domingo, dezembro 19, 2010

A mão que abriu a caixa de pandora

Enquanto o mundo se entretém a conjecturar, a dizer mal ou bem ou assim-assim de Julian Assange, o fundador do site WikiLeaks que virou o mundo do avesso com a publicação massiva de informação classificada, o soldado Bradley Manning, de 23 anos, vai somando, isolado e em silêncio, dias atrás das grades. Mais de 200 desde o final de Maio, altura em que foi detido. E mesmo se tudo indica que um não existiria sem o outro – foi Manning quem roubou os documentos que depois Assange colocou num portal de acesso livre –, a verdade é que enquanto o cada vez mais mediático australiano de 39 anos conseguiu angariar 280 mil euros para pagar uma caução que lhe assegura, no mínimo, uma liberdade condicional, o americano arrisca-se a passar o resto da vida na prisão. À sua espera, num julgamento que deverá ocorrer no próximo ano num Tribunal Militar, terá uma pena nunca inferior a 50 anos. E há mesmo quem considere que o cárcere, mesmo se perpétuo, não basta, e defenda a sua execução como castigo.

Mais dia menos dia, a história há-de ser contada no cinema. Ou não fosse Michael Moore, o mais crítico documentarista americano, um dos beneméritos de Assange. Ofereceu-lhe 20 mil euros para a caução com a seguinte justificação: “Embarcámos na guerra no Iraque com base em mentiras. Centenas de milhares de pessoas morreram. Imaginem apenas o que teria ocorrido se os homens que planearam este crime de guerra em 2002 tivessem que lidar com o WikiLeaks”. As pessoas até podem imaginar isto, que o mundo teria sido melhor se os esquemas políticos que uma decisão de guerra sempre encobre tivessem sido descobertos mais cedo. Mas num passado que já não se pode transformar vertido num putativo filme chamado WikiLeaks, quem será o personagem principal? E quem será designado como o bom e o vilão?

Cenário incontornável: uma América que antes de ser de Barack Obama era de George W. Bush, o mentor da invasão do Afeganistão em 2001. E do ataque ao Iraque em 2003. Uma América que é de tal forma o coração do mundo, que quando sofre uma derrocada – financeira ou bélica ou outra – , provoca danos em vários continentes. Sobretudo nos que alojam os seus aliados. Como agora, em pleno desvario provocado pelas informações libertadas pelo portal WikiLeaks. Quantos governos temem os estilhaços desses documentos tanto quanto o de Portugal teme o desfecho do capítulo sobre os voos da CIA?

A história do WikiLeaks é a história da caixa de pandora que, tal e qual como na lenda, contém todos os males da humanidade e, paradoxalmente, também, uma esperança, sendo que esta só pode ser concretizada através da superação da adversidade. Parecia ser esta a expectativa – ingénua? – de Bradley Manning, o rapaz que abriu a caixa, e em quem apostamos para actor principal.

Bradley Manning, hoje com 23 anos, completados esta semana, é o detonador do que o líder cubano Fidel Castro caracterizou como “uma América moralmente de joelhos”. Manning nasceu na região de Potomac, no estado americano de Maryland, no Condado de Montgomery. A sua cidade-berço é fértil numa população abastada, pautada por níveis de formação elevados, quase toda empregada em Washington DC. Em 2009, Potomac foi mesmo considerada a quarta cidade mais rica dos Estados Unidos. Mas não é neste padrão bem sucedido de fausto que se desenrola a vida do rapaz sobre quem pende a acusação de ter passado documentos confidenciais para o WikiLeaks. O jovem norte-americano cresceu no seio de uma família cujos laços se quebraram quando tinha 13 anos. Depois do divórcio dos pais, Manning vai viver com a mãe para o País de Gales, em Inglaterra. Três anos depois, aos 16, troca o Reino Unido pela sua América natal e a escola por um emprego numa pizzaria. Aos 18 anos, seguindo as pisadas do pai, também soldado americano, decide alistar-se no Exército. Corria o ano de 2007. Até aí, a história de Manning é a história banal de qualquer rapaz americano sem estudos nem dinheiro.

Altera-se tudo quando, integrado na 2ª Brigada da 10ª Divisão de Montana, Manning é designado analista da Inteligência Militar, permitindo-lhe, como o próprio haveria de dizer, “ter acesso sem precedentes a redes confidenciais durante 14 horas por dia, sete dias por semana durante mais de oito meses”. O soldado entrava no edifício com um CD de Lady Gaga e fingia trautear as canções enquanto as apagava e substituía por ficheiros de duas redes confidenciais do governo americano. Ao tomar conhecimento de “coisas incríveis, coisas horrorosas”, Manning ter-se-á porventura confrontado com dois dos maiores dilemas morais da sua ainda curta vida: por um lado, a inutilidade do sacrifício de estar disposto a dar a vida pela Pátria julgando defender e fazer parte dos bons quando afinal descobre que os bons também são maus, corruptos e sanguinários; por outro lado, decidir o que fazer com o que descobrira: guardar ou partilhar? Partilhou.

