segunda-feira, outubro 11, 2010

A verdade serve-se fresca

É um oásis. Um lugar que é de tal forma a negação da crise, que parece mentira. Mas não é. O restaurante “O Buraco”, no Porto de um Norte que se diz a definhar, com o mais baixo rendimento per capita do país, em perda anual de produção e produtividade, é um lugar onde o Porto burguês ainda é o que era, onde a algibeira dos clientes não sente a dieta anunciada pelo Governo. É sobretudo um lugar onde o substantivo credibilidade não sofreu qualquer espécie de erosão, apesar de Manuel Azevedo, o proprietário, exibir o mesmo optimismo desenfreado de que padece o primeiro-ministro José Sócrates.

“Deus nos livre de mostrar o menu a toda a gente, que toda a gente às vezes é mesmo muita gente, para cima de meia centena, tudo ao mesmo tempo. Eu só digo: «Hoje vai comer isto» e as pessoas confiam”, diz ele, o senhor Manel, 63 anos, 40 de restauração, sempre ali n’O Buraco a servir refeições e bálsamo para os desabafos dos clientes, “aqui é como no barbeiro”, todos os dias ali de manhã à noite, excepção feita ao domingo. “As pessoas aceitam a sugestão, porque acreditam em mim. Sabem que não as vou enganar. Era o que mais faltava!”

A credibilidade é a sua receita anti-crise: ali, a verdade serve-se sempre fresca. “Tanto vale para a sardinha como para o linguado, é sempre tudo fresco, tem de ser. Temos de ser sérios, não podemos vender gato por lebre”. É esta conduta, que diz ser sua desde sempre, que o faz passar pela crise como pelos pingos da chuva sem se molhar. Por esta crise e pelas anteriores: a de 1983, que também levou o Governo a impor medidas excepcionais; a de 1993, em que o PIB desceu 2%; a de 2003, em que o primeiro-ministro de então, Durão Barroso, anunciou que o país estava de tanga.

“Desde o 25 de Abril, digam o que disserem, que o país não parou de melhorar”, considera. “Vivi sempre aasim, sossegado, sem medo. Trato bem as pessoas e sou bem tratado por elas. É isto que conta.” A vida corre-lhe de feição desde os tempos em “domingo era dia de almoçar fora, vestiam-se as pessoas a preceito para ir ao restaurante, até hoje, em que almoçar fora é necessidade; jantar é prazer”. Ao almoço, o senhor Manel serve quem trabalha na baixa, “uma baixa que deu um salto muito grande há meia dúzia de anos e contagiou o negócio todo”; ao jantar, recebe clientes que são família. “Famílias inteiras de há muitos anos. Muita gente ligada à arquitectura, às artes. Vi nascer-lhes os filhos, os netos. É uma geração inteira a comer aqui”.

E é justamente a fatia mais nova dessa geração que lhe diz que a crise existe, mesmo que ele a não sinta. “Muitos licenciados, filhos de casais amigos da casa, estão todos a emigrar. Vêm cá despedir-se. Muitos vivem em Londres”, conta com tristeza. A mesma tristeza que lhe inunda o olhar quando recorda Isabel Alves Costa, ex-directora do Teatro Municipal Rivoli, a dois passos dali, da Rua do Bolhão, cliente tão assídua que a fez amiga. Até há dois anos, quando faleceu. "Ah, as saudades que eu tenho de quando o Rivoli era o Rivoli dela. Mas a vida é assim, as coisas mudam..."

O senhor Manel também tem filhos, dois, dois psicólogos, 26 e 36 anos. “Agora estão empregados, graças Deus. Mas nem sempre foi assim. Um deles já aqui esteve comigo, não arranjava trabalho. Para um pai, sabe, custa muito ver um filho licenciado trabalhar fora da área para a qual estudou”. De resto, acrescenta, “eu só tenho a quarta classe, “mas acho que a crise vence-se pela educação. Era aí que o país devia investir. Aí e numa cultura de trabalho que não sei se temos”.

O senhor Manel, está bem de ver, é homem à moda antiga, à moda do Porto, um homem às direitas. Mas a rectidão de pouco lhe serviria se não tivesse estratégia para concorrer com os restaurantes que apostam em menus de crise, promoções da semana, pratos do dia a preço de saldo.E a sua estratégia, diz, é só uma: qualidade e preços baixos. “O preçário não sobe há cinco anos: seis euros para a carne; sete para o peixe. E vai continuar assim." Mesmo com o IVA a 23%? "Mesmo assim". Se o preço é fixo, a ementa também. Quem lá vai, sabe ao que vai: arroz de pato à segunda; costelinhas à terça; feijoada à quarta; rojões à quinta; tripas à sexta. “Há quem corte na sobremesa ou no vinho, mas ninguém cá vem só comer a sopa. nem acredito que haja necessidade de chegar aí." O Porto é, desde 2008, a cidade mais pobre da Península Ibérica.

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