terça-feira, outubro 26, 2010

John Updike: Pecados e Seduções


Sendo fidelíssimo ao romance, o título encontrado em Portugal para o 21º livro de Updike [1932-2009] não podia ser pior. Por ser redutor e por ter uma conotação literariamente pobre. Na América, onde foi publicado há cinco anos e onde foi recebido com algum desapontamento, chama-se Villages. O título original, mais abrangente, é muito mais próximo do que ali se passa, a gestação de uma classe média norte-americana, Middle Falls, no Connecticut, a partir de finais dos anos 50, com tudo o que isso acarreta de desenvolvimento económico, científico e - aparentemente indissociável - de banalização de alguns comportamentos. Nomeadamente, a infidelidade, pecado consentido, ou pelo menos tolerado, quando publicamente bem gerido. São cinco décadas em 300 páginas. Não muda tudo em 50 anos, mas evolui o suficiente. Como anuncia a capa, e com verdade, é uma das maiores crónicas da vida americana. O embrião do amor livre e do capitalismo.

Do lado de lá do Atlântico, depois da escandaleira provocada sobretudo por Couples [1968], e insistindo o autor no mesmo período e, em grande parte, na mesma temática, o sexo extra-conjugal, a expectativa era desmedida. Não tendo sido cumprida - era impossível num século que entretanto também virou -, Villages foi relegado para a prateleira dos romances datados, fechados num tempo que já não é. Um exercício gongórico estéril. Se antes Updike tinha conseguido antecipar o futuro, aqui limita-se a fazer uma retrospectiva do século XX através do olhar de Owen Mackenzie, um filho único criado num lugarejo qualquer da Pensilvânia, tornado programador informático via prestigiado MIT. No entanto, do lado de cá, onde não só os livros chegam com delay como quase tudo o resto, o romance soa a uma absolutamente magnífica retrospectiva. Daí que muitas vezes valha a pena mergulhar num livro sem saber nada sobre a crítica que sobre ele foi feita.

Updike relata com invulgar clareza e ausência de tédio o início da prosperidade da engenharia informática, as páginas estão cheias de laboratórios de computação, fórmulas matemáticas, sistemas obsoletos, sistemas novos, IBMs, Apples, windows, interfaces, bugs, software, hardware, etc e tal. Mas também sintetiza com perícia de sondagem à boca da urna os reinados dos presidentes dos EUA, Eisenhower, Kennedy, Lyndon. E um bocadinho do pós-guerra e do Vietname e por aí fora. E sim, depois debruça-se pausada e longamente sobre o quotidiano numa vila onde as mulheres fazem lembrar as personagens de "As donas de casa desesperadas" e onde tanto as minuciosas descrições sexuais, com presas deitadas em M, como o acto de contrição na crise da quase terceira idade fazem inevitavelmente lembrar Phillip Roth. "As pessoas têm de ser românticas, caso contrário não se conseguem elevar acima da cópula inexpressiva das ovelhas e dos esquilos."

Owen tem agora 70 anos, dois casamentos, quatro filhos, dois enteados e uma criatura extra que tanto pode ser filha dele como não ser. E basicamente faz um balanço da vida tendo por base as mulheres que a partir de determinada altura, já depois dos 30, perdida a timidez, em secretas relações precárias, começou a foder, é o verbo que ele usa, e das que deixou por foder. "O passado de Owen é como um lenço de papel azul-escuro visto à luz, a fazer os furinhos brilhar: estas estrelas são as mulheres que deixaram que ele as fodesse." Phyllis (casamento de 15 anos - "Nenhum homem quer ter uma mulher mais inteligente do que ele."), Faye, Alissa ("Eu sou doido por ti. Uma frase para substituir uma palavra, o cálice envenenado do amo-te."), Vanessa, Jacqueline, Antonieta, Mirabella, Karen e Julia (casamento de 25 anos, a mulher subtraída ao clérigo para o redimir). Todas analisadas ao pormenor, catalogadas por cor, cheiro, flexibilidade, ousadia. Das decisões que tomou e das que deixou por tomar ou tomou tarde. "Ser um adulto é ser um assassino." De como os nomes dados às mesmas coisas lhes alteram o significado. "O sexo é um delírio programado que afasta a morte com a própria substância da morte, é o espaço negro entre as estrelas a que damos a substância doce das nossas veias e pregas."

O fim, concedo, é desapontante. Tanto quanto a vida pode ser. Ficamos sem perceber se Owen seria, à luz do que definiu como ser adulto, realmente um assassino. "O idealismo, num casal, torna-se por si mesmo uma razão para a insatisfação e para a rebelião."

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