[Carlos Pinto Coelho em S. Tomé]
Entrevista publicada no JN, na série Farpas, a 13 de Janeiro de 2008
Na televisão portuguesa, foi ícone da África lusófona e da Cultura, das frases encadeadas quase ditas como poesia. O magazine 'Acontece', que produziu e apresentou durante nove anos, na RTP 2, foi caso raro de longevidade. Mais raro ainda, de sucesso. Carlos Pinto Coelho, 63 anos, não desapareceu. Faz o que fazia antes, mas sem holofotes.
Há quem o trate por 'senhor Acontece'?
Há quem me trate dessa forma gentilíssima e que me dá imensa alegria.
Conhece alguma outra pessoa que seja tratada dessa forma associada a um programa?
Conheço. O Raul Solnado não desdenhará que o tratem ainda pela fórmula do seu querido 'Zip Zip' e penso que, se fosse vivo, Vitorino Nemésio não desdenharia que na rua alguém lhe dissesse "Se bem me lembro".
Consegue adormecer sem ler ou lê só fora da cama?
Ler é uma actividade que me é orgânica. Leio como respiro. Leio quando estou de vigília e seguramente não consigo adormecer sem uma página de leitura.
De que forma anunciaria no 'Acontece' a morte de Luiz Pacheco?
"Morreu um libertino numa altura em que cada vez temos menos liberdades".
Quem salva hoje a honra da cultura em Portugal: Isabel Pires de Lima, Joe Berardo ou José Sócrates?
Nenhum deles. A cultura nunca se faz por essas vias.
Quer dizer que, em Portugal, o rei vai nu?
Não. O rei está bem vestido, só que não se mostra.
Nuno Santos é a luz ao fundo do túnel da Sic?
Não conheço.
E qual é o calcanhar de Aquiles da nova administração da RTP?
É herdar uma situação equívoca: por um lado, uma estação de serviço público que se descaracterizou e deixou de ser uma estação de serviço público para ser uma empresa comercialmente com êxito; por outro lado, a necessidade de manter o êxito comercial quando toda a gente espera que uma estação de serviço público dê dinheiro.
O futuro canal de televisão poderá ser um valor acrescentado ou o mais provável é ser mais do mesmo?
Ai, não faço eu ideia. Nem ninguém faz ideia, nem quem o criou. O futuro canal de televisão surgirá quando surgir a Televisão Digital Terrestre e nenhum português poderá dizer-lhe com rigor em que dia isso acontecerá.
A rádio foi o seu ombro amigo quando foi deixado pela televisão?
A rádio é o meu ombro amigo, hoje, que a televisão se afastou de mim. Gravei ontem o programa 448 do 'Acontece', que orgulhosamente continuamos a oferecer ao país todas as semanas em 92 rádios.
De que forma aconteceu a sua vida quando o 'Acontece' acabou na RTP2?
Voltei a ter a vida que tinha, só que sem televisão. Ou seja, pude abraçar com mais vigor, com mais tempo, e até com mais requinte, tudo aquilo que eu já era, sem os constrangimentos, e também sem as alegrias de colocar um programa no ar logo à noite.
O programa acabou em 2003, quando José Rodrigues dos Santos era director de programas. Nada fez por si. Ligou-lhe agora, solidarizando-se com ele?
A informação que tem não é correcta. O José Rodrigues dos Santos era director de informação e bateu-se até ao fim pelo 'Acontece'. O programa continuaria ainda hoje, esta noite, se por cima do José Rodrigues dos Santos não estivessem outras políticas e outros desígnios. Porque ele foi sempre de uma grande honestidade comigo. Isso não esqueço e jamais permitirei que se diga o contrário.
Ligou-lhe, então?
Logo que li o que aconteceu, aqui, na minha casa do Alentejo, pela Internet, a primeira coisa que fiz foi ligar ao Zé a dizer: "Tens-me aqui para aquilo que precisares, como tu estiveste comigo na minha altura". Ele ouviu e penso que registou.
O 'Acontece' nasceu e morreu com um governo PSD. As alternâncias partidárias ainda lhe criam algum tipo de expectativa?
Ainda me criaram alguma expectativa com uma eleição por maioria absoluta de um outro partido – por acaso, o PS – e é público e notório que cheguei a apoiar o partido socialista em algumas acções públicas. Criaram-me expectativa porque ainda acreditava que o Bloco Central não fosse tão central e tão bloco como na realidade é.
