sexta-feira, outubro 29, 2010

Grandfather

Nunca suportei a forma como todos te tratavam. Um comboio de criados, filhos incluídos, tão ou mais criados que os outros, todos ali à tua disposição, ao sabor das tuas manias pseudoaristocráticas. Tu e aquela tua poltrona de veludo que era só tua e onde ninguém mais podia sentar-se; tu e a tua mesa que não era a mesa dos outros, que tu não fazias refeições em conjunto, almoçavas, jantavas primeiro e à distância e só depois de teres acabado é que os outros podiam começar. Mesmo em dias de festa, era sempre assim. Tu e os teus talheres só teus, tu e a tua louça só tua, tu e o teu copo só teu, tu e o teu vinho só teu, tu e a tua comida sempre especial para não ferir o teu coração, o teu estômago, a tua vesícula. Tu e a devoção toda que te dedicavam. Todos se calavam para te ouvir, e o que tu gostavas de ser ouvido, só falavam quando os inquirias e sempre partindo do pressuposto que tu sabias mais, ninguém te contrariava. Passei anos e anos a observar-te e achar-te ridículo. A ti e a eles. Um regime medonho para encobrir pecadilhos que seguramente havias de ter, que eu sabia que tinhas, pensei sempre isto, desde sempre. Desde pequenina. Nunca gostei dos dois beijos que te dava, um à chegada, outro à saída. Sem trocar palavra. Dizias: "Chegou a minha menina doce"; "Já vais embora, minha menina doce?" Sorria, nunca te respondia. Não era a tua menina! Via-te ali tão novo a adorar ser tratado como velho, há anos que não desfazias a tua barba sozinho, há anos que não cortavas as tuas unhas sozinho, há anos que não engraxavas os teus sapatos, não davas o nó na tua gravata, nada, não fazias nada sozinho. Tinhas criados para tudo, e mesmo quando deixaste de ter justificação para ter criados, continuaste a ter os filhos. E a dar ordens. Pontualidade, regras, deveres, tudo eram obrigações para contigo. E continuaste a ter os teus de fatos de fazenda não sei de onde, as tuas malhas vindas só para ti, as tuas camisas especiais-de-corrida. E eu perguntava-me para que querias tanto aquilo tudo se nunca saías de casa nem nunca recebias visitas. Quando as visitas chegavam, tu ias para o jardim, para o quintal, disfarçavas-te de laranjeira se necessário fosse, mas nunca recebias ninguém, que nunca ninguém era suficientemente importante para a importância que te davas. Os filhos, raparigas e rapazes, tratavam-te todos da mesma forma, aquele trato cego, endeusado, como se tu fosses o primeiro e o último homem à face da terra, mas tu não os tratavas a todos por igual. Nunca trataste. E era isso, também, que eu não te perdoava. Tinhas preferidos, uma, talvez duas, sim duas, e não te inibias de o mostrar à descarada. De agir à descarada. Tu e os teus milhões todos canalizados para uma ínfíma parte do tanto que procriaste. Tu sempre de juízo de valor em riste a condenar tudo o que não entendias, e nunca entendeste, nunca aprovaste um único casamento da tua prole, como se todos eles devessem ter casado contigo, com ninguém. Aos que reprovavas mesmo tiravas tudo o que até então tinhas dado. Castigavas como um deus, se é que algum deus castiga. E nunca perdoavas, nunca restituías nada quando a custo aceitavas desbloquear um silêncio que podia durar anos. Quando cresci, perguntava-me como tinhas tido coragem, como nunca tinhas querido emendar a mão, como permitiste que os teus filhos, todos iguais, tivessem futuros tão diferentes. Estranhamente, era a única a questionar. E se questionava alto, se te colocava em causa alto, era, também eu, castigada, mandada calar. Como se todos eles concordassem com as tuas leis idiotas, como se tu fosses o inventor da justiça. Como se só eu não visse o que todos eles viam em ti. Não via realmente. Para mim nunca passaste de um ímpio. Mas quando adoeceste pela última vez, foi minha a tua última noite no hospital. Tu já tão perto dos 100, não sei que impulso me fez sair de casa a correr para te ir ver. Cá fora, tudo a chorar, a chorar como se o mundo estivesse à beira de acabar, adultos como crianças, quase mais doentes do que tu, tudo a beber água com açucar porque não queriam que os visses assim, não queriam que pensasses que já não ias sair dali. Entrei naquele quarto só teu com a generosidade que dedicaria a qualquer pessoa da tua idade, no teu estado. Não entrei ali por seres quem eras, acho. Levei-te os jornais que leste todos os dias até àquele dia, li-os em voz alta, de tudo só te interessava a política. Foi disso que falámos. A nossa primeira e única conversa em 30 anos. Garantiste-me que Durão Barroso não levaria a legislatura até ao fim e que Santana Lopes ainda haveria de ser primeiro-ministro, por muito que isso te desgostasse. Contrariei-te só pelo prazer de te contrariar, só para saberes que não tinha medo de ti, mas, contrariada eu,  logo ali senti-me embevecida pela tua lucidez. Entrou a enfermeira e antes de me pedir para sair, ficou a ouvir-nos discutir. Não por mim, mas por ti, também ela seguramene rendida à forma como não tropeçavas nem nas palavras nem no raciocínio. "Amanhã continuam", disse  por fim, sorridente. Não continuámos. Morreste nessa noite. E até isso me fez odiar-te. Porque talvez a partir dali pudéssemos ter-nos entendido, talvez tu pudesses ter-me explicado por que raio eras como eras. Talvez pudesses convencer-me da tua bondade e eu talvez conseguisse convencer-te a vires para a mesa onde nos juntávamos todos por tua causa, mais de vinte todos os meses. Mas não, tu não me deste tempo, morreste. E, para mim, morreste sem expiar os teus pecados. E pior, sem saber se terias essa vontade. Quando voltei a ver-te, já de olhos fechados dentro daquela cama apertada de madeira, tudo o que não entendia em ti adensou-se. Porque vi os teus filhos, homens e mulheres, todos já pais de filhos também, dentro de uma novela mexicana, lobos a uivar de dor, a atirarem-se para o chão, para cima de ti, tudo aos gritos, a tombarem como peças de dominó, mais água, mais açucar, a demonstração de impotência à vista de todos, eles ali a desejarem morrer contigo, o mundo deles tinha acabado de acabar. E eu juro que nunca consegui entender aquilo. Escolhi nunca mais pensar em ti para não continuar acusar-te quando já não podias defender-te. Nunca mais pensei, nunca mais falei, também nunca te visitei, já passou algum tempo. Até ontem. Terei ironicamente herdado de ti o vício dos jornais, e dentros dos jornais a política, embora goste de pensar que é herança do pai. É seguramente do pai, não é tua. Mas ontem nem o pai, esse sim, justo e bondoso, mostrou já ter paciência para a sucessão de directos do Parlamento, dos noticiários, das últimas horas, dos comentários dos comentadores. E a mãe proibiu discussões à mesa sobre o Orçamento do Estado. Mas não sem antes deixar escapar: "Havia uma pessoa que faria essas maratonas contigo de bom grado..." Não disse o teu nome, mas quando os olhos se lhe encheram automaticamente de lágrimas, ela atrapalhada a tentar disfaçar, as mãos a compor o cabelo, eu soube logo que eras tu. E pela primeira vez, sabes, pela primeira vez desde que te conheci, apeteceu-me que estivesses vivo. Não para nos podermos empanturrar com política, mas porque talvez pudéssemos ter sido bons amigos. Apesar de tudo.

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