Raul Brandão é o poeta da prosa, toda a sua prosa é pura poesia, mesmo se falhou redondamente quando tentou escrever poesia pura. Restou apenas um poema que deve andar por aí perdido algures... Morreu há 80 anos. E ninguém me tira da cabeça que deveria ser leitura obrigatória na escola.
Quando era pequeno, Raul Brandão tinha se si próprio a imagem "de um ser extasiado que abria os olhos atónitos para o mundo, todo frenesim e paixão." A extensa obra que publicou é toda reflexo disso, como se nunca ao longo da vida tivesse conseguido deter o espanto e caísse sempre nas mesmas armadilhas, recusando aprender qualquer tipo de lição que porventura o tornasse menos vulnerável. Os livros estão cheios de sábios e de desgraçados, de pobres de pão e de pobres de espírito. De loucos e de sonhadores. O sonhador é o seu alter ego, sempre. É o homem que se fecha no sonho porque não entende a vida, não se adapta. Diz ele n'A Morte do Palhaço: "Da existência ficara-lhe o olhar desvairado, para dentro, de quem segue na alma um sonho e anda na vida por acaso, o olhar daqueles em quem a vida interior é enorme e que ficam surpreendidos quando a dor lhes diz que o mundo existe." Daí que muitos digam que a quem quiser conhecer a vida do autor bastará ler a sua obra, toda ela uma não assumida autobiografia espiritual. Ocupa-se de três temas essenciais: Deus, a Morte e o sentido (absurdo?) da Vida. Aos 50 anos, concluiria: "A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada."
Foi o conselho recebido um dia, em Lisboa, por um anarquista, que determinaria o denominador comum de tudo o que produziu: "Se quer ser um escritor, fale dos pobres." Brandão fala sempre dos pobres. Mesmo se ele não era um pobre, em nenhum dos vastos sentidos que lhe dá, conhecia-os por dentro com rara ciência. E inquietava-se tanto com a dor dos outros como com a sua condição de privilégio. Os Pobres e A Farsa são dois livros fundamentais para o perceber. Com Húmus, um longo monólogo sobre as contradições que implicam aderir ou rejeitar um sistema, por muitos muito mais tarde considerado a sua obra-prima, completa uma espécie de trilogia. Na obra inteira, e como ninguém, Brandão criou personagens inesquecíveis: K. Maurício logo à cabeça (há quem diga que é equivalente ao Werther de Goethe), o Pita, o Gebo, a mulher do Gebo, a Mouca, a Candidinha, o Gabiru (alter ego confessado), o Astrónomo, a Velha, as prostitutas... Tudo gente complexa, humilde, descalça, que ou sofre ou se vinga da vida no sonho.
RB padeceu sempre da falta de leitores, já na altura isso era assunto, o que fez com que nunca confiasse verdadeiramento no valor do que escrevia. Só Guerra Junqueiro, que assina uma absolutamente magnífica carta-prefácio em Os Pobres, cedo arriscou dizer que estariamos diante de "um grande visionário, quase desconhecido e genial". A verdade é que muito perto da morte - morreu aos 63 anos -, Brandão continuava ainda a esperar caução dos amigos para o que publicava. Só com Os Pescadores conseguiu sucesso imediato, o que não deixa de ser curioso. Pessoalmente, é talvez o livro de que gosto menos, mesmo se ainda assim muito. Mas foi com esse livro que conseguiu ganhar a atenção dos jornalistas e dos críticos, classe a que de resto pertencia, e deixar de ser totalmente ignorado. Foi aí que as suas obras, até então de parcas tiragens, começaram a ser reeditadas. E foi a partir daí que conseguiu dedicar-se ao teatro, a sua grande paixão. O pobre de pedir, outra vez romance, outra vez feito de diálogos interiores, foi o seu último livro, publicado postumamente.
Olá Helena,
ResponderEliminarCruzei-me por acaso com o teu «blogue» quando pesquisava sobre Raul Brandão. Tens toda a razão quando dizes que é um autor pouco conhecido e estudado. Encontro-me a acabar a licenciatura em Estudos Portugueses e Espanhóis na Universidade da Beira Interior e estou precisamente a analisar este autor e a sua obra na cadeira de Literatura Portuguesa Moderna. De facto, até agora nunca tinha tido a oportunidade de o estudar e, confesso, que também eu estou apaixonada por ele. Os teus comentários são muito pertinentes e acho que é realmente de louvar alguém que primou pela diferença e que foi um dos marcos num tempo finissecular de viragem da nossa literatura. Há que alargar horizontes e evitar fórmulas feitas e já gastas dando azo a que outros também tenham o seu lugar no pódio.
Eugénia