De vez em quando imagino como era a vida quando a vida era simples. Não me lembro que para nós, portugueses, alguma vez tivesse sido simples. Mas deixem-me agora idealizar um passado remoto, um passado que não volta, em que a vida era simples porque sabíamos mais o que fazer do que sabemos hoje; e dependíamos menos do que hoje dependemos. Uma vida em que seríamos mais nós próprios daquilo em que nos tornámos.
É impossível pensar nas últimas décadas no Ocidente sem contarmos como a vida se complicou, como cada um de nós ficou sujeito a formas cada vez mais impessoais e poderosas de disciplina: do Estado, das empresas ou mesmo dos partidos. As sociedades modernas, mesmo as sociedades ditas liberais, não expandiram o indivíduo. O que elas criaram foi organizações crescentemente complexas e impermeáveis, dentro das quais esse indivíduo foi arrumado. A vida, de facto, complicou-se.
Como os (bons) sociólogos tiveram oportunidade de explicar, o homem que passou a viver sob o domínio das burocracias do Estado, mas também das empresas ou dos partidos, é um ser organizado e distribuído por múltiplos papéis, todos eles dependentes de regras, convenções, conhecimentos técnicos, de uma cultura predominantemente objectiva e especializada.
A circunstância de esse homem não dominar essa cultura provocou mudanças consideráveis. Metidos em toda a espécie de organizações e deveres, cidadãos da República, votantes, trabalhadores, consumidores e contribuintes, tornámo-nos indecisos e manipuláveis. Muitas vezes não sabemos o que fazer, nem o que decidir. Quem percebe todos os subterfúgios do sistema legal, dos impostos, dos empréstimos bancários, das regras de publicidade, dos mercados cada vez mais diferenciados, de campanhas políticas mais sofisticadas?
Num passado já muito distante, os astrónomos podiam aconselhar os príncipes sobre o movimento dos astros; os generais sobre o movimento das tropas; e os primeiros "políticos" sobre a arte do governo. Foram eles os primeiros conselheiros quando ninguém, além dos reis, precisava de aconselhamento para o que quer que fosse. Mas a profissão que melhor caracteriza este período é o consultor profissional. É incrível como a sociedade em que temos vivido dependeu dele. Aconselhar transformou-se numa actividade cada vez mais próspera e cobiçada, porque vem associada a informação e conhecimento que a maioria de nós não domina.
Surgiram "conselheiros" de toda a parte e feitio que nos prometeram um mundo mais apreensível, um mundo em que a própria noção de risco e incerteza estivessem ausentes. O conselheiro fiscal, financeiro, comercial ou político ajuda-nos a decifrar os labirintos dessas organizações a que não podemos escapar. Se ele falhasse, era todo um edifício que se desmoronava.
Se pudéssemos imaginar uma vida mais simples, como seria? Seria uma vida em que pudéssemos recapturar a nossa liberdade contra todas as formas de arrogância, venham elas do Estado ou de mercados certificados pela mítica presença do consultor profissional.
Há uma lição que a crise económica nos tem deixado. Não é a de que o capitalismo produz crises mortíferas (sempre produziu), nem de que os mercados devem ser regulados (a regulação não traz forçosamente melhor capitalismo), nem de que o Estado é eticamente superior aos mercados (sabemos que não é). O que podemos aprender com a crise é o velho peso da prudência, do realismo e da desconfiança. Uma vida mais simples seria aquela em que, antes de confiarmos no nosso banco ou no nosso Estado, pudéssemos reaprender o velho peso da responsabilidade, do que somos e não somos capazes de fazer.
(Hoje, no Público)
(Hoje, no Público)
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