Da primeira vez, em Abril deste ano, o mundo inteiro viu um vídeo, filmado a partir de um helicóptero, que mostra o ataque de um Apache dos Estados Unidos a vários civis numa praça de Bagdade, no Iraque, em 2007. No total, morreram 12 pessoas, nenhum terrorista. Duas eram crianças, outras duas jornalistas da agência Reuters. O vídeo é a prova cabal da mentira contada pelo Exército americano, cuja versão oficial relatava um ataque a anti-rebeldes iraquianos. Manning terá visto milhares de documentos desta craveira, milhares de mentiras militares e diplomáticas. Tanto que, pouco depois, cerca de 75 mil documentos foram libertados pelo WikiLeaks dando conta de todas as mentiras que envolveram a guerra no Afeganistão.

Posteriormente, Manning confessou tudo a Adrian Lambo, um ex-hacker que se tornou conhecido em 2002 por ter conseguido entrar nos arquivos digitais do jornal “The New York Times”. Lambo, que haveria de o denunciar, é um personagem secundário neste filme, embora para muitos talvez o único vilão. Mas é através dele que se percebe a inquietação e o desapontamento em que o jovem Manning está mergulhado. “Já não acredito que haja pessoas boas e pessoas más. Há uma série de países que actuam sempre em favor de seus próprios interesses”, escreveu-lhe, anunciando que não poderia guardar aquela informação só para si. “Enviei tudo para o WikiLeaks. Deus sabe o que vai ocorrer a partir de agora. Espero que haja uma grande discussão mundial, com debates e reformas. Se não for assim, estamos condenados como espécie”. A correspondência privada entre os dois acabaria por se tornar também do conhecimento público, tendo sido publicada em Junho deste ano na revista americana “Wired”.

A partir daí, Bradley Manning, que já se encontrava detido numa base militar do Kuwait por suspeita de acesso e divulgação de informação sigilosa, passou a ser oficialmente considerado um dos maiores inimigos da América. A 5 de Julho, o Pentágono acusou-o de ser a fonte do WikiLeaks. Começa então uma discussão nos média americanos sobre as razões que terão levado Manning a trair (?) o seu país. E, ao bom modo conservador americano, a vida banal daquele rapaz transformou-se subitamente num problema clínico, de divã. O imberbe génio da informática que fora digno da confiança do Exército para analisar informações secretas rapidamente se transformou apenas num personagem tímido, que afinal até teria dificuldades de relacionamento social e, pasme-se, é homossexual.

Bradley Manning ainda nada disse em sua defesa. Aliás, não tem sido sequer alvo de atenção mediática. No passado dia 7, surgiu uma notícia nas redes sociais dando conta de que se teria suicidado, mas a notícia foi rapidamente desmentida. Ainda assim, a sua coragem divide a opinião pública. Na América e no mundo. Para alguns, com destaque para os familiares dos militares mortos nas guerras do Iraque (mais de quatro mil) e do Afeganistão (mais de dois mil), Manning é um herói que deve ser defendido a qualquer custo; para outros, sobretudo para quem desempenha ou desempenhou cargos diplomáticos na América, Manning é um traidor que deve ser “obviamente executado”. John Bolton, antigo embaixador dos EUA na ONU, afirmou à “National Review Online” que “se ele for declarado culpado, deve ser executado.” Bolton, à semelhança de vários estadistas, considera que Manning colocou em risco a vida de várias pessoas. Ainda que ninguém tenha explicado exactamente de que forma.

Ao contrário, a Câmara Municipal de Berkeley, no estado americano da Califórnia, votará depois de amanhã, dia 21, uma resolução que proclama “herói” o soldado Manning, e pede sua libertação imediata. De resto, já em Setembro, centenas de manifestantes estiveram reunidos em 21 cidades, do Canadá à Austrália, a pedir a sua libertação. “Denunciar crimes de guerra não é crime”, alegam.

Perante isto, a importância de Julian Assange, que esta semana, depois de libertado, afirmou estar a ser “vítima de uma campanha de difamação”, é pouco maior do que a dos jornais que têm estado a trabalhar os documentos do WikiLeaks. Na virtude ou no defeito desta cadeia informativa, ele será apenas a cauda de um cometa, exageradamente mediatizada. Como esclareceu, anteontem, o editor-executivo do “New York Times”, Bill Keller, “Assange não é mais do que uma fonte – e as fontes raramente são puras e simples.” Até agora, apenas 300 dos 251.287 documentos colocados em domínio público pelo WikiLeaks são conhecidos. A história, seguramente, continua.

1 comentário:

  1. Caríssima Helana.
    Imensos parabéns por esta peça fortíssima.
    A Helena é das poucas Jornalistas que continua a honrar a sua profissão.
    É pena destacar-se como excepção quando deveria sim iluminar-se como exemplo.

    Muito e muito obrigado.
    António Moreira

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