Foi Herman José quem, no Tal Canal, enfatizou o seu estilo de comunicação. Parece-lhe que são os humoristas quem melhor fazem a preservação da memória de algumas figuras?
Começo pelo Herman com quem tive sempre uma atitude de grande cordialidade. Sempre me ri muito com a personagem que ele criou, com aquilo que eu era quando apresentava todas as noites o Telejornal. Deixei de ser isso há muitos anos - o tal Carlos Filinto Botelho que ele inventou e que me fez rir e sorrir com muita simpatia. Nunca o Herman foi menos respeitoso comigo ou com o meu trabalho. A segunda parte da resposta é pedir-lhe que me recorde de alguma vez algum bobo da corte ter feito História. Que me recorde, a História que nós fazemos e lemos foi sempre feita pelos cronistas, pelos historiadores e nunca pelos bobos da corte.
Precisa mais do ecrã da televisão ou do ecrã da máquina fotográfica?
O ecrã da televisão não me faz falta nenhuma. Aquela ideia que se tem de que quem apareceu todas as noites na televisão fica muito triste, comigo não aconteceu. De todo. Não me faz falta nenhuma. Outra coisa diferente é se me faz falta, ou não, o trabalho que estava por detrás do ecrã da televisão. Eu seria um completo ingénuo se não reconhecesse que me faz falta. Porque quereria dizer que aqueles 23 anos que trabalhei na televisão não serviram para nada. Faz-me falta preparar um programa, conceber um programa, estruturá-lo na minha cabeça, pô-lo depois em acção, escolher as pessoas para o fazer, dirigir uma equipa e todas as noites conceber um alinhamento de um programa escolhendo prioridades editoriais, que assuntos vou mandar tratar, que reportagens vou mandar fazer e que entrevistados vou pedir que venham ao meu estúdio. Isso com certeza que me faz falta. Sou jornalista de corpo inteiro. Agora, aquela fase final mais emblemática de aparecer no ecrã, essa não me faz falta nenhuma.
Em relação ao ecrã da máquina fotográfica…
A esse não resisto dia nenhum. Porque não há dia nenhum que chegue aqui à minha varanda do Alentejo e olhe para o céu, e o céu todos os dias está diferente, porque nunca vemos as nuvens iguais em nenhum dia. Então, não há nenhum dia em que não tenha que ir procurar a minha câmara fotográfica porque desta vez é que estas nuvens são as melhores de sempre [risos].
No Brasil, em Olinda, fotografou um barbeiro que disse ser um guardador de memórias. O seu também guarda as suas?
Eu não deveria pôr a público aquilo que vou revelar pela primeira vez, mas vou fazê-lo. O meu barbeiro é a minha mulher há muitos anos.
Alguma vez foi ver os seus vídeos ao Youtube?
Quando amigos se lembram de mos mandar, sim. Vejo-os e as minhas reacções são as mais diversas consoante aquilo que estava ali recordado. Vejo-os, mas não os procuro. Não tenho esse espírito. Agora, outra coisa é – aproveitando a deixa - declarar-lhe com a maior surpresa como tanto eu como toda a minha equipa, que ainda está toda ela felizmente viva e actuante, nos interrogamos com a maior perplexidade, por que é que um canal chamado "Memória" da Rádio Televisão Portuguesa ainda não conseguiu arranjar tempo ao fim destes anos todos de existência para nos dar sequer um minuto de memória. Porque é que a memória da RTP ainda teve ainda um minuto de memória para quase dez anos de programa "Acontece".
Se houvesse caminhos para o passado, onde voltava a colocar a fita? Ou só pensa no futuro?
Seguramente no futuro. Alguns orientais chineses têm uma expressão que me serve muito no meu dia-a-dia. Vale a pena partilhá-la com amigos. Olhando para a cabeça de um ser humano, onde é que se situa o futuro e onde é que se situa o passado? Nós, ocidentais, dizemos que o passado está na nuca, para trás, e o futuro para a frente, para diante dos meus olhos, quando é realmente o contrário. O passado já o vi, conheço-o bem, e portanto o que tenho diante dos meus olhos é aquilo que é conhecido. E o que é conhecido é o passado. O futuro está para trás de mim, está na nuca. Eu nunca consegui olhar através da minha nuca.
