o futuro e onde é que se situa o passado? Nós, ocidentais, dizemos que o passado está na nuca, para trás, e o futuro para a frente, para diante dos meus olhos, quando é realmente o contrário. O passado já o vi, conheço-o bem, e portanto o que tenho diante dos meus olhos é aquilo que é conhecido. E o que é conhecido é o passado. O futuro está para trás de mim, está na nuca. Eu nunca consegui olhar através da minha nuca.

Hoje está no Alentejo. É o lugar onde está o seu coração ou o seu balão de oxigénio?
Eu não sei onde está o meu coração. O coração está onde eu estou naquele momento, em cada dia. Sou um homem sem pátria, um homem sem terra, sou um homem sem raiz, sem sítio, um homem do tempo, do dia, do momento. Cresci noutras longuras bem distantes: em África fiz-me gente, estudei e criei laços de robustez intelectual em Lisboa, mas sou filho de uma família profundamente nortenha. A minha mãe era da Rua de Cedofeita, no Porto, e o meu pai era de Mondim de Basto. Os meus pais levaram-me pequeno para África, fiz Direito em Lisboa. Não me licenciei, mas fui até ao fim. E tenho corrido mundo à conta da minha carteira de jornalista. Conheci tanta coisa nova, enriqueceu-me tanto. Não é aqui, onde estou de passagem, que tenho o meu coração. Tenho-o no sítio onde estou, no momento em que estou. E não sei qual será o último e onde estarei quando morrer.

Ainda lhe falta a Austrália para completar a volta ao mundo?
Pois falta. E, para ser franco, os cangurus continuam a não me seduzir.

Na sua vida de estudante só chumbou uma vez, a Direito das sucessões. E na vida, alguma coisa lhe soou dessa forma? Claro que sim. Múltiplas vezes senti-me preparado para triunfar e a vida não me deixou. Senti-me muito zangado. Quando não triunfo fico muito zangado.

Um livro sobre a televisão portuguesa chamado "Factos e ficções" está anos encravado no computador. Ainda é para sair de lá?
O meu livro sobre a televisão portuguesa tem três anos. Decidi escrevê-lo quando sai da RTP. Há um instinto de liberdade que vem quando a gente sente que já não tem o dever de lealdade para com uma empresa. A partir do momento em que a Televisão fez um acordo amigável comigo senti-me liberto para começar a pensar no livro. Mas atenção: esse livro que, sim, continua encravado no meu computador, não é um simples livro de memórias. Aquilo que tenho no meu computador - e já tenho vários capítulos -, são acontecimentos de percurso de que fui protagonista como director de programas ou director de informação ou como director de cooperação e relações internacionais. Factos que provoquei ou de que fui testemunha privilegiada e que tem a ver o percurso do serviço público da televisão em Portugal. Por exemplo, ninguém conhece os bastidores de que fui protagonista, na primeiríssima entrevista que o presidente Samora Machel deu à televisão portuguesa nas vésperas da sua primeira viagem a Portugal, muito contestada e muito turbulenta na altura. Ninguém sabe que terei sido o autor da realização e produção da famosa série de televisão "Rua Sésamo". Fui eu que decidi trazê-la para Portugal, feita por portugueses, de acordo com modelos portugueses - não só portugueses de Portugal, mas de Angola, Moçambique, Cabo Verde e de toda a África lusófona. Há coisas que, se calhar, só eu sei e que me apetece deixar escrito em livro. É a narrativa dos factos, sem adjectivos, que evoluíram de alguma forma no serviço público da estação

Posso perguntar-lhe de que forma, com que nome, o tratava a sua mãe Sarah?
É público. Todos os colegas de liceu sabem isso. O meu nome é Carlos Nuno. E desde pequenino que a mim próprio me tratava pela primeira sílaba de cada nome. Toda a gente que me conhece de infância me trata ainda hoje por Canu.

De acordo com o novo acordo ortográfico, qual a palavra que mais lhe vai custar rescrever?
Espero que nunca tenha que mudar qualquer maneira de escrever da Língua Portuguesa no padrão de Portugal por causa de um acordo que espero que nunca venha a existir.

Continua a achar que a blogosfera "é território de adolescente, feira de vaidades, autores frustrados que só ali conseguem publicar-se, almas solitárias à procura de qualquer eco"?
Não me interessa perder o meu tempo, que é cada vez mais curto. Tenho tantos livros para ler, tantos países para viajar, tantas fotografias para tirar, tantas páginas para escrever e tantas para ler, e as da blogosfera, na sua esmagadora maioria, são desinteressantes e nada enriquecedoras. Da blogosfera - tirando o "Abrupto", que me interessa - vou sobretudo aos blogues dos meus colegas jornalistas, porque procuro encontrar ali aquilo que eles, por uma razão ou por outra, não puderam ou não quiseram publicar nos seus próprios media.