quarta-feira, outubro 06, 2010

Dos dias felizes


Primeiro telefonema. Apresentamo-nos, dizemos ao que vamos. Do lado de lá, uma senhora apresenta-se também. Desbobina de cor a cor do peixe. "Temos maçãs muito boas, crocantes, e pêras não sei quê, não sei de onde, fruta da época, de qualidade, biológica, blá blá blá...". Ouvimos paciente, atentamente, respondemos tentando fazer a nossa melhor voz, a mais crescida, a mais profissional. "Não leve a mal, eu acredito em si, na qualidade dos seus produtos. Mas eu não quero nada disso; eu preciso disto e disto e disto..." E ela, a simpática senhora: "Mas isso não temos, menina (menina, pronto, não há voz que me salve, estou tramada)! Nem nós nem ninguém! Essa fruta não é de cá. Mas você de que empresa é? E quantas peças pretende de cada? Para quantas pessoas?"

Atrapalhada, começo a perder a esperança, percebo que não pensei num plano B: "Pois, não sou bem de uma empresa... E essa fruta não é de cá, mas cá também há. Agora há tudo cá. É a globalização. E também não é bem para uma empresa; era um presente para uma pessoa que tem saudades de blá blá blá..." Ela, quase a ensaiar uma pose maternal, mas já perdida de riso: "Você quer entregar uma caixa de fruta como presente, é isso?" Corada, meia aflita, vejo-me obrigada a confessar: "Pois, é mais ou menos isso... Mas está a falar-me de uma caixa? Não quero uma caixa! Não coloque, por favor, a fruta num caixote, que isso é muito feio!..."

Ela: "Mas ouça, os nossos caixotes, como você diz, são em papel reciclado."
Eu: "Pois, está bem, mas não me interessa a reciclagem. Não pode ser um caixote. Minha senhora, é suposto isto ser um presente!"
E ela, a simpática senhora, cheia de paciência, mas com clara dificuldade em levar-me a sério: "Também temos uns cestos muito bonitos, mas nunca os deixamos lá, despejamos a fruta e trazemo-los de volta. É assim que funciona. Mas se quiser, desta vez, podemos deixar o cesto. É em palha, é muito bonito..."

E eu, sem me enervar como seria normal em circunstâncias normais, sem me enervar porque o riso da senhora (não sei se não deveria dizer mesmo o carinho da senhora) só me fazia rir: "Não me leve a mal, a sério, e desculpe estar a ser chata, mas também não queria assim muito um cesto. Eu vi no vosso site umas coisas mais simpáticas do que isso. Note, é uma coisa concreta para uma pessoa concreta; não é uma coisa para funcionários à hora do lanche!" Ela: "Ah, viu umas terrinas, não foi? Já não usamos isso. Mas olhe, vamos fazer o seguinte: eu agora estou na rua, mas já vi que isto para si é importante, não é?" Eu, já a gaguejar, já a suar, já sem saber muito bem onde havia de enfiar-me: "Pois, eu sei que isto é esquisito. Desculpe lá estar a chateá-la, desculpe mesmo, mas realmente é mesmo importante..."

Ela, confirma-se a suspeita, a colocar voz de mãe, voz de bálsamo contra o desassossego: "Olhe, então vamos fazer assim, envie a morada do sítio onde quer que entregue a fruta para o meu mail pessoal, que é: blá blá blá. Entretanto, eu vou a casa buscar um recipiente para lhe colocar a fruta, um bonito, não se preocupe, e vou, eu mesma, procurar a sua fruta. Não lhe prometo que consiga tudo o que me pede; mas dou-lhe a minha palavra que vou procurar." Eu, em histeria, a achar que não só Deus existe como a Virgem Maria mora em Lisboa, e trabalha numa empresa de frutas: "Obrigada, obrigada, obrigada. Mesmo. Depois diga-me o que conseguiu encontrar."

Ela: "Sim, não se preocupe, eu vou-lhe telefonando à medida que for escolhendo..."
Eu: "Sim, obrigada. Mas não se esqueça que é para amanhã de manhã."
Ela: "Não se preocupe. Será a primeira entrega, logo às oito horas. Diga lá a fruta outra vez para eu apontar..."
Eu: "Então, preciso de abacate, papaia, mamão..."
Ela: "Mas quer papaia e mamão? Olhe que é a mesma coisa..."
Eu: "Ó minha senhora, ajude-me, não me baralhe! Eu li isto, isto existe, isto é um poema!"
Ela: "Pronto, está bem, diga lá. Mas olhe que mesmo que lhe consiga esses frutos, eles não vão ser bons. Não me comprometo consigo em relação ao sabor. Não é isso que costumamos entregar..."
Eu: "Está bem, está bem, não faz mal. Nem que sejam de plástico, têm é que ser os frutos do poema!"
Ela: "Vamos fazer assim: o que eu não conseguir encontrar, substituo por frutos tropicais. Pode ser assim?"
Eu: "Sim, sim, só não se ponha é a pôr para lá as maçãs e as pêras, por favor!"
Ela: "Não se preocupe. Vou fazer-lhe um arranjo bonito."
Eu: "Assim como se fossem flores, está bem?"
Ela, numa gargalhada sonora: "Sim, como se fossem flores".

Muitos telefonemas depois...

... foi fruta em forma de coração.

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