Hoje está no Alentejo. É o lugar onde está o seu coração ou o seu balão de oxigénio?
Eu não sei onde está o meu coração. O coração está onde eu estou naquele momento, em cada dia. Sou um homem sem pátria, um homem sem terra, sou um homem sem raiz, sem sítio, um homem do tempo, do dia, do momento. Cresci noutras longuras bem distantes: em África fiz-me gente, estudei e criei laços de robustez intelectual em Lisboa, mas sou filho de uma família profundamente nortenha. A minha mãe era da Rua de Cedofeita, no Porto, e o meu pai era de Mondim de Basto. Os meus pais levaram-me pequeno para África, fiz Direito em Lisboa. Não me licenciei, mas fui até ao fim. E tenho corrido mundo à conta da minha carteira de jornalista. Conheci tanta coisa nova, enriqueceu-me tanto. Não é aqui, onde estou de passagem, que tenho o meu coração. Tenho-o no sítio onde estou, no momento em que estou. E não sei qual será o último e onde estarei quando morrer.
Ainda lhe falta a Austrália para completar a volta ao mundo?
Pois falta. E, para ser franco, os cangurus continuam a não me seduzir.
Na sua vida de estudante só chumbou uma vez, a Direito das sucessões. E na vida, alguma coisa lhe soou dessa forma? Claro que sim. Múltiplas vezes senti-me preparado para triunfar e a vida não me deixou. Senti-me muito zangado. Quando não triunfo fico muito zangado.
Um livro sobre a televisão portuguesa chamado "Factos e ficções" está anos encravado no computador. Ainda é para sair de lá?
O meu livro sobre a televisão portuguesa tem três anos. Decidi escrevê-lo quando sai da RTP. Há um instinto de liberdade que vem quando a gente sente que já não tem o dever de lealdade para com uma empresa. A partir do momento em que a Televisão fez um acordo amigável comigo senti-me liberto para começar a pensar no livro. Mas atenção: esse livro que, sim, continua encravado no meu computador, não é um simples livro de memórias. Aquilo que tenho no meu computador - e já tenho vários capítulos -, são acontecimentos de percurso de que fui protagonista como director de programas ou director de informação ou como director de cooperação e relações internacionais. Factos que provoquei ou de que fui testemunha privilegiada e que tem a ver o percurso do serviço público da televisão em Portugal. Por exemplo, ninguém conhece os bastidores de que fui protagonista, na primeiríssima entrevista que o presidente Samora Machel deu à televisão portuguesa nas vésperas da sua primeira viagem a Portugal, muito contestada e muito turbulenta na altura. Ninguém sabe que terei sido o autor da realização e produção da famosa série de televisão "Rua Sésamo". Fui eu que decidi trazê-la para Portugal, feita por portugueses, de acordo com modelos portugueses - não só portugueses de Portugal, mas de Angola, Moçambique, Cabo Verde e de toda a África lusófona. Há coisas que, se calhar, só eu sei e que me apetece deixar escrito em livro. É a narrativa dos factos, sem adjectivos, que evoluíram de alguma forma no serviço público da estação
Posso perguntar-lhe de que forma, com que nome, o tratava a sua mãe Sarah?
É público. Todos os colegas de liceu sabem isso. O meu nome é Carlos Nuno. E desde pequenino que a mim próprio me tratava pela primeira sílaba de cada nome. Toda a gente que me conhece de infância me trata ainda hoje por Canu.
De acordo com o novo acordo ortográfico, qual a palavra que mais lhe vai custar rescrever?
Espero que nunca tenha que mudar qualquer maneira de escrever da Língua Portuguesa no padrão de Portugal por causa de um acordo que espero que nunca venha a existir.
Continua a achar que a blogosfera "é território de adolescente, feira de vaidades, autores frustrados que só ali conseguem publicar-se, almas solitárias à procura de qualquer eco"?
Não me interessa perder o meu tempo, que é cada vez mais curto. Tenho tantos livros para ler, tantos países para viajar, tantas fotografias para tirar, tantas páginas para escrever e tantas para ler, e as da blogosfera, na sua esmagadora maioria, são desinteressantes e nada enriquecedoras. Da blogosfera - tirando o "Abrupto", que me interessa - vou sobretudo aos blogues dos meus colegas jornalistas, porque procuro encontrar ali aquilo que eles, por uma razão ou por outra, não puderam ou não quiseram publicar nos seus próprios media